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[Archport] Igreja Velha, de Alvaiazere

Subject :   [Archport] Igreja Velha, de Alvaiazere
From :   marioruisr@sapo.pt
Date :   Tue, 09 Oct 2007 17:26:18 +0100

Sobre a Igreja Velha, de Alvaiázere, que alguns arqueólogos pensavam ser uma
estação romana, publiquei este singelíssimo texto, que se pode considerar um
acrescento a um capítulo da obra "Viagens pela História de Alvaiázere":


O ALVAIAZERENSE, Ano XXVI, n.º 303, de 30 de Setembro de 2007, pág. 21


Uma Prospecção Arqueológica na Igreja Velha em 1899

MÁRIO RUI SIMÕES RODRIGUES

1. A primitiva Igreja Matriz de Alvaiázere

Até ao século XVI, a igreja paroquial de Alvaiázere não se situava no
núcleo da povoação, mas a «tres tiros de beesta1 da dita villa d aluaiazer
no caminho que vai pera a cidade de cojmbra»2, num local ainda hoje chamado
Igreja Velha.
Por uma visitação efectuada em 1536, sabemos que o templo tinha uma só nave,
sendo o chão ladrilhado e o tecto madeirado de castanho. No altar-mor existia
uma imagem de Santa Maria Madalena. Sobre o arco cruzeiro havia um crucifixo
com São João e Santa Maria. Possuía mais dois altares no corpo da igreja
revestidos de azulejo: um de Santa Ana e de Santo Antão, e outro de São Brás
e de Santa Margarida.
Certamente pelo incómodo que causaria aos fregueses a deslocação para a
antiga igreja matriz, o bispo de Coimbra decidiu a sua transferência para
dentro da vila. Em 1553 já se havia começado a construir o corpo da igreja,
esperando-se edificar a capela-mor, à «custa dos frutos do prior», logo que
fosse possível.
Junto da igreja paroquial situava-se o passal, que servia tanto para
enterramento dos fiéis defuntos, como para logradouro do templo e sustento do
pároco3.
Com a construção da nova igreja matriz na segunda metade do século XVI, o
primitivo templo terá caído em ruína ou poderá ter sido demolido4. Mas o
seu cemitério perdurou até à actualidade, apesar dos irreparáveis danos de
que foi sendo vítima, por devassa de curiosos em busca de achados, mas
principalmente pelas obras e edificações que na sua área se foram
realizando.

2. António dos Santos Rocha em Alvaiázere

António dos Santos Rocha, nascido na Figueira da Foz em 1853, cursou Direito na
Universidade de Coimbra. Mas, apesar dos seus reconhecidos méritos como
jurista, notabilizou-se sobretudo pelos muitos estudos históricos e
arqueológicos que realizou, mormente na sua terra natal, mas também em
variadas partes do País, como na Estremadura, na Beira e no Algarve.
Do seu entusiástico labor nasceu o Museu Municipal5 em 1894 e a Sociedade
Archeologica da Figueira da Foz em 1898.
Neste mesmo ano, por sugestão de Policarpo Marques Rosa, António dos Santos
Rocha escavou a Caverna do Bacelinho, situada no lugar da Porta6. E no ano
seguinte realizou uma prospecção arqueológica na Igreja Velha. De ambas as
intervenções legou-nos dois circunstanciados relatórios arqueológicos. A
Alvaiázere dedicou, ainda, um pequeno estudo sobre um objecto da Idade do
Bronze encontrado neste concelho7. No Museu Municipal Dr. Santos Rocha
conserva-se um importante espólio destas intervenções arqueológicas.

3. A prospecção arqueológica na Igreja Velha

A prospecção arqueológica de António dos Santos Rocha e dos seus
colaboradores na Igreja Velha ocorreu em Outubro de 18998. Poucos anos antes,
em 1892, o local havia sido visitado por outro entusiasta do estudo das
antiguidades, Francisco Ferraz de Macedo, que relacionou os vestígios aqui
encontrados com a civilização romana.
Ao invés deste investigador, António dos Santos Rocha situou cronologicamente
o cemitério da Igreja Velha no período medieval, baseando-se, para o efeito,
na tipologia das construções funerárias ali existentes, na ausência de
espólio compatível com a época romana e no achado de um dinheiro9 de D.
Afonso III.
O relatório do arqueólogo figueirense é precioso, tanto pela abundância dos
dados que nos faculta, como pelo rigor das informações que nos transmite,
permitindo colmatar as lacunas a que estamos irremediavelmente condenados
devido às sucessivas destruições perpetradas no local, quer pelas diversas
obras de melhoramento da estrada que cortou ao meio aquele espaço funerário,
quer pelas várias edificações urbanas erguidas sobre ele nos finais do
século XX e inícios do século XXI. A sua republicação constitui uma
autêntica exumação da memória histórica de um chão sagrado que serviu de
última morada a múltiplas gerações de alvaiazerenses, talvez desde os
inícios da centúria duodecentista, até à segunda metade de Quinhentos.

4. Documento 10

O cemiterio da Igreja Velha (Alvaiázere)

Pelo nosso intelligente amigo Sr. Polycarpo Marques Rosa, de Alvaiázere,
tivemos notícia do apparecimento de algumas sepulturas no sítio denominado
Igreja Velha, que fica ao norte da povoação. Elle disse-nos que taes
sepulturas consistiam em sarcophagos de pedra tapados com lages; e que havia
quem as attribuisse á epocha romana, posto que a elle Sr. Rosa parecessem
relativamente modernas.
Isto determinou-nos a ir a Alvaiázere fazer alguns estudos no interesse do
Museu da Figueira. De facto em 4 de Outubro11 ultimo estavamos no proprio
sítio da Igreja Velha, procedendo á exploração na presença do Sr. Rosa e
dos Srs. Francisco Ferreira Loureiro, nosso collega na direcção do Museu, e
Annibal de Brito Paes, alumno da Faculdade de Philosophia na Universidade.
O local que conserva particularmente o nome de Igreja Velha fica á esquerda do
caminho que vae do lado de Alvaiázere, e em nivel inferior ao do mesmo
caminho. Informou o Sr. Rosa que a tradição diz ter existido alli a antiga
igreja matriz da povoação; e nós vimos o solo juncado de fragmentos de telha
commum, indicando talvez os restos de um edificio.
Pelo norte d'este local, á direita do caminho, e contiguo a este, mas em
nivel mais elevado, está o cemiterio, estabelecido numa encosta. É provavel
que a porção d'esse caminho, que fica entre o sítio da Igreja e o
cemiterio, fizesse em tempo parte d'este, e contivesse sepulturas, pois que o
Sr. Rosa declara ter encontrado uma d'estas na orla meridional do mesmo
caminho.
Tambem reputamos provavel que na porção do caminho, que immediatamente se
prolonga para o norte do sítio da Igreja, estivesse em tempo uma parte do
cemiterio, porque este se manifesta na barreira que fica á direita da via; mas
do lado esquerdo d'esta, onde se diz ter existido um cruzeiro, a sondagem do
terreno não assignalou sepultura alguma.
Pelo norte do cemiterio, a algumas dezenas de metros, o caminho passa contiguo
ás ruinas de uma casa que, segundo a tradição indicada pelo Sr. Rosa, fôra
residencia do presbytero.
Não sabemos qual o numero aproximado de sepulturas que o cemiterio deve conter,
mas parece-nos exaggeradissimo o calculo de centenares, que alguns fazem12. Pelo
numero de sarcophagos que os vizinhos tem extrahido d'alli, para lhes servirem
de pias, pelos vestigios dos córtes feitos no terreno em consequencia das
profanações e explorações que nos precederam, córtes que quebraram a linha
do declive do solo, e ainda pela disposição e numero de sepulturas que
encontrámos a descoberto ou que foram descobertas durante o nosso trabalho, e
pelas sondagens que fizemos inutilmente em alguns pontos, onde aliás o solo
não apresentava indicios de remeximento, pensamos que devem reduzir-se muito
as proporções da necropole.
Nós apenas obtivemos as provas materiaes da existencia de onze sepulturas,
contando neste numero as que já tinham sido extrahidas antes da nossa
exploração.
Dois sarcophagos de pedra achavam-se descobertos, em parte por explorações
anteriores. Um estava cheio de terra; e o outro continha ainda uma grande
porção de ossos. Este ultimo não fôra inteiramente explorado; e nós
verificámos pela diversidade e desordem dos esqueletos, que elle estava
servindo de ossario como outras sepulturas em seguida descobertas pelas nossas
excavações.
D'esses tumulos, já privados das tampas, um tinha a fórma trapezoidal e era
feito de grés. O outro era formado de duas peças, uma rectangular, de grés,
que constituia mais de metade do comprimento da sepultura, e a restante de
calcareo, arredondada na extremidade.
O comprimento d'estes caixões de pedra era de 1m,65 e lm,75.
A fórma aproximada de corpo humano, que alguns dizem ter notado13 nestas
sepulturas, não existe: e nem a encontrámos nas que foram descobertas nas
nossas excavações.
Difficil nos foi logo ajuizar da epocha a que pertenceriam taes monumentos. Ao
princípio fizeram lembrar-nos os sarcophagos romanos, mas depois notámos
nelles differenças importantes. Por outro lado em todas as necropoles
luso-romanas que tinhamos explorado, nunca nos apparecêra sepultura alguma que
servisse meramente de ossario. Quando alguma tinha recebido successivas
inhumações, apparecia estendido o esqueleto do ultimo inhumado, e
agglomerados a seus pés os ossos dos inhumados anteriormente. Outras vezes
estes ultimos encontravam-se fóra da sepultura, esparsos por cima da tampa; e
até appareceu o exemplo de ter sido depositado um cadaver sobre o esqueleto de
outro inhumado anteriormente, sem que se dessem ao incommodo de desarranjar os
ossos!
Atacando o solo coberto de mato, onde nos pareceu não haver vestigios de
remeximento, notámos que estava durissimo, e que as raizes penetravam
profundamente nas camadas inferiores. O entulho continha muitos fragmentos da
telha curva.
Estes objectos fizeram-nos pensar na imbrex da epocha romana, porque os temos
encontrado com os mesmos caracteres em estações d'esta epocha; mas como
tambem eram semelhantes ás telhas dos tempos modernos e não appareciam
vestigios alguns da tegula, ou telha de rebordo, e de vasos romanos, não
ousámos attribui-los á antiguidade.
Entretanto uma pequena moeda de bronze foi encontrada no seio d'aquelle
entulho, por cima das sepulturas que em seguida appareceram. Essa moeda só foi
decifrada depois do nosso regresso, pelo Sr. Dr. Antonio Alvares Duarte Silva,
director da secção de numismatica do Museu; e por isso não influiu na
direcção que démos ás explorações.
A 0m,70 aproximadamente de profundidade estavam quatro fossas cobertas com
lages, orientadas no seu eixo maior, a LO. ou de ONO. a ESE. Uma não excedia
1m,2 no comprimento e 0m,3 na largura e na profundidade; e servia apenas de
ossario, onde se guardavam, em desordem, ossos de diversos esqueletos. As
outras com a fórma trapezoidal, mais ou menos arredondadas nas extremidades,
ou com a fórma de dois trapezios de alturas desiguaes unidos pelas bases,
medeiam no comprimento 1m,60 a 1m, 75, e na profundidade 0m,35 aproximadamente.
Duas d'estas tambem serviam de ossarios porque continham mais de um esqueleto,
cujas peças estavam misturadas e fóra da sua ordem anatomica.
Só uma das fossas continha um unico esqueleto, na sua disposição natural. O
corpo fôra inhumado sobre as costas, estendido horizontalmente, com a cabeça
para o lado de O. e os braços curvados para a parte inferior do ventre.
Outra excavação, pelo lado do sul dos dois sarcophagos mencionados, pôs a
descoberto um novo tumulo d'esta especie, feito de grés, com a fórma
trapezoidal, tendo a base do trapezio voltada para ONO.
Estava ainda tapada com uma grande lage; e não encontrámos vestigios de
remeximento no entulho que o envolvia, nem no depósito que encerrava. Medía o
monolitho no comprimento 2m,07, na largura 0m,72 em uma das extremidades e 0m,60
na outra, e na profundidade 0m,3 a 0m,4.
Este tumulo orientado de O. a ESE. tinha esculpida grosseiramente em relêvo na
face externa do lado ONO. uma cruz de fórma grega, isto é, de hastes iguaes.
Servia tambem de ossario. Dentro encontraram-se, envolvidos em terra, nove
cranios e muitos outros ossos humanos, fóra das suas relações anatomicas.
Tres cranios alinhados do lado do O., com a face voltada para E., e outros tres
alinhados do lado de E., com a face voltada para O., indicaram-nos que mãos
piedosas haviam disposto estes ossos com singular cuidado.
Em face de tal descoberta não nos resta dúvida que o cemiterio era christão:
mas de que epocha? A resposta foi dada pela moeda encontrada nos entulhos. Era
um dinheiro de D. Affonso III (seculo XIII).
A. DOS SANTOS ROCHA.

5. Notas

1 Três tiros de besta equivalem a cerca de 600 metros.

2 Torre do Tombo - Mesa da Consciência e Ordens: Ordem de Cristo/Convento de
Cristo, 268, fol. 41.

3 Para mais detalhes sobre a história da Igreja Matriz de Alvaiázere, veja-se
"A Igreja de Alvaiázere, seus Limites e Propriedades no Século XVI", in
MÁRIO RUI SIMÕES RODRIGUES, Viagens pela História de Alvaiázere,
Alvaiázere, Município de Alvaiázere, 2006, pp. 55-128.

4 Nenhuma das várias informações paroquiais do século XVIII se lhe refere, o
que constitui prova, dificilmente refutável, do seu desaparecimento.

5 Actualmente, esta instituição da Figueira da Foz, em homenagem ao seu
fundador, tem o nome de Museu Municipal Dr. Santos Rocha.

6 A. SANTOS ROCHA, "Estação luso-romana da caverna do Bacelinho, na Serra de
Alvaiázere", in Portugalia. Materiaes para o Estudo do Povo Portuguez, t. I,
fasc. 1 (1899), pp. 137-139.

7 A. SANTOS ROCHA, "Vestigio da epocha do bronze em Alvaiázere", in
Portugalia. Materiaes para o Estudo do Povo Portuguez, t. I, fasc. 1 (1899),
pp. 135-136.

8 Apesar de a revista O Arqueologo Português, onde o relatório foi publicado,
ter data de 1898, a prospecção arqueológica de António dos Santos Rocha na
Igreja Velha ocorreu, de facto, em 1899. É essa a data constante de um caderno
de apontamentos usado por este arqueólogo, existente no Museu Municipal Dr.
Santos Rocha. E a notícia do evento consta do Relatorio da Gerencia de
1899-1900, da Sociedade Archeologica da Figueira. Esta discrepância de datas
resulta do facto de, bastas vezes, as publicações periódicas de carácter
científico saírem a lume algum tempo depois da data oficialmente impressa.
Pode consultar-se uma reprodução deste Relatorio em Sociedade Arqueológica
da Figueira. 1898-1910. Centenário, Figueira da Foz, Museu Municipal Dr.
Santos Rocha, 1999.

9 É comum aparecerem moedas nas sepulturas medievais e modernas. Trata-se de um
costume de remota origem pagã, que foi assimilado pelas crenças cristãs, que
consiste em colocar um valor monetário no túmulo para pagamento de uma viagem
que o defunto faria após a morte. Muitas vezes, esta viagem seria a
peregrinação a Santiago de Compostela por quem não foi em vida visitar o
Apóstolo, fazendo jus ao ditado popular: «S. Tiago de Galiza é um cavaleiro
forte. Quem lá não for em vida, há-de ir lá depois da morte».

10 Publicado em O Arqueologo Português. Collecção Illustrada de Materiaes e
Notícias, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1898, pp. 81-84.

11 A data de 4 de Outubro referida neste relatório não coincide com a data
registada no caderno de apontamentos existente no Museu Municipal Dr. Santos
Rocha: 20 de Outubro de 1899. A Gazeta da Figueira, de 21 de Outubro de 1899,
refere-se aos achados arqueológicos da Igreja Velha, estabelecendo uma
similitude entre os seus sarcófagos e os que se encontraram na necrópole da
Granja do Ulmeiro, em Alfarelos.

12 Esta crítica reporta-se ao que escrevera Francisco Ferraz de Macedo no
opúsculo Luzitanos e Romanos em Villa Franca de Xira.

13 Idem.




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