[Archport] Artigo: "Fenício Ariche que viveu há 2500 anos teria antepassados portugueses?"
Fenício Ariche que viveu há 2500 anos teria antepassados portugueses?
Andrea Cunha Freitas
28/05/2016 - 08:31
Análises do ADN mitocondrial revelam que um jovem fenício de Cartago,
cujo esqueleto foi encontrado 1994, teria antepassados europeus. Mais
precisamente, portugueses
Reconstituição de Ariche, da autoria da escultora Elisabeth Daynés
Ariche era um jovem fenício com cerca de 1,70 metros de altura que
morreu em Byrsa, o ponto mais alto da cidade de Cartago (actual
Tunísia), quando teria entre 19 e 24 anos. Isto há 2500 anos. O
esqueleto do “jovem de Byrsa” foi descoberto em 1994 numa cripta
funerária, cinco metros debaixo da terra. Agora, uma equipa
internacional de cientistas sequenciou o ADN mitocondrial do seu
esqueleto e descobriu que este homem pertence a uma linhagem que ainda
existe na Europa. Aliás, os antepassados maternos de Ariche, dizem os
cientistas num artigo publicado na revista Plos One, podem ser mesmo
originários da Península Ibérica. As análises encontraram
surpreendentes semelhanças genéticas entre o fenício e “um indivíduo
moderno” da região Centro de Portugal e um outro europeu “não
identificado”.
O seu browser não suporta a reprodução de vídeo.
Pub
Em 1994, os responsáveis do Museu Nacional de Cartago (situado na
Tunísia e precisamente no local onde se ergueu há milhares de anos a
cidadela de Byrsa) decidiram plantar árvores no terreno em volta. Os
jardineiros fizeram uma acidental e surpreendente descoberta,
deparando-se com um profundo poço de quatro metros de profundidade que
os conduzia para um túmulo onde estavam depositados dois sarcófagos,
um deles vazio. A cinco metros debaixo da terra foi encontrado um
esqueleto. As escavações foram entregues aos especialistas, uma equipa
franco-tunisina liderada por Jean-Paul Morel, que trouxeram Ariche
para a superfície. Primeiro conhecido como o “jovem de Byrsa”, o rapaz
fenício acabou por ser rebaptizado de Ariche, que significa “o homem
desejado”, por iniciativa do ministro da Cultura da Tunísia.
Junto ao esqueleto de Ariche foram encontradas algumas peças, como um
pendente e missangas. São adereços que aparecem na reconstituição
feita uns anos mais tarde pela escultora Elisabeth Daynés, que se
especializou neste tipo de trabalhos de reconstrução termoplástica,
que assegurará uma precisão na ordem dos 95% na restauração dos traços
de um indivíduo. Porém, há sempre uma margem para a imaginação e
questões como, por exemplo, a cor dos olhos ou do cabelo permanecem no
campo da subjectividade.
O que, de facto, se percebeu do esqueleto de Ariche foi que seria um
jovem fenício robusto, com cerca de 1,7 metros de altura, que terá
vivido no século VI a.C. e que morreu quando tinha entre 19 e 24 anos.
Até agora, as causas da morte não foram esclarecidas. Os artigos que
tinha junto do ossos levam a crer que pertenceria a uma elite de
Cartago. Na tampa do seu túmulo estavam duas ânforas púnicas
comerciais (vasos cerâmicos de base pontiaguda), uma caixa de marfim e
diversos amuletos, entre outros objectos.
Longe do “quartel-general” dos fenícios que se estabeleceram numa
faixa litoral do Mediterrâneo onde hoje se encontra o Líbano, a Síria
e o Norte de Israel, Ariche foi encontrado em Cartago, um dos vários
locais por onde esta civilização passou e se instalou por causa das
suas intensas rotas comerciais. Após ter sido descoberto, as
autoridades tunisinas autorizaram que o esqueleto fosse levado para
França para o trabalho de reconstituição. Em 2014. Os restos do rapaz
de Byrsa e os objectos que tinha junto dele foram levados para uma
exposição no Museu Arqueológico da Universidade Americana de Beirute.
E foi esta última viagem de Ariche, que permitiu a recolha de amostras
dos seus ossos (dois pequenos pedaços das suas costelas) para uma
inédita análise do ADN mitocondrial (que permite detectar linhagens
maternas muito antigas) feita por um grupo internacional de
especialistas, liderado por Lisa Matisoo-Smith, do Departamento de
Anatomia do Centro Allan Wilson, da Universidade de Otago, na Nova
Zelândia.
Uma linhagem rara
“Descrevemos o genoma mitocondrial completo recuperado do jovem de
Byrsa e concluímos que ele pertence a raro haplogrupo [um conjunto de
mutações genéticas] europeu, que possivelmente liga os seus
antepassados maternos a locais influenciados por fenícios algures na
costa Norte mediterrânica, nas ilhas do Mediterrâneo ou na Península
Ibérica”, relatam os cientistas no artigo na revista Plos One.
Segundo adiantam, trata-se da primeira análise de ADN mitocondrial de
um indivíduo fenício e também da mais antiga prova da presença deste
raro haplogrupo mitocondrial europeu (U5b2c1) no Norte de África. Os
cientistas consultaram os resultados de diversas análises de ADN
mitocondrial já realizadas em alguns países e que estão em bases de
dados ou artigos científicos publicados e também analisaram o ADN
mitocondrial de 47 libaneses. Nenhum dos libaneses modernos
“analisado” pertencia à mesma linhagem. Ariche ficava assim ligado à
Europa pela assinatura genética U5B2c1.
Para nós, portugueses, há algo ainda mais impressionante do que as
prováveis ligações maternas de Ariche à Europa. É que entre os
diversos dados publicados, os investigadores analisaram o trabalho
realizado por um grupo de peritos em genética populacional do Ipatimup
(Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do
Porto, que integra agora o novo instituto I3S).
O grupo do Ipatimup tinha publicado um artigo na revista FSI Genetics
em 2015 com actualização e revisão da diversidade genética portuguesa
com base em análises do ADN mitocondrial de indivíduos actuais que
vivem em várias regiões do país. Ana Góis, uma das autoras deste
artigo, adiantou ao PÚBLICO que as amostras usadas para o trabalho
faziam parte da base de dados existente no Ipatimup e que são actuais,
posteriores a 2000. A investigadora portuguesa nota ainda que, apesar
de terem sido apresentados resultados de amostras de 292 indivíduos, o
trabalho só inclui 28 genomas completos mitocondriais do haplogrupo U,
o segundo mais frequente em Portugal (o mais frequente é o H).
Foi neste trabalho dos investigadores portugueses que Lisa
Matisoo-Smith e a sua equipa encontraram a descrição de um “indivíduo
moderno” especial da região Centro de Portugal. Segundo explicam no
seu artigo, o ADN deste indivíduo português não só partilha o raro
haplogrupo europeu de Ariche como também tem três outras mutações
adicionais, possuindo assim o mesmo haplótipo, que é algo ainda mais
específico do que um haplogrupo. Após verificar a sequência genética
de Ariche, Ana Góis confirma que “são muito próximas” mas sublinha que
“não são exactamente iguais”. “De facto, partilha o haplogrupo e mais
três mutações (ou variantes), mas há algumas variantes que são
específicas do tal indivíduo fenício e poderá haver outras que são
específicas da nossa sequência”, esclarece.
Porém, o português anónimo do Centro de Portugal não é o único. No
artigo publicado na Plos One, os autores explicam que há outro
“europeu não identificado”. Numa resposta por “email” enviada ao
PÚBLICO, Lisa Matisoo-Smith não acrescenta muito mais: “Apenas sabemos
que um indivíduo de Portugal partilha a mesma sequência de ADN
mitocondrial, não sabemos exactamente quem é. Mas a amostra está
registada como tendo sido recolhida na região Centro.” E, acrescenta a
investigadora na mesma resposta, “uma sequência muito parecida também
foi encontrada nas ruínas que datam do Mesolítico em La Braña, no
Noroeste de Espanha”. Recorde-se que em 2014 foi notícia o resultado
de um trabalho de uma equipa internacional de cientistas que publicou
um artigo na revista Nature com o primeiro genoma completo de um
caçador-recolector europeu do Mesolítico, com 7000 anos, após a
análise de restos fósseis descobertos, em 2006, na gruta de La
Braña-Arintero, nos Montes Cantábricos (Noroeste de Espanha).
Ariche tem outra correspondência genética identificada na Europa, além
de Portugal. E poderá ter mais que os investigadores ainda não
identificaram, avisa Luísa Pereira, editora do artigo publicado na
Plos One e também investigadora no Ipatimup, que coloca um travão no
entusiasmo com as semelhanças entre Ariche e um português. “Não
podemos dizer que este fenício tem antepassados portugueses porque ele
partilha também semelhanças com outro europeu não identificado e não
sabemos qual era o seu país de origem”, ressalva, acrescentando que
“tirar muitas conclusões apenas de uma amostra é muito limitativo, do
ponto de vista científico”. Assim, a investigadora conclui:
“Realmente, foi o primeiro trabalho feito em ossadas de um fenício mas
não permite extrapolar tudo sobre os fenícios. Permite caracterizar
este indivíduo, que tinha uma linhagem materna que é semelhante a
indivíduos que ainda hoje vivem no Mediterrâneo, nomeadamente em
Portugal.”
Ainda assim, os autores do artigo sublinham a importância desta
semelhança entre Ariche e um português: “U5b2c1 é considerado um dos
mais antigos haplogrupos da Europa e está associado a populações de
caçadores-recolectores. É muito raro nas populações modernas e na
Europa é encontrado em níveis inferiores a 1%. Curiosamente, a nossa
análise mostrou que a sequência genética mitocondrial de Ariche
aproxima-se mais da sequência de um individuo moderno, em particular
de Portugal.”
https://www.publico.pt/ciencia/noticia/fenicio-ariche-que-viveu-ha-2500-anos-teria-antepassados-portugueses-1733280?page=-1