Boa tarde
Algumas afirmações relativas ao afundamento de património arqueológico pela barragem do Sabor deixaram-me deveras perplexo pela ligeireza com que foram encaradas pelos seus autores, nomeadamente no que diz respeito à arte rupestre. Por exemplo,
Susana Silva escreveu:
"julgo que submergir elementos pode não ser o fim. Penso que os arqueólogos e demais técnicos ligados ao património devem começar a pensar em alternativas, pois estas bacias hidrográficas poderão ser encaradas como um novo desafio científico e turístico. Neste tipo de projectos podem conviver várias ciências, inclusive poderá dar-se um novo tipo de encontro entre a arqueologia subaquática e a da "terra"!"
Ora bem, na relação arte rupestre / barragens se a primeira ganhou no caso do Côa, perdeu nitidamente nos casos de Fratel, Pocinho, Alqueva e agora, ao que parece, perderá também no Sabor se as gravuras não forem estudadas com tempo suficiente.
Dizer que não se perde nada ao afundar arte rupestre è falso. Vejamos:
Pelo que fui informado, existem alguns abrigos pintados que se perderão na albufeira da barragem. No caso de pinturas, efectuadas com pigmentos constituídos por elementos orgânicos e minerais, solúveis em água, não é preciso muito tempo para desaparecerem inexoravelmente.
Se há gravuras (insculturas) que são visíveis razoavelmente quase a qualquer hora do dia, outras só o são com luz rasante, isto é, de manhã cedo e ao entardecer. Ora como aplicar este procedimento de baixo de água ? A arqueologia subaquática terá soluções para este problema ?
Mesmo utilizando iluminação artificial, existirá sempre o problema da refracção debaixo de água. E isto se a água estiver limpa, pois em muitos casos isso não acontece. Recordo que durante a polémica da barragem de Foz Côa houve quem mergulhasse na albufeira de Fratel para ver como estavam as gravuras. Verificou-se que apenas em cerca de 20 anos o desgaste dos motivos era assinalável devido a factores diversos. Para além disso as condições de luz eram péssimas devido à poluição do rio.
No caso de gravuras filiformes (muito finas) há exemplos muito dificilmente observáveis a olho nu. Ora se estiverem submersas então não serão mesmo detectadas. Almas gravuras deste tipo, estudadas por especialistas da Universidade de Salamanca, só foram detectadas anos depois, já após a publicação de vários artigos. Ora, quando se constrói uma barragem há pouco tempo disponível para o estudo do património que será afundado e não será possivel, anos depois, ir lá verificar com piores condições o que não se viu antes.
Em suma: se o levantamento de arte rupestre ao ar livre já é muitas vezes problemático, sê-lo-à muitíssimo mais no caso de ela se encontrar submersa.
A Arqueologia Subaquática será muito útil para localizar gravuras afundadas e monitorizar o seu estado de conservação, entre outros aspectos, mas não o será para estudar arte rupestre caso isso não tenha sido efectuado ao ar livre.
Por último, acho bizarro que arqueólogos encarem o afundamento de vestígios arqueológicos com a descontração e desportivismo que deixam transparecer nas suas afirmações, pensando que será muito bom para o "encontro entre a arqueologia subaquática e a da "terra", como refere S. Silva. Esperemos que estas ideias não cheguem aos ouvidos de alguns políticos, pois então podem argumentar: se os arqueólogos não se importam com o desaparecimento do património então podemos afundá-lo à vontade. E nunca se sabe se um dia não vai aparecer alguém a pretender retomar o projecto da barragem de Foz Côa.
Que o diabo seja surdo !!
Os colegas mencionados pensararam, talvez, utilizar esta questão do Sabor para promover a Arqueologia Subaquática, mas acho que os argumentos empregues não terão sido bem equacionados e reflectidos. De facto, todo e qualquer arqueólogo deve bater-se incondicionalmente pela sua dama - a Arqueologia. Todos devemos procurar, racionalmente, a defesa dos vestígios do passado. Todos sabemos como o património arqueológico é frágil e que as destruições em nome de um pretenso progresso continuarão a existir. Ora, pois bem, achar que se pode afundar o património e que com isso não há problema é dar armas aos inimigos da Arqueologia. Não é isso que queremos, certamente.
Saudações,
Fernando Coimbra
Doutor em Pré-História e Arqueologia
Membro Permanente do Comité Científico do Centro Helénico de Arte Rupestre, Philippi, Grécia.
From: "Susana Silva" <srtcsilva@gmail.com>
To: "msabreu@utad.pt" <msabreu@utad.pt>
CC: archport@ci.uc.pt
Subject: Re: [Archport] Sabor Amargo...
Date: Mon, 3 Sep 2007 11:15:09 +0100
É sempre triste saber que mais uma parte do nosso património histórico e arqueológico vai ser "apagado" das nossas vistas! Mas também é verdade que temos de ser realistas e que o nosso país não consegue e não quer cuidar do pouco que já tem. Como prova disso, basta olhar para os outros pólos que existem, completamente dotados ao abandono depois de grandes campanhas alusivas à sua importância... enfim, não sejamos utópicos e deixemos que os outros sobrevivam...
Além disso julgo que submergir elementos pode não ser o fim. Penso que os arqueólogos e demais técnicos ligados ao património devem começar a pensar em alternativas, pois estas bacias hidrográficas poderão ser encaradas como um novo desafio científico e turístico. Neste tipo de projectos podem conviver várias ciências, inclusive poderá dar-se um novo tipo de encontro entre a arqueologia subaquática e a da "terra"!
On 01/09/07, msabreu@utad.pt <msabreu@utad.pt> wrote:Li com tristeza a noticia que a barragem do Sabor vai ser construída.
E' verdade que nós Portugueses estamos habituados a ver o nosso
património, em especial, o arqueológico ir "por água abaixo " mas a
noticia não nos pode deixar indiferentes.
Segundo o EIA existem mais 190 sítios de "interesse" patrimonial no
Vale do Sabor -- incluindo "diversos abrigos pintados" e pelo menos
uma gravura de auroque em estilo paleolítico.
Pessoalmente, aquando das duas consultas publicas, pedi para que
fosse dada especialmente atenção ao fundo vale. Achei que o tempo
dado para os estudos não tinha sido suficiente para um terreno tão
difícil e que "os homens" no terreno não tinham sido suficientes.
Nunca recebi uma resposta satisfatória a nenhuma das minhas
questões. Sei que existe pelo menos uma figura que não consta do EIA.
Sou (ainda) completamente contraria a construção de mega-barragem.
Ver apresentar tais projectos como "amigos do ambiente" é uma farsa.
Concerteza que Portugal necessita de levar a sério o seu problema
energético mas penso que não é honesto apresentam um projecto como o
da barragem do Sabor como "verde". Os danos ambientais vão ser
enormes e irreversíveis. Por outro lado, não necessitamos de mais
falsas ilusões sobre milhares de postos de trabalho. Não era uma
"guerra" entre bons e maus. Era uma decisão importante que tinha de
ser meditada. O Governo decidiu por achar que era uma projecto "
verdadeiramente estratégico para o país". Está decidido. Mas ver
apresentada a construção de uma barragem como um dos grandes
objectivos da próxima década para o nosso pais é preocupante. Casos
como o Côa e o Alqueva deixaram-nos provavelmente todos anestesiados
e com pouca força para protestar. Donde estou não sei se houve
reacção de alguém ligado ao património arqueológico.
Espero os colegas arqueólogos, que irão o fazer o acompanhamento da
obra, recebam dados todos os meios e tenham todas as liberdades.
Custa-me dizer isto, mas no fundo, espero que não encontrem uma só
gravura....
Mila Simoes de Abreu
--
_[ ]_
/(*?*)\
Mila Simões de Abreu
Departamento de Geologia - Unidade de Arqueologia
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
Apartado 1013
5000-911 Vila Real (Portugal)
Ph: +351 259 350186 Fx: +351 259350480
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