[Archport] (sem assunto)
Já que a língua portuguesa também é património, aqui
vai um texto (reflectindo a visão brasileira) sobre o anunciado
acordo ortográfico, que vigorará a partir de Janeiro próximo (se
for assinado até lá...).
Graça
Encontro de
despedida
Os amigos reuniram-se à mesa do bar. Chegaram todos com um ar de
preocupação. Sabiam que, desta vez, havia algum assunto sério a
ser tratado entre as rodadas de cerveja geladíssima. Havia
algo de grave na voz do Trema quando receberam a convocação por
telefone.
Chegaram quase todos ao mesmo tempo. O Ponto, a Vírgula, a Crase, o
Ditongo, os gêmeos Acento Agudo e Acento Circunflexo, o Til -
que levou o sobrinho porque não tinha com quem deixá-lo --, o
Travessão e a Cedilha. O Sufixo, como sempre, chegou depois de todo
mundo.
Antes de pedir a primeira cerveja, o Trema foi logo falando, a voz
meio embargada.
-- Meus amigos, chamei todos vocês aqui porque o assunto é grave.
Não vou enrolar porque considero que vocês são como minha
família. Eu estou no fim. Meus dias estão contados.
O Travessão interveio, rápido.
-- Peraí. Não dá para engolir a seco uma notícia dessas. Ô,
Cafu, desce umas cervas aí, urgente, por favor!
Alguns fizeram cara de espanto. Pura encenação. Lêem jornais,
portanto, já sabiam. Outros, como o Ditongo e a Crase,
realmente se assustaram.
-- Como assim? Você tá brincando, Tre! -- disse a Crase, já com
os olhos marejados.
-- É a pura verdade. Pura e triste verdade. --Tomou um longo
gole de cerveja e explicou:
-- É a reforma ortográfica. Será implantada em 2008. Portanto,
no ano que vem eu não estarei mais aqui.
-- Não é possível! -- reagiu o Ditongo, como sempre
desavisado.
-- É, sim. Eu mesmo li meu anúncio fúnebre na Folha de
S.Paulo.
Tira um recorte amassado do bolso da calça. Quase chorando, lê
para os amigos:
-- Abre aspas: o fim do trema está decretado desde dezembro do ano
passado. Os dois pontos que ficam em cima da letra u
sobrevivem no corredor da morte à espera de seus algozes. Fecha
aspas.
Silêncio na mesa.
-- Como vêem, são meus últimos dias. Tantos anos de serviços
prestados à língua portuguesa não valeram nada. Simplesmente
decretaram dia e hora para minha morte.
-- Meu Deus. Que absurdo! -- reage a Cedilha, lutando para
segurar as lágrimas.
-- Pois é. Inventaram que é preciso unificar a ortografia entre os
oito países que usam a língua portuguesa. Argumentam que isso vai
aproximar as culturas. E eu, amigos, serei oferecido em
sacrifício.
Há um misto de perplexidade, revolta e pena em volta da mesa.
Algum burocrata da ortografia decidiu que eu sou inútil. Acham que
eu sou um ungüento aguado.
-- Aguado pode ser. Ungüento, não.
-- Unguento -- protesta o Travessão, sob o olhar de reprovação
geral.
-- Desculpe, mas vocês sabem: eu perco o amigo, mas não perco a
piada.
O Trema procura ignorar. Conhece o amigo há décadas. Sabe que ele
não perde a velha mania. Continua a conversa lamuriante.
-- Ainda quiseram me consolar, dizendo que eu, companheiro de vocês
em tantas jornadas, sobreviverei em nomes próprios. Balela. Eu
sobreviveria na Alemanha, com seus Günter e Müller da vida, mas
aqui, no Brasil, meu destino está selado.
Pedem mais cerveja.
-- Por isso eu chamei vocês. Fiz questão que fosse aqui no
Bar Azul, que a gente freqüenta desde o tempo da faculdade. Aqui
comemoramos momentos felizes e choramos momentos tristes. Logo, só
vocês poderão freqüentar isto aqui. Eu serei apenas
lembrança. Aliás, nem vocês poderão freqüentar. Terão de
frequentar.
Todos se abraçam. Alguém propõe um brinde, dizendo que a amizade
entre o grupo permanecerá para sempre, mesmo que um dia reste
apenas um para beber no bar. É nesse momento que notam a ausência
do Hífen.
-- Alguém sabe dele? -- pergunta o Trema.
O Acento Agudo sabe.
-- Não vem. Está deprimido. A reforma ortográfica também
mexeu com ele. O Hífen não será mais usado quando o segundo
elemento começa com s ou r. Ele já sabe que
nesses casos será substituído pela duplicação das consoantes.
Sacaram? No futuro só haverá antirreligioso, contrarregra,
antissemita. Ele também deixará de ser usado quando o prefixo
termina em vogal e o segundo elemento começa com uma vogal
diferente, como extraescolar, aeroespacial e
autoestrada.
-- O Hífen
nunca lidou muito bem com as perdas da vida -- lembra o Trema. Mas
pelo menos ele vai continuar existindo.
-- Todos nós saímos perdendo com essa reforma -- pondera um
dos gêmeos. -- Eu, Acento Circunflexo, por exemplo, vou ser
defenestrado das terceiras pessoas do plural do presente do indicativo
ou do subjuntivo dos verbos crer, dar, ler,
ver e seus derivados. Quando vocês lerem crêem,
vêem, lêem e dêem sentirão minha ausência. Também vão
me tirar das palavras terminadas em hiato oo. Quem tiver enjoo
no voo não terá minha companhia.
Seu irmão gêmeo também choraminga.
-- Vocês sabem que tudo que afeta meu irmão afeta a mim
também -- intervém o Acento Agudo. Eu perderei minha
função nos ditongos abertos ei e oi de palavras
paroxítonas. Não me querem mais em idéia , jibóia e
assembléia, por exemplo. Também ficarei de fora nas palavras
paroxítonas, com i e u tônicos, quando
precedidos de ditongo. Feiúra e baiúca passarão a
ser feiura e baiuca. Mas nesses casos tudo bem. Eu nunca
gostei de feiúra e baiúca. Duro mesmo é saber que
serei extirpado sem dó nas formas verbais que têm o acento
tônico na raiz, com "u" tônico precedido de
g ou q e seguido de e ou i. Modéstia à
parte, sempre me orgulhei de dar um ar aristocrático a algumas
formas de verbo. Ouçam bem: averigúe, apazigúe,
argúem. Sem mim, isso não terá a menor graça.
-- Só sobreviveremos em nossa integralidade nos livros da
antigüidade -- observa o Trema, melancólico. -- E pensar que
até antigüidade vai virar antiguidade... Imagine as
conseqüências dessa mudança. Quer dizer, as
consequências ...
A esta altura, já estão todos meio embriagados. O Ponto, sempre
otimista, lembra que pelo menos um membro da turma sairá
ganhando com a reforma.
-- O Alfabeto, gente. Vão incorporar ao Alfabeto as
letras k, w e y.
-- É por isso que ele não veio -- explica a Vírgula. Disse
que ia na Leroy Merlin porque agora vai ter de aumentar a casa.
Alguém chama o garçom.
-- Cafu, mais cerveja. Nós vamos agüentar firme, aqui com o
Trema. Vamos abrir uma trincheira etílica em defesa do nosso velho e
bom amigo.
Propõem outro brinde. E voltam a chamar o garçom, que já se
distanciava.
-- Traz também uma porção de lingüiça calabresa. Sem
cebola. Mas não esquece do trema, por favor!
Publicado em 27-08-07 pelo(a) wiki repórter Pacóla,
Campinas-SP