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Sinceramente, nunca pensei ter de me sentar para escrever estas linhas, e muito menos que me custasse tanto fazê-lo. E só agora o consigo, depois de posta alguma ordem num turbilhão de pensamentos e cumprido o rito de passagem durante o qual interiorizei, finalmente, o que de facto tinha acontecido.
Conheci o Armando no Verão de 1983, tinha ele dezasseis anos, quando se inscreveu num programa de ocupação de tempos livres que o Centro de Arqueologia de Almada promoveu para apoio à escavação da Igreja da Misericórdia, em Almada.
Como todos os que já enquadraram esse tipo de grupos sabemos, eles são normalmente heterogéneos, com jovens mais ou menos interessados e participativos, com muito, pouco ou nenhum jeito, nem sempre de trato fácil e com espírito de grupo. Felizmente, nesse contexto de heterogeneidade, temos de quando em vez a grata surpresa de encontrar alguém que nos faz sentir bem connosco e ajuda a dar sentido àquilo que fazemos na vida.
O Armando era precisamente um desses miúdos que facilmente se destaca pela jovialidade e facilidade de criar redes de amizades e cumplicidades entre o grupo, pelo entusiasmo com que abraça uma actividade até aí desconhecida, e, principalmente, pelo talento nato rapidamente evidenciado, a ponto de terminar aquela que foi a sua primeira campanha arqueológica dominando sem problemas a escavação complicada de algumas das sepulturas (o saudoso Luís Gouveia, também já falecido, de imediato o apodou carinhosamente de “Armandinho escava fininho”).
Despertou assim uma vocação que se consolidou entre 1985 e 1991, quando decorreram as grandes campanhas de escavação das olarias romanas da Quinta do Rouxinol, no Seixal, e, principalmente, do Porto dos Cacos, em Alcochete. Nestas últimas, o Armando tinha já maturidade suficiente para desempenhar um papel fundamental na organização e gestão de grupos que chegaram a ser superiores a quatro dezenas de jovens, servindo de exemplo para um núcleo, reduzido mas unido, que também viria a singrar profissionalmente na área da Arqueologia. Mais do que isso, assumiu já uma quota-parte importante de responsabilidade científica no denominado Sector 2, a área de necrópole a que tanto se afeiçoou e de que viria a ser o principal divulgador nos eventos e na bibliografia da especialidade.
Para além de amigo, era então já um companheiro indispensável em muitos projectos no Centro de Arqueologia de Almada, onde teve funções dirigentes até que a vida profissional e familiar deixou. Quase sempre em regime de voluntariado, esta prática intensa, alicerçada numa enorme curiosidade intelectual e capacidade de aprendizagem, ganhou ainda mais consistência com a formação académica posterior, transformando-o num dos melhores arqueólogos de campo que conheci, com um capital de saber e experiência que rentabilizou ao serviço do IPPAR e em equipas de avaliação de impactes ambientais.
Para além disso, apesar da sua juventude, tinha já dado provas de conhecer materiais arqueológicos como poucos, revelando-se um promissor investigador em vários domínios, nomeadamente na área dos estudos cerâmicos, incidissem estes sobre produções de época romana, medieval ou moderna.
Enfim, nunca saberemos onde chegaria, mas certamente teria ainda muito para nos dar, quer no plano profissional, quer em termos pessoais, onde ninguém ficava indiferente ao seu viver alegre e extrovertido, às suas paixões futebolísticas ou outras, à forma como interagia com os amigos e colegas de trabalho.
Ao logo de 23 anos, com o Armando partilhei trabalho, alegrias, frustrações, sensações… Com a sua morte, parte da minha vida também morre, acomodando-se no plano das memórias que terei de gerir ao longo do percurso que ainda me for permitido trilhar. E percebo agora que este pode ser curto e imprevisível, e que aquelas doem cada vez mais.
Jorge Raposo, 2006-05-31
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