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RE: [Archport] Trabalho Digno


•   To: <archport@lserv.ci.uc.pt>
•   Subject: RE: [Archport] Trabalho Digno
•   From: "Joao Paulo Pereira" <Joaop@inag.pt>
•   Date: Fri, 29 Sep 2006 10:05:27 +0100

Uma das únicas maneiras de não ser explorado pelos outros é o de criar uma empresa e ser patrão e explorar-se a si próprio e pelos seus "clientes".
--- Begin Message --- •   To: "Andre gregorio" <andregregorio@hotmail.com>
•   Subject: Re: [Archport] Trabalho Digno
•   From: "Alexandre Monteiro" <alexandre.monteiro@gmail.com>
•   Date: Fri, 29 Sep 2006 00:12:01 +0100
Estas lamentações - justificadas, quiçá, mas lamentações quand même -
trazem-se sempre à memória uma história que me foi contada por um
académico americano que, por acaso, conheceu bem Portugal - e a
mentalidade dos decisores e operadores portugueses - por aqui ter
desenvolvido projectos de investigação na área da arqueologia.

Dizia ele o seguinte:

"Imagina uma estrada, seca  poeirenta, sob um sol abrasador. Imagina
que por essa estrada caminha um homem. De repente, cruza-se com ele, a
mais de cem à hora, um fulano ao volante de um bruto Mercedes,
cobrindo de pó, cascalho e gravilha, esfumando-se vertiginosamente no
horizonte.

Se o caminhante for americano, irá olhar o carro que se some, à
distância e pensará consigo próprio: um dia, hei-de trabalhar tanto e
ganhar tanto dinheiro, que hei-de ter um carro daqueles.

Se o caminhante fosse, pelo contrário, português proferiria, alto e
bom som, nove em cada dez vezes, o seguinte: sacana, oxalá te espetes
no próximo chaparro que te aparecer à frente".


Se é assim tão fácil abrir uma empresa de arqueologia, porque não
avançarão para essa etapa os arqueólogos que se sentem explorados?






Em 28/09/06, Andre gregorio<andregregorio@hotmail.com> escreveu:
>
> Venho por este meio deixar mais algumas notas para a reflexão no âmbito da
> polémica despoletada pela publicitação do famoso mail anónimo que denunciou
> práticas de hiperexploração de algumas empresas.
>
> Gostaria em primeiro lugar de levantar algumas questões relacionadas com a
> posição tomada pelos colegas que trabalham para a empresa archeocélis e que
> vieram a terreiro defender a proprietária dessa empresa.
>
> E gostaria que ficasse bem presente que não se trata de nenhum ataque a
> estes colegas, que tenho a obrigação de respeitar, e que as questões que
> irei levantar não se aplicam apenas a estes colegas mas também a outros em
> situações semelhantes noutras empresas.
>
> Assim, estes colegas afirmam que trabalham há anos para esta empresa. Alguns
> sempre em contínuo. Perdoem-me a indiscrição da pergunta mas, se trabalham
> há tanto tempo para essa empresa num regime de exclusividade, têm contrato
> de trabalho? Sim, daqueles com 13º e súbsidio de férias? e subsídio de
> almoço? A empresa paga a segurança social devida no escalão respectivo que
> dá acesso a pensão, baixa e subsídio de desemprego? A empresa tem um seguro
> que vos abranja?
>
> É que a maioria das empresas de arqueologia deste país dificilmente caberá
> no que que se pode definir como EMPRESA. Isto é, com quadro efectivo e
> responsabilizado, com organograma de funcionamento, com o estabelecimento de
> boas práticas ao nível da higiene e segurança no trabalho, com instalações
> condignas, com capacidade efectiva de assegurar com meios próprios o
> tratamento do espólio, a conclusão dos relatórios. Capaz de assegurar
> controlo de qualidade em todas as práticas da empresa, desde a escavação ou
> acompanhamento à entrega do relatório.
>
> A maioria das empresas de arqueologia deste país são um telémovel, um
> computador ligado à net, um carro e uma garagem para guardar a tralha...
>
> Caros colegas, é disto que falamos, salvo raras e honrosas excepções, quando
> falamos de empresas de arqueologia.
> A quase totalidade do trabalho é assegurado por profissionais com o mais
> precário dos vínculos, o recibo verde.
> Desde o trabalho duro, de pá, picareta e às vezes de marreta, ao trabalho
> técnico de registo, ao tratamento das fotografias(bem caro por sinal),ao
> tratamento do espólio, ao relatório, muitas vezes feitos em casa dos
> próprios profissionais e sem contrapartidas.
> Acabando o trabalho adeus e até à próxima que há aqui uma pilha de curricula
> de recém licenciados prontinhos a ir pelo mesmo caminho e de preferência por
> valores ainda mais baixos.
>
> Os profissionais ficam com os calos, as empresas com os dividendos.
>
> É disto que falamos quando falamos não de exploração mas de hiperexploração.
> Não se garantem condições nenhumas, apenas se exige, pontualidade,
> assiduidade, cumprimento de prazos. E horas extraordinárias? Muitas, mas
> pagá-las? " não dá, não foram orçamentadas"...
> Não há plano de saúde, não há prémios de produtividade, não há formação
> profissional.
>
> Que qualidade asseguram estas empresas??? NENHUMA. Os bons resultados são
> assegurados por profissionais competentes e esforçados. Mais uma vez, quem
> fica com os dividendos? e quem fica com os calos?
>
> A maioria das empresas de arqueologia deste país é gerida com uma
> mentalidade digna da nata dos empresários donos de ferraris no Vale do Ave.
>
> Colegas, estou na arqueologia por amor à camisola, mas digo mais uma vez que
> também não fiz nenhum voto de pobreza.
> Se dá para viver dignamente, continua-se.
> Senão, emigra-se ou muda-se de actividade e os senhores dos jipes e dos
> mercedes que sujem as botas de lama e rebentem as bolhas de picareta na mão!
> Rapidamente acabarão muitas supostas empresas de arqueologia...
> Tenho casa para pagar, tenho responsablidades familiares, tenho uma vida
> digna para viver!
> Tenho que confessar que me choca profundamente ver profissionais com
> vínculos mais que precários a defenderem tão denodadamente entidades que os
> exploram de uma forma tão violenta.
>
> Finalmente, julgo que existe apenas uma forma de fazer face a este estado de
> coisas: criar uma entidade sócio-profissional que defenda os profissionais
> da arqueologia e os represente activamente.
>
> E digo criar, porque existe uma associação profissional cujo silêncio
> perante esta situação de contínua degradação das condições de trabalho e do
> estatuto sócio-económico dos profissionais da arqueologia é simplesmente
> revelador da sua inutilidade.
>
> Existem também uma série de outras associações , mas que se preocupam com
> outras vertentes desta actividade.
>
> Que se possa desde já começar a discutir um estatuto profissional, a
> estruturação da carreira, o estabelecimento de tectos minimos em termos
> salariais. Nada disto é novo nem especialmente original. Pratica-se há já
> muitos anos noutros países, como a inglaterra por exemplo, que tem só o
> mercado de arqueologia comercial mais dinâmico do mundo.
>
> Que toda esta polémica possa servir para finalmente se darem os passos para
> a consolidação da nossa actividade em bases bem diferentes das que a regem
> actualmente, que se possa avançar para a dignificação dos profissionais do
> nosso ramo e finalmente para a promoção da arqueologia enquanto actividade,
> enquanto ciência e enquanto forma de criar mais valia patrimonial e cultural
> para o nosso país.
>
>
> Com os melhores cumprimentos,
>
> André Gregório
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