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manuelabarros@sapo.pt [mailto:manuelabarros@sapo.pt]
Enviada em: quinta-feira, 5 de
Maio de 2016 09:48
Para: José d'Encarnação
Assunto: Pedido de divulgação
Dado que
o assunto voltou à baile na comunicação social, peço o favor de divulgar este
texto na rede do Archport.
9 argumentos contra o Acordo Ortográfico de 1990
Criado em 24.6.2015. Revisto em 4.5.2016)
Qualquer crítica - e qualquer defesa - que se baseie sobretudo em insultos não
é crítica nem defesa: é mero desabafo. Não vale nada. Por isso apresento uma
série de argumentos relativos à eficiência operativa do AO 90 e a aspectos de
ordem linguística, educativa, sociológica, diplomática, económica e de
preservação patrimonial. Todos eles me levam a não concordar com a sua
aplicação.
1. Argumento da pouca eficácia: O AO 90, em
vez de diminuir o número de palavras que se escreviam diferentemente em
Portugal e no Brasil, aumentou-o consideravelmente. Segundo um estudo de Maria
Regina Rocha (que exclui três tipos de vocábulos), 2.691 palavras que se
escreviam de forma diferente mantêm-se diferentes; apenas 569 que eram
diferentes se tornaram iguais; 1.235 palavras que eram iguais tornaram-se
diferentes e, destas, 200 mudaram apenas em Portugal, dando origem a soluções
aberrantes como aceção, conceção, confeção, contraceção, deceção,
impercetível..., enquanto no Brasil se continua a escrever acepção, concepção,
confecção, contracepção, decepção, imperceptível, etc. (cf. “A falsa
unidade ortográfica”, Jornal Público, 19.01.2013, retomado em http://ciberdúvidas.iscte-iul.pt/.)
2. Argumento de ordem fonológica: Uma das
características da língua portuguesa falada em Portugal é a chamada
“elevação das vogais átonas”, ou seja: para nós, a pronúncia das
vogais “a” , “e” e “o” em posição tónica
não é a mesma que a que têm em posição átona. Compare-se o primeiro
“a” de “casa” com o de “casinha”: na
primeira palavra o “a” é aberto, e na segunda o “a” é
fechado. Compare-se o “e” de “mesa” com o primeiro de
“meseta”: em “mesa” pronunciamos “ê”, em
“meseta” o “e” é mudo. Mesmo que esse “e”
desapareça da fala e digamos “mzeta”, continuamos a perceber que se
trata de “meseta”. Dizemos “tolo” com “ô”
mas em “tolice”, o “o” é fechado. Esta regra é de
aprendizagem automática, desde a primeira infância. Existem excepções, por
motivos etimológicos e de paradigma morfológico: caveira, dilação, especar,
especular, padeira, relator, retrovisão e algumas mais. Algumas dessas palavras
até costumavam, até certa altura, levar um acento grave para indicar que a
vogal era aberta: pàdeira e rètaguarda por exemplo. Hoje ele só subsiste como
indicador da junção do artigo “a” com a preposição “a”
e com os demonstrativos aquele, aquela, aquilo (“Dei um bolo à
Maria”, “Àquele nunca falo”). Em 1971 no Brasil e em 1973 em
Portugal foi eliminado dos advérbios de modo, e assim “sòmente” e
“fàcilmente” passaram a escrever-se “somente”,
“facilmente”. Considerou-se inútil porque “os falantes da
língua sabiam como se pronunciavam as palavras”. Foi talvez essa a
primeira “facada” que os legisladores da língua deram na
transparência que a escrita devia ter para quem o português não era a língua
materna – como era o caso da maior parte dos nativos das colónias de
então. Noutros casos subsistia porém o recurso a letras etimológicas, com a
função de indicar que as vogais que as precediam eram abertas. É o caso de
“nocturno”,“espectador”, “tractor”. Sem
esse auxílio, a regra de fechamento da vogal que não tem acento tónico tende a
aplicar-se. É por isso que o AO 90 induz a que se leia “nuturno”
ou, quando muito, “nôtúrno”; “espetador” como um
derivado de “espeto” e “trator” com “a”
fechado, vocábulo que não existe. Quer dizer, o AO aumentou desmesuradamente o
número das excepções a uma regra de pronúncia que permitia uma leitura
intuitiva.
3. Argumento de ordem morfológica: Há um
princípio básico de qualquer ortografia: a coerência morfológica. O AO 90,
seguindo estritamente a produção fonética, exige que se escreva “os
egípcios são os nativos do Egito”. Conserva-se, e muito bem, o
“p” do “egípcio” porque se pronuncia, mas em
“Egito” perde-se a ligação gráfica entre o nome do país e o dos
seus habitantes.
4. Argumento de linguística histórica: A
língua portuguesa é, como todas as línguas naturais, um produto da História. A
nossa deriva maioritariamente do latim, tem muitas raízes gregas, muitas
achegas vocabulares árabes, tem remodelações renascentistas, tem neologismos
oriundos das nações até onde viajou e dos variadíssimos povos, objectos e
ideias que aqui foram chegando através dos séculos. A escrita reflecte essa
riqueza. Sobretudo com o Renascimento, a nossa língua sofreu um impulso
extraordinário. A partir dessa altura foram criadas ou recuperadas numerosas
palavras com base no grego e latim. Não falemos nos termos da Botânica,
Medicina, Biologia, Química, que não há lugar nem tempo para tamanha empresa.
Falemos apenas de um processo: o da criação de palavras derivadas. Se repararem
bem, a coerência morfológica que mencionei acima, é coisa que aparentemente
falha: as palavras derivadas muitas vezes diferem daquela que lhes deram
origem. Por exemplo, “lunar” e “luneta” não derivam de
“lua”, “pedal” não deriva de “pé”,
“lacticínio” não deriva de “leite”, “nocturno”
não deriva de “noite”. Todas estas (e tantas, tantas outras...)
palavras foram criadas, não a partir da palavra portuguesa (que sofreu todas as
evoluções que o tempo imprimiu à raiz latina), mas sim directamente a partir do
étimo latino, recuperado por pessoas eruditas: “luna-”,
“pede-“, “lacte-“, “nocte-“. Uma coisa é o
ter-se a pronúncia do latim transformado por via popular, através dos séculos
(perdendo o “n“, o “l” e outras consoantes sonoras
intervocálicas, transformando “–ct” em “-it”,
etc.) outra coisa é criar-se uma palavra nova, aproveitando, reciclando um
étimo já longínquo para fazer frente às novas necessidades de vocabulário.
Deste modo, muitas das nossas palavras derivadas conservaram o étimo latino a
partir do qual foram criadas. Elas fazem parte do património da língua,
veiculando uma dupla marca de origem: social (erudita) e temporal (tardia).
5. Argumento educativo: Como ensinar a uma criança que “soturno” se
lê com “o” fechado, pronunciado “u” na maior parte do
país, e a palavra “noturno” se lê com “o”
aberto”? A resposta é fácil: não se fala no assunto e fica o caso
arrumado. Como ensinar a uma criança que da palavra “noite” se
formou “noitada”, mas que “noiturno” e
“noitívago” não existem, o que existe para o AO 90 é
“noturno” e a dupla grafia “notívago” e “noctívago”?
Não seria mais fácil escrever estas últimas com “ct” e dizer-lhe
que são palavras entradas na língua por via erudita e não por via popular? E
que, se elas, crianças, comeram papa “láctea”, esta é outra palavra
também erudita, tal como “lacticínios” ? Escrever
“laticínios” não remete para outra coisa a não ser para “lata”.
Talvez a lata de leite condensado que se vende nos supermercados?
6. Argumento sociológico: Antes de 1990 já
existiam duas grafias em Portugal: a norma de 1945, muito bem destrinçada e
explicada em Prontuários Ortográficos; e uma grafia difusa, sempre em
reconstrução e evolução - a das mensagens juvenis - caracterizada pela
simplicidade extrema, minimalista, com consoantes isoladas representando
palavras, sem pontuação, nem cedilhas nem tiles. Esta tendência não fez senão
acentuar-se com a generalização do uso electrónico. É nesta situação dicotómica
que se insere uma terceira forma ortográfica, a do AO 90. Os defensores da
norma de 45 agridem verbalmente os defensores da de 90 e vice-versa. E os
jovens? Uns são penalizados nas notas por escreverem à antiga algumas
palavras-ratoeira; outros são menosprezados porque escrevem à sua, deles, moda
“simplex”; e os que escrevem “à moderna” deixam de
respeitar as edições existentes na biblioteca da sua escola e inclusive invocam
o pretexto da “confusão gráfica” para deixarem completamente de
ler. Se o AO 90 não é um erro sociológico, não sei o que será.
7. Argumento diplomático: O Acordo
Ortográfico de 1990 tinha-se proposto unificar a escrita de todos os países de
língua oficial portuguesa. Este objectivo não foi conseguido. Portugal impôs
unilateralmente uma grafia que não tem o acordo de todos . Diz-se que o AO 90
foi feito, essencialmente, para aumentar as vendas de livros portugueses no
Brasil. Para isso pretendia unificar a escrita. Não unificou. Temos, por
exemplo, acentos agudos onde os brasileiros têm acentos circunflexos (fenómeno
/fenômeno, o que corresponde a uma efectiva diferença de pronúncia); e
eliminamos o “c” e o “p” que são pronunciados em
palavras brasileiras e não o são nas correspondentes portuguesas. Por exemplo,
no Brasil: respectivo, perspectiva, recepção; em Portugal, segundo o AO:
respetivo, perspetiva, receção, embora os “e” destas palavras não
se pronunciem como os de “repetido” e “recessão”.
Angola e Moçambique não assinaram o AO 90 (o que me parece um grande exemplo de
bom senso, sobretudo se tivermos em conta o argumento que se segue). A opinião
destes países de língua oficial portuguesa devia ter sido ponderada e tida em
conta pelo governo português antes de avançar para uma “situação de
facto” extremamente difícil de reverter.
8. Argumento económico: O que teria sido
economicamente mais recomendável? Adoptar como obrigatório o AO 90 em nome de
futuras vendas de futuros livros, tornando obsoletas as bibliotecas existentes?
Ou manter a escrita de 1945, com todo o enorme acervo literário e científico
que produziu? Leiamos as palavras da escritora moçambicana Paulina Chiziene:
“Quantos dicionários Moçambique terá de comprar de novo? Quantos livros
terá de mandar reescrever? Quantos livros de escola terão de ser refeitos, em
nome de um acordo ortográfico? Será que vale a pena sacrificar tanto dinheiro
dos pobres só para tirar um “c” e um “p” do que está
escrito? [...] Penso que é um capricho tão desnecessário quanto caro”.
(in “Tradutores contra o Acordo Ortográfico”, FB).
9. Argumento da preservação patrimonial: É
natural que uma língua que se começou a escrever e ensinar há relativamente
pouco tempo – por exemplo, o mirandês, no fim do século XX – não
tenha qualquer obrigação de respeitar formas que os portugueses foram
elaborando ao longo dos séculos. Porém a mim parece-me que todos nós,
portugueses, que dispomos de uma língua escrita desde, pelo menos, D. Afonso
II, temos obrigação de manter o mais possível as marcas históricas das palavras
que até nós chegaram. A grafia portuguesa já em tempos renunciou a algumas
marcas históricas: por exemplo, o “ph” e os “ll”
etimológicos (pronunciados “f” e “l”), dado que esse
modo de escrever induzia a leituras erradas, e podia, por isso mesmo, ser descartado.
Porém o AO 90 vai longe demais, ao afectar de modo evidente a leitura das
vogais não acentuadas e a íntima conexão lógica que existe dentro de cada
paradigma vocabular. Ao modificar-se a escrita, com base numa (suposta) maior
facilidade da sua aprendizagem, estabeleceu-se uma enorme confusão nessa mesma
escrita e perdeu-se a possibilidade de jovens e menos jovens compreenderem os
mecanismos de formação das palavras. Perdeu-se o nexo entre elas.
Para terminar: Outra coisa ainda deveria ser
tida em conta: ao renunciar de modo cego às marcas históricas, este
“acordo” insere-se num movimento global de apagamento da memória e
de negação da História. Terrível movimento, que cada dia se torna mais evidente
e que deixará sem raízes, sem passado, uma série de povos, se não a maioria. E
que já está deixando o mundo à deriva, presa dócil de todas as tiranias.
Admiramo-nos do modo como estão sendo destruídos monumentos, museus, cidades,
inúmeras etnias e línguas. Este desrespeito, este crime que hoje nos parece
abrupto, começou devagar, por pequenas coisas, aparentemente insignificantes.
É inelutável? Será irreversível? Há quem diga que é demasiado tarde para
recuar. Mas talvez ainda se possa fazer qualquer coisa. Mesmo este Acordo, que
ainda não está instaurado em todo o mundo lusófono, é passível de emendas
fundamentais. Ou de ser conscientemente desobedecido por muitos e muitos anos.