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[Archport] O sepulcro, mansão para a eternidade


•   To: "archport" <archport@list-serv.ci.uc.pt>
•   Subject: [Archport] O sepulcro, mansão para a eternidade
•   From: "Jose d'Encarnação" <jde@ci.uc.pt>
•   Date: Sat, 24 Apr 2004 08:21:39 +0100

    No âmbito do programa Arqueologia convida...,  foi apresentado no Instituto de Arqueologia da Universidade de Coimbra, no passado dia 21, entre outros, o livro de Ana Paula Ramos Ferreira, Epigrafia Funerária Romana da Beira Interior - Inovação ou Continuidade? (Trabalhos de Arqueologia; 34). Lisboa: IPA, 2004.
    Para ele escrevi um prólogo (p. 9-11), intitulado «Mansão para a eternidade...», de que - se me é permitido - dou conhecimento de algumas passagens [enviarei o texto completo a quem o desejar], por se me afigurarem passíveis de discussão pelas ideias que veiculam:
    ) o sepulcro deve ser visto como uma «mansão para a eternidade»;
    ) neste sentido, a sua forma reflecte não só os hábitos arquitectónicos típicos de cada povo como também a sua forma de encarar a vida no Além.
    Nesse contexto, a cupa, por exemplo, pode assumir um significado bem preciso: a 'reprodução' da casa onde, na eternidade, apetece viver, sendo uma reminiscência das habitações subterrâneas do Norte de África.
 
Transcrevo:
 

[...]

Com efeito, pese muito embora a convicção, recentemente retomada por Robert Étienne, na obra que assinou com Françoise Mayet a propósito do vinho hispânico (Le Vin Hispanique, Paris, 2000, sobretudo nas páginas 54-58) de que as cupas, esses túmulos em forma de pipa tão presentes no conventus Pacensis, em Mérida e mesmo em Barcelona, simbolizariam a bebida ? qual bem apaladado vinho? ? de que o defunto se inebriaria no Além, estou em crer que, também neste caso, o túmulo pretende ser, simplesmente, a imagem do lar confortável em que muito nos aprazeria viver. Como assim?

Visitar Matmata, hoje, no dealbar do século XXI, por mais prevenidos que estejamos, não deixa de nos causar surpresa, ainda que, bem depressa, compreendamos a razão pela qual esses berberes tunisinos, já quase na franja do deserto, prefiram ser trogloditas, cavar no solo as casas abobadadas e aí repousarem de novo e se protegerem das intempéries. Admirar-nos-emos também se, no hotel, nos propuserem dormir em camarata comum, no subsolo, sob um tecto de abóbada perfeita. A cobertura em abóbada era, aliás, recordamos de imediato, a cobertura corrente nas casas alentejanas típicas ? onde a tradição árabe foi predominante.

Para mim, portanto, as cupas, mais ou menos alindadas, em determinado momento por graça ?transformadas? em barricas, quando já se lhes perdera o significado inicial, nada mais são do que a recordação dos tempos idos, passados no Norte de África, daqueles que para aqui vieram viver (cf. José María BLÁZQUEZ, Religiones, Ritos y Creencias Funerarias de la Hispania Prerromana, Madrid, 2001, p. 214).

Recuemos milénios atrás: quando chegaram a essas paragens norte-africanas, não terá sido esse viver algo que muito impressionou os Romanos? Plínio-o-Velho, na sua História Natural (livro V, 45), não afirma, com um certo espanto, que Troglodytae specus excavant; haec illis domus, «os Trogloditas cavam cavernas, essa é a sua casa»? E morrer, enfim, não é como? voltar ao ventre da Terra-Mãe??

Por isso não há cupas no espólio funerário romano da Beira Interior. As suas gentes não tiveram contactos com a África e mesmo que, visitando Emerita Augusta, lá vissem sepulcros assim, nenhum entusiasmo lhes suscitariam, por estarem por completo fora desse contexto vivencial.

[...]

A ida a Matmata alertou-me para as cupas; a demorada visita, em Junho último, à secção lapidar romana do British Museum, em que se mostram urnas que são belíssimas cópias arquitectónicas de casas, inclusive com realística representação da cobertura em imbrices e tegulae, completou a suspeita: é o sepulcro a mansão para a eternidade. Sonha-a cada qual consoante os seus protótipos, conforme os modelos do seu quotidiano existir. [...]

[...]

Acabamos por surpreender [...] os Romanos num momento crucial e inevitável da nossa ? e deles! ? difícil caminhada. E alfim caímos em nós: os sonhos acalentados em vida são botões a desabrochar no Além! Na mansão que idealizámos ou que outros, com ternura, para nós quiseram idealizar!

 

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