Colegas
Estou chocada. Não é figura de estilo, estou verdadeira e intensamente chocada.
Alguma coisa está verdadeiramente errada neste país se:
· Se tem direito, por se ser proprietário de umas terrazinhas por aí, de usurpar o povo do que legitimamente lhe pertence, os bens arqueológicos;
· Se recuperam ilicitamente bens arqueológicos, podendo de seguida vendê-los;
· Se merece elogio, quer por se destruir o património, quer por se aceitar “ganhar menos” para que os bens permaneçam no país.
Está tudo mal, tudo bem mal!!!
Não compreendo qual a base jurídica para uma decisão destas. Quem defendeu o interesse público, nesta acção em tribunal?
Não compreendo a complacência perante este “achado fortuito”, quando a mim me parece que de fortuito não tem nada… Parece-me um paternalismo indecoroso. Não defendo perseguições de espécie alguma, defendo a pedagogia de que está certo. Recuperar ilicitamente bens arqueológicos, com ou sem recurso a detectores de metais, está errado e também é ilegal. É usurpar esse bem ao seu legítimo detentor, todos nós. Como é que um bem ilegitimamente recuperado é normalmente transaccionado? E em nome de que ganho? O ganho de ficar em Portugal? Eu sou portuguesa e por mim, discordo desta abordagem.
Mas o cúmulo é o desenlace final… quem realmente ganha, a quem realmente o Estado paga, a quem o Estado confere direito, razão, é ao proprietário das terras onde os objectos foram recuperados. Estes objectos da Idade do bronze pertencem tanto ao proprietário daquelas terras, como o ar que paira sobre elas… Que vergonha, que vergonha!!! Eu já nem falo nas especiais responsabilidades que pelos menos um dos proprietários deveria assumir (a crer na notícia do público).
Eu não creio que o enquadramento jurídico português valide de alguma forma esta situação, tal como vem descrita na comunicação social. Mas se por um acaso, valida, TEM DE SER ALTERADO!
Eu pronuncio-me pela clarificação na Lei do princípio que deve ser indiscutível e definitivamente expresso: os bens arqueológicos pertencem a todos, a toda a Humanidade, sempre.
Eu pronuncio-me pela obrigação cívica de relato e entrega às autoridades competentes de qualquer bem arqueológico achado fortuitamente. E pronuncio-me pelo elogio público destes actos, verdadeiro exercício de cidadania avançada.
Eu pronuncio-me pelo desenvolvimento de acções de informação, sensibilização e formação cívica contra a recuperação ilegal de bens arqueológicos, actos que devem merecer repúdio social.
Eu pronuncio-me pela adequada fiscalização e promoção do cumprimento da Lei.
Eu pronuncio-me a favor do fim da legislação de recompensa, seja ela qual for, por entrega ao Estado de achados fortuitos, que funciona com incentivo à recuperação ilegal de bens arqueológicos.
Eu pronuncio-me pela condenação de qualquer acto que destrua contextos arqueológicos e que resulte na recuperação de objectos fora do âmbito da actividade arqueológica legalmente desenvolvida.
Eu pronuncio-me e perfilo-me contra os poderosos de sempre, os que ganham sempre, os que nos ganham sempre e a todos, os que nos usurpam, sempre.
E já agora, a propósito do texto de Luís Raposo, no Público: os funcionários que no decurso das suas funções relataram e informaram sobre estes acontecimentos, como aliás era sua estrita obrigação, são as elites? Como assim? Ao cumprir a sua função apenas ganharam dissabores. Outro ganho, não tiveram. Não compreendo qual a sua culpa, ou sequer o que poderiam ter feito diferente. Ignorar? Olhar para o lado? Ser superiormente complacentes? Facilitar a venda? Abrir um procedimento de fixação de recompensa quando tudo, mesmo tudo (até o relato publicado no Publico agora), indicava que o achado não tinha sido fortuito?
Eu diria que os arqueólogos deviam estar todos de acordo numa situação destas. Não deveria haver qualquer dúvida. Se nem para nós o assunto é claro, como poderá ser para o todo social? É nossa obrigação clarificar, criar normas inequívocas a este respeito. Espero que o consigamos, pois se assim não for, falhámos redondamente na nossa tão apregoada função social.
Jacinta Bugalhão
"Tesouro de Baleizão" rendeu 40 mil euros a António Lamas
Público, por CARLOS DIAS
12/06/2016 - 08:50
Foi encontrado há 12 anos por achadores em Baleizão. Mas nunca mais
ninguém viu ou ouviu falar deste tesouro da Idade do Bronze. Tudo
porque foi alvo de uma querela judicial que envolveu o ex-presidente
do CCB, que ganhou a disputa. Para os achadores, nada sobrou.
António Lamas e familiares receberam 40 mil euros por um espólio de 31
peças de ouro, bronze e quartzo, datado da Idade do Bronze inicial. O
espólio, conhecido como “tesouro de Baleizão”, de há cerca de 3000
anos a.C., em processo de classificação patrimonial, foi encontrado em
2004 por um pedreiro e um trabalhador agrícola na Herdade da Comenda
de que eram, na altura, proprietários o ex-presidente do Centro
Cultural de Belém António Lamas e familiares. A posse do achado
arqueológico, que os especialistas classificam como raro e valioso,
tanto no contexto ibérico como europeu, foi decidida em tribunal, o
que levou uma década.
A família Lamas reclamou a totalidade do espólio arqueológico,
alegando que só um ano após a sua descoberta dela teve conhecimento. O
tribunal não acedeu à sua pretensão e atribuiu-lhe metade do valor
estimado por peritos.
O contencioso à volta do reconhecimento de propriedade do tesouro
arrastou-se até 2011 e só em 2015 é que foi sanado o conflito com o
tribunal a tomar uma decisão salomónica: face à legislação em vigor, o
valioso achado foi considerado propriedade do Estado e de António
Lamas e familiares em partes iguais. Mas por se tratar de “um bem
indivisível” o primeiro teve de pagar aos segundos 40 mil euros,
metade do valor que foi atribuído ao conjunto das peças descobertas
com base numa avaliação feita por peritos da Direcção-Geral do
Património Cultural.
Os que descobriram as valiosas peças não receberam qualquer
importância. A decisão do Tribunal da Comarca de Lisboa, 14.ª Vara
Cível, explica porquê: por não ter avisado o dono das terras, onde o
valioso testemunho arqueológico foi encontrado, quem o encontrou
“perde em benefício do Estado os direitos” que a lei lhe conferia, ou
seja, 40 mil euros.
Achadores: "Peças devem ficar no Estado"
A decisão final do tribunal deixou resignado José António Branco, um
dos achadores do tesouro. Ele e o seu amigo José Eduardo Brissos, que
faleceu em 2013, tinham decidido que as valiosas peças “deviam
permanecer juntas em Portugal e nas mãos do Estado”, revelou ao
PÚBLICO.
Desconheciam como proceder nesse sentido e recorreram a José Ambrósio,
um amigo comum, também de Baleizão, para fazer chegar o tesouro a boas
mãos. José Ambrósio, que tinha por hábito acompanhar a arqueóloga
Conceição Lopes nas suas deambulações por centenas de sítios
arqueológicos que existem em Baleizão, informou-a do achado e foi a
partir daqui que se desencadeou uma série de contactos que envolveram
as universidades de Coimbra e Porto. A arqueóloga Raquel Vilaça, que
em 2005 escreveu para o Journal of Iberian Archaeology um texto sobre
The treasure of Baleizão, Beja (Alentejo, Portugal), relata como foi
necessário “agir rapidamente, ignorando a burocracia obstrutiva, para
evitar a perda destes achados científicos e patrimoniais importantes”.
As 31 peças de ouro, bronze e quartzo deram entrada no Museu Nacional
de Arqueologia (MNA), vendidas por 17.450 euros aos achadores, verba
integralmente paga com fundos disponibilizados pelo núcleo de amigos
deste museu, ou seja, sem envolver verbas públicas. José Ambrósio
observa que era “todo o dinheiro que havia na conta, que ficou a
zero”.
"Este gesto não impediu que nos acusassem de sermos saqueadores
gulosos por dinheiro”, recorda José Branco, fazendo referência aos
interrogatórios de agentes da Polícia Judiciária. “[Estavam]
desconfiados de que nós tínhamos levantado as peças noutro sítio.”
José Branco e José Brissos foram inúmeras vezes ao tribunal de Beja,
para responder ao juiz sobre questões relacionadas com a descoberta do
tesouro. “Se o tivéssemos vendido a quem nos tinha oferecido muito
mais dinheiro do que aquele que nos foi pago pelo Museu Nacional de
Arqueologia, não havia idas a tribunal, investigações da Judiciária,
nem nos tinham acusado de estar a devassar património.” “[Nem havia um
'tesouro de Baleizão', pois] ninguém ficaria a saber que o tínhamos
encontrado”, destaca José Branco.
Disse ao Zé Brissos: "Vamos vender isto e não dizemos nada a ninguém".
E, pela primeira vez, acede a falar da sua intervenção na descoberta
de um dos mais valiosos achados arqueológicos bimetálicos em Portugal
que viria a marcar a sua vida para sempre.
O primeiro sinal de que algo de valioso estaria enterrado na Herdade
da Comenda, junto ao rio Guadiana, surgiu no dia 5 de Agosto de 2004.
“Vi uns tijolos-burro que me chamaram a atenção pela forma como os
encontrei”, recorda. A experiência dizia-lhe que este tipo de
materiais significava a presença de algo mais. Deu conta da sua
suspeição a José Brissos, com quem fizera uma parceria para a
descoberta de vestígios arqueológicos e no dia 15 de Agosto, já
passava das duas da tarde e “estava um calor abrasador, para cima dos
35 graus”, decidiram explorar o local. O conhecimento acumulado desde
crianças com os seus pais e avós dizia-lhes que aquele iria ser um bom
dia talvez para recolher umas belas moedas romanas ou até fenícias.
"Foi a primeira vez que deitei a mão a coisa tão linda"
O chão estava duro. “Agarrámos em dois garrafões de água e despejámos
na terra para a amolecer. Começámos a escavar e a uns 20 centímetros
abaixo da superfície aparece-nos a boca de um pote de barro. Pensámos
que seria mais um igual a tantos outros que se encontram espalhados
por vários lados, mas, quando o puxámos, partiu-se e então é que vimos
o que tínhamos descoberto. Foi a primeira vez que deitei a mão a uma
coisa tão linda. Nunca tinha visto nada assim. Fiquei fascinado”,
conta José Branco com a comoção expressa no rosto que tenta esconder
com as mãos abertas.
“Disse ao Zé Brissos: 'Vamos vender isto e não dizemos nada a
ninguém'”, Ficara surpreendido com a importância do que haviam
encontrado. Mas acabaram por decidir que o mais correcto era que o
tesouro ficasse em Portugal e com as peças que o compunham juntas,
para que todos e sobretudo a população de Baleizão pudessem apreciar o
que os dois tinham descoberto.
Os dias que se seguiram “foram a loucura”, prossegue o achador. A
notícia funcionou como fogo na palha e o Cerro Furado, um dos mais
importantes sítios arqueológicos de Baleizão, sofreu as consequências.
“Alguém meteu uma charrua num tractor e lavrou o Cerro Furado na
expectativa de encontrar ouro. Todos pensaram e muitos ainda pensam
que o tesouro foi descoberto no Cerro Furado, e então destruíram
aquilo tudo [sem que ninguém interviesse]”, recorda José Branco.
“Encontraram lá [no Cerro Furado] um pote que julgo fenício com cenas
de caça pintadas e dentro de alguns dos potes descobertos havia umas
bolas de resina [âmbar] com uma formiga no interior”, relata José
Branco.
Na sequência de uma queixa apresentada pela Câmara de Beja, que
entretanto tinha tomado conhecimento do achado e pedira a intervenção
do Ministério da Cultura para evitar a devassa do património
arqueológico, José Branco regressou ao local onde descobrira com José
Brissos as peças. “Voltei ao lugar do tesouro com a Polícia
Judiciária, que estava desconfiada que o tesouro não tivesse sido
descoberto ali. Foi então que eu vi um fiozinho de ouro que entreguei
a um dos agentes que o guardou dentro de um saquinho”, conta,
provando-se, assim, que era aquele o local onde estava o espólio. E
continua, fazendo valer a sua experiência em arqueologia: “Eu vou
dizer uma coisa: quando se descobre uma coisa daquelas, não há só uma
– há mais.”
Também José Brissos voltou ao local onde foi feito o achado levando
consigo José Ambrósio e identificou, entre os seixos e cacos de barro,
mais uma pepita de ouro e restos de um anel em quartzo que pertenciam
ao tesouro.
Hoje o local está completamente coberto por um olival intensivo,
“deixando uma porrada de coisas por descobrir”, admite insatisfeito o
amigo dos achadores. “Nem existe uma cana que seja a indicar o sítio”,
critica.
Morrer na miséria
Decorridos que vão 12 anos desde aquele dia de grande tensão, José
Ambrósio recorda os juízos de valor feitos sobre os dois amigos:
“Muitos certamente pensarão que ao descobrirem um tesouro estão ricos,
mas o Zé [Brissos] acabou por morrer muito doente e na miséria já vão
passados quase três anos.” Afinal eles “entregaram o tesouro por uma
ninharia, comparando com o que lhes queriam pagar especuladores
espanhóis”.
“O Zé [Brissos] sempre foi um homem extremamente honesto. Três dias
antes de falecer fez-me fiel depositário das peças do resto do
tesouro, que depois entreguei à sobrinha [Maria João, que é secretária
na Junta de Freguesia de Baleizão]”, relata José Ambrósio.
“Não sei como nem a quem devo entregar as peças do tesouro que o meu
tio me deixou”, disse Maria João ao PÚBLICO, recordando o que
aconteceu ao tio quando este pensou que estava a fazer o que “era
certo”. Quer a situação resolvida “de forma honesta, legal” para não
cair, também ela, sob a alçada da Justiça.
A acção movida por António Lamas e familiares causou algum desconforto
à arqueóloga Conceição Lopes, que se diz cansada e triste por ter sido
sujeita a uma situação “penosa”, quando apenas tentou evitar que “um
conjunto com um valor científico indiscutível e de alto valor
patrimonial caísse nas mãos dos traficantes”. Uma das consequências
mais graves reside na desconfiança que as pessoas de Baleizão passaram
a ter em relação aos arqueólogos. “Tenho a percepção de que o rumo dos
acontecimentos deixou as pessoas de Baleizão muito mais reservadas [em
relação aos arqueólogos]. Eu pelo menos sinto isso”, confidenciou a
investigadora ao PÚBLICO.
A causa deste mal-estar não é difícil de identificar. É que uma das
condições impostas pelos dois achadores, quando venderam o tesouro ao
Museu Nacional de Arqueologia, em Setembro de 2004, é que este ficasse
com o nome “Tesouro de Baleizão” e fosse mostrado à população. Mas o
actual director do museu, António Carvalho, garantiu ao PÚBLICO que
ainda ninguém foi falar com ele sobre o "tesouro de Baleizão" “nem o
[Luís] Raposo [anterior director] [lhe] passou a obrigação de expor o
achado à população”, acentua.
Adianta, contudo, que o tesouro permanece guardado no cofre do Museu
Nacional de Arqueologia e que as peças que o compõem “ainda não foram
restauradas”, pormenor que impede a sua exposição nos tempos mais
próximos. Um constrangimento que a directora regional de Cultura do
Alentejo (DRC), Ana Paula Amendoeira, quer ver superado. Já encetou
contactos e negocições com “a Câmara de Beja, a Junta de Freguesia de
Baleizão e a Direcção-Geral do Património Cultural, entidade que
tutela o Património Cultural e o Museu Nacional de Arqueologia”, para
que o tesouro “seja mostrado na comunidade de onde é proveniente".
Paula Amendoeira diz pretender “honrar um compromisso assumido pelos
responsáveis à época dos acontecimentos”. A DRC está ainda a preparar,
com as entidades atrás referidas, uma proposta para a classificação
patrimonial do referido tesouro.
A Direcção-Geral do Património Cultural adiantou ao PÚBLICO que o
tesouro “pertence ao Estado e está incorporado no Museu Nacional de
Arqueologia como qualquer acervo depositado no museu”. Só após a
avaliação do respectivo “estado de conservação e da relevância e
oportunidade dos projectos expositivos em curso, pode [o MNA], quando
o entender, vir a apresentá-lo publicamente integrado numa exposição”.
O presidente da Câmara de Beja, João Rocha, por seu lado, disse ao
PÚBLICO que a autarquia está disposta a comprar o tesouro pelo mesmo
valor que foi vendido ao Estado, comprometendo-se a expô-lo num espaço
adequado à importância do achado.
O entusiasmo e a expectativa criada na população de Baleizão
desvaneceu-se com o decorrer dos anos. E hoje, como o PÚBLICO pode
constatar, o silêncio ou as respostas monossilábicas surgem como
reacção de quem não está disposto a falar de um acontecimento que
buliu com a pacatez da comunidade, inconformada por ter acreditado que
teria o tesouro exposto na sua terra, quando na realidade tal nunca
aconteceu. Desde que dois homens da terra, José Branco e José Brissos,
levantaram do chão um testemunho impressionante datado de há 3000 anos
a.C., ninguém ainda viu “nem a cor nem o feitio” do achado
arqueológico.
Uma lei que não se adequa à realidade
Num texto publicado em Outubro de 2005 pelo arqueólogo Luís Raposo com
o título "Achados avulsos e detectores", o autor retrata o que pode
ser entendido como um cenário hipotético. No entanto, a descrição
feita identifica os episódios reais que envolveram a aquisição do
“tesouro de Baleizão” pelo Museu Nacional de Arqueologia de que era
então director.
Neste texto, Luís Raposo confronta a realidade que se sabe existir no
terreno com o articulado da Lei 121/99, que logo no seu artigo
primeiro diz que “é proibida a utilização de detectores de metais na
pesquisa de objectos e artefactos relevantes para a história, para a
arte, para a numismática ou para a arqueologia”.
E parte para os factos concretos, recorrendo a uma hipótese
imaginária, através da qual procura demonstrar como a lei tem
“consequências nefastas” quando se revela “deficiente” a sua aplicação
“num terreno explosivo” associado ao uso de detectores de metais.
Imagine-se então “que um qualquer trabalhador rural desempregado”
(como José Branco) “percorre os campos à procura de coisas antigas,
talvez valiosas”. Imagine-se ainda que o mesmo trabalhador “descobre
efectivamente algo (…) e que o mais natural ímpeto será obviamente o
de imediatamente avisar o tal 'doutor' ou comerciante” do que acaba de
encontrar. Imagine-se, por fim, que o mesmo trabalhador rural “avisa
do achado um arqueólogo que por acaso viu andar nos campos da sua
terra. E lhe diz o que descobriu, prestando-se a entregar-lho, desde
que seja recompensado, senão no valor que o tal 'doutor' lhe pagaria,
pelo menos em algum montante, metade ou um terço desse valor”.
“Que resposta terá esse arqueólogo e teremos todos nós, arqueólogos,
defensores do património arqueológico ou responsáveis pela gestão do
mesmo, para dar àquele homem? Dizemos-lhe que não nos é possível
entrar em tal tipo de acordos, porque não existe regulamentação da lei
(…)? Denunciamo-lo à polícia? Aceitamos, mediante certas condições
(conhecimento do local exacto do achado, garantia de não realização
nesse local de acções detectoristas, etc.), entabular negociações que
possam acabar numa recompensa monetária pela sua descoberta? Ou então:
haverá GNR que baste para impedir este comportamento?", questiona Luís
Raposo, consciente de que o património arqueológico nacional “tem sido
mais delapidado nas duas últimas décadas do que em todos os séculos
anteriores” e sem deixar rasto.
Na conversa telefónica que manteve com o PÚBLICO, o arqueólogo reforça
esta linha de pensamento, advogando que a descoberta de um achado como
o “tesouro de Baleizão” deve reger-se “pela legislação dos achados
arqueológicos e não pela dos tesouros”. E faz um paralelismo: “Se numa
propriedade for descoberto um filão de um determinado minério, este é
património público [e não pertença do proprietário ou proprietários
das terras].”
Referindo-se à importância do achado em Baleizão, o arqueológo diz que
se “justifica plenamente a sua classificação como tesouro nacional
pelo seu valor histórico”.
Por isso, a posição de António Lamas merece-lhe uma apreciação
crítica. “Como é que uma pessoa que sempre se posicionou como defensor
do património arqueológico do Estado, que deveria estar vinculado à
defesa da arqueologia, demanda em tribunal a organização onde antes
fora presidente, colidindo com práticas éticas?” Luís Raposo
reporta-se ao tempo em que António Lamas foi presidente do Instituto
Português do Património Cultural (IPPC), entre 1987 e 1990.
Mas esta posição não tem acolhimento por parte do visado, que acusa
Luís Raposo de ter assumido em tribunal “posições contraditórias face
ao que já tinha dito publicamente”, quando afirmou que o “tesouro
talvez não tivesse sido achado na Comenda e que não valia muito por
ser uma mistura de peças, etc.”
Os conflitos com Luís Raposo “já são muito antigos”, refere António
Lamas, reportando-os ao tempo que era presidente do IPPC. Prosseguiram
no diferendo que se aprofundou durante o julgamento do processo
judicial que moveu com familiares seus para reclamar o reconhecimento
da posse do “tesouro de Baleizão”.
“Um povo sem a sua história não existe”
Familiares de José Brissos, um dos achadores, fizeram chegar ao
PÚBLICO um dossier que é uma espécie de diário onde o “arqueólogo”
autodidacta escrevia os seus pensamentos, expressava os seus
conhecimentos sobre o passado histórico de Baleizão e desenhava com um
pormenor impressionante as peças que descobria ou copiava as que via
em livros. Acalentou sempre um sonho: ajudar a instalar na sua terra
um museu de arqueologia. Morreu em 2013 na mais extrema pobreza,
consumido por um melanoma. E, mesmo quando a doença lhe levava a vida,
“o Zé vinha da quimioterapia que fazia da parte da manhã no hospital
de Beja” para de tarde se embrenhar pelos campos em volta de Baleizão
na busca de mais achados arqueológicos, recorda o amigo Ambrósio, que
lhe pagou o funeral.
A sobrinha Maria João acolheu-o na sua casa na fase final da sua vida,
quando José Brissos já não conseguia assegurar o seu sustento e lembra
a “canseira que era” chamar a atenção do tio para os riscos de se
expor ao sol, “coisa que os médicos lhe tinham proibido”.
“Não era muito dado à família. Não falava com ninguém e refugiava-se
nos apontamentos que tirava sobre coisas da arqueologia”, conta a
sobrinha. E fala do seu empenho na instalação de um museu em Baleizão,
pois “tinha uma clara noção da riqueza patrimonial existente na
freguesia, receoso que se perdesse”. Chegou a estar preparada a
inauguração de uma exposição do "tesouro em Baleizão", quando Isabel
Alçada era ministra da Cultura, “mas a promessa nunca se concretizou”,
lamenta José Ambrósio.
O seu “diário” é revelador de como um homem com instrução básica,
pedreiro de profissão, tinha conhecimentos tão profundos e completos
sobre história e arqueologia. Fez uma listagem do que era necessário
empreender para elaborar a “carta arqueológica” de Baleizão.
O seu “diário” é revelador de como um homem com instrução básica,
pedreiro de profissão, tinha conhecimentos tão profundos e completos
sobre história e arqueologia. Fez uma listagem do que era necessário
empreender para elaborar a “carta arqueológica” de Baleizão. Nela
Brissos assinalou 15 sítios arqueológicos, acompanhados de fotografias
para comprovar os achados que já tinha recolhido: mós de moinho,
tijolos, marcos de delimitação de propriedade romanos e diversos
instrumentos em ferro, pedra polida e em chumbo, etc.
Perguntavam-lhe porquê tanto empenho quando estava tão doente. “Dos
fracos não reza a história”, escreveu ele no seu diário, onde desenhou
dezenas de peças desde o século VII a.C., moedas da presença romana em
Pax Júlia, potes e ânforas da Idade do Bronze, um jarro fenício,
esculturas oferendas aos deuses do século V a.C. e até uma estela do
século II a.C.
O “tesouro de Baleizão” tem todas as suas peças desenhadas, incluindo
o pote onde estavam acondicionadas, com uma indicação: “Por entregar
[ao MNA] uma pepita de ouro e o resto de um anel de quartzo.”
Alexandre Brenhas, marido de Maria João, lamenta que na própria
comunidade de Baleizão haja pessoas que o consideravam “um louco”.
“[Mas] quando aquela cabeça entrava em manobras, tínhamos de
reconhecer que era um homem muito inteligente, que morreu sem nada.”
Mesmo assim, “passou por criminoso, destruidor de património, o que é
revoltante”, observa.
“Um povo sem história não existe”, vincou José Brissos numa das folhas
do seu “diário”. Morreu deixando apenas sonhos escritos, sem um
tostão.
O seu companheiro de pesquisa, José Branco, corta erva na periferia de
Beja, um trabalho que lhe foi atribuído pelo Fundo de Desemprego,
tarefa que vai desempenhar até Fevereiro, depois… logo se vê.
Também ele “é filho da má fortuna”, apesar de ser suspeito de ganhar
muito dinheiro com as moedas. “No dia 1 de Junho”, confidencia ao
PÚBLICO, “fui ao multibanco e tinha lá 15 euros. Levantei 10 euros
fiquei com 5." "No dia 1 de Junho”, repete.
O seu desagrado estende-se aos empresários espanhóis. “Voltámos a
1580. Ninguém tem noção da destruição que eles fizeram no nosso
património arqueológico com 'as químicas' que lançam para tratar dos
olivais. Moedas que se descubram junto a uma oliveira estão corroídas.
Químicas e adubos estragam-nas”, insurge-se José Branco, frisando que
o gosto pela arqueologia foi-lhe transmitida pelo pai, que dizia ser
“descendente de romanos”.
Esculpia imperadores em pedra e fazia lucernas em barro. Achou
centenas de moedas na esperança de ganhar algum dinheiro, mas nunca
passou de pobre. José Branco, agora com 52 anos, só tem um sonho:
achar um bom tesouro. “Se tal vier a acontecer, não digo nada a
ninguém, senão vêm buscá-lo e arranjam-me problemas com a Justiça.”
Lamas soube da descoberta do tesouro pelo PÚBLICO
Ao contrário do que exige a legislação em vigor, os proprietários do
terreno onde o tesouro foi descoberto a 15 de Agosto de 2004 não foram
informados do achado. “Quando li, na primeira página da edição do
PÚBLICO (de 15 de Abril de 2005), uma peça com o título 'O tesouro de
Baleizão', fiquei curioso, mas estava longe de saber que tinha sido
numa propriedade nossa”, relata António Lamas. E só quase um ano
depois é que recebeu a informação da Câmara de Beja de que o achado
arqueológico tinha sido encontrado na Herdade da Comenda de que era
co-proprietário com familiares. A propriedade, entretanto, foi
vendida.
António Lamas explicou ao PÚBLICO que antes de accionar o processo
judicial fez uma exposição à então ministra da Cultura, Isabel Pires
de Lima, a denunciar o “incumprimento da lei”, assim como a actuação
de Luís Raposo, então director do Museu Nacional de Arqueologia (MNA).
Este foi acusado de saber que o tesouro tinha sido encontrado em
propriedade privada, mas mesmo assim procedeu à sua compra, “sem fazer
as mínimas averiguações” quanto à legitimidade dos que o tinham achado
para assumir a propriedade do mesmo e proceder à sua venda ao MNA.
Como da parte da tutela não houve resposta, António Lamas e família
intentaram, em 2008, uma acção judicial para que fosse reconhecido o
direito de propriedade do tesouro e que este lhes fosse restituído.
Exigiram ainda que o Instituto dos Museus e da Conservação (IMC) –
entidade que tutela o MNA – fosse “condenado ao pagamento de sanção
pecuniária compulsória por cada dia de atraso na entrega do tesouro”.
No caso da restituição se tornar impossível, António Lamas e
familiares reclamaram o pagamento de uma indemnização “de valor não
inferior a 40 mil euros, acrescida de juros de mora calculados a
partir da citação”.
Em 2011, o juiz da 14.ª Vara Cível do Tribunal da Comarca de Lisboa
declarou António Lamas e familiares “co-proprietários do tesouro” e
condenou o IMC ao pagamento de uma quantia não inferior a 40 mil
euros, acrescida de juros a partir da citação, quantia essa
alegadamente correspondente a metade do valor do referido tesouro. A
instância judicial julgou “improcedente o pedido de condenação do
IMC”, assim como o “pedido de condenação na sanção pecuniária
compulsória”.
Em 2010, foi intentada uma 2.ª acção, esta para avaliação do tesouro,
processo que António Lamas considerou “longo e lamentável”. A
Direcção-Geral do Património Cultural adiantou ao PÚBLICO que em 2014
foi interposta uma nova acção contra o Estado para “pôr termo à
indivisão do tesouro, fazer a adjudicação e venda da parte que
pertencia aos autores, peticionando-se ainda o pagamento de juros de
mora”. No seguimento desta acção, o tesouro foi avaliado por peritos
“designados pelo Estado”, que lhe atribuíram um valor de 52.000 euros.
Esse valor acaba por ser muito inferior ao que foi apurado pelo
tribunal, que decidiu fixá-lo em 80 mil euros.
O processo terminou com uma sentença judicial que homologou a
transacção entre os autores da acção e o IMC e que consistiu no
pagamento de 40.000 euros a António Lamas e familiares.
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