[Archport] Como saber o que os nossos antepassados escreveram há 2700 anos?
Como saber o que os nossos antepassados escreveram há 2700 anos?
Público, 26.09.2008, Luís Miguel Queirós
A estela de Almodôvar, a que agora se junta o recente achado de um
fragmento de cerâmica, na Andaluzia, vem dar novo ânimo ao estudo da
enigmática escrita do Sudoeste. Mas é bem possível que nunca venhamos
a saber ao certo o que dizem os textos que nos deixaram os antigos
habitantes do Alentejo e do Algarve
A escrita do Sudoeste, também chamada tartéssica ou sud-lusitana, é
muito provavelmente a mais antiga da Península Ibérica e pensa-se que
será das mais antigas da Europa. A descoberta, em Almodôvar, de uma
estela com 86 caracteres, pode agora impulsionar o estudo desta
escrita, cujos vestígios mais antigos datarão do século VIII a.C., e
que parece ter sido usada, quase exclusivamente, em inscrições
funerárias.
O que distingue a placa de xisto de Almodôvar das pouco menos de uma
centena de estelas semelhantes já descobertas no interior alentejano,
no Algarve e nas regiões espanholas da Andaluzia e da Extremadura é
não apenas a sua invulgar extensão, mas também o facto de o texto
quase não apresentar lacunas.
É cedo, no entanto, para admitir que os epigrafistas possam vir, em
breve, a conseguir perceber o que os nossos antepassados escreveram há
2700 anos. Amílcar Guerra, que dirige, com Carlos Fabião, os trabalhos
arqueológicos em Mesas do Castelinho, no concelho de Almodôvar, onde a
estela foi encontrada, sublinha que a maioria das inscrições que se
conhece é altamente fragmentária, o que dificulta a sua interpretação.
"Trabalhamos com textos muito reduzidos, às vezes de apenas um ou dois
signos, não há sequências extensas e faltam letras", diz o arqueólogo.
Decifrar uma língua a partir de elementos tão escassos é, afirma, "um
caso sério", sobretudo se não se tem a sorte de dispor de um documento
que indique equivalências com línguas já conhecidas. "Não temos
nenhuma Pedra de Roseta", lamenta Amílcar Guerra, numa referência ao
bloco de granito que - apresentando o mesmo texto em grego e em
egípcio hieroglífico e demótico - permitiu a Champollion decifrar os
hieróglifos.
E o exercício torna-se ainda mais espinhoso, dado ser muito raro que
as inscrições incluam indicações que permitam perceber onde acaba uma
palavra e começa outra. Ainda assim, os arqueólogos portugueses
tiveram o seu momento de sorte, quando descobriram o chamado
"silabário de Espanca", uma estela que apresenta, em duas linhas, o
mesmo grupo de 27 caracteres diferentes, em que a linha de cima revela
um escriba hábil, ao passo que a de baixo é uma cópia tosca da
anterior. Não se trata exactamente de um alfabeto, mas de um sistema
misto, com 12 caracteres completados por 15 símbolos silábicos.
Uma das virtudes desta descoberta foi a de confirmar a origem fenícia
da escrita do Sudoeste, já que muitos caracteres revelavam afinidades
com os fenícios e, quase sempre, apareciam colocados pela mesma ordem.
O silabário de Espanca é também um testemunho de como esta escrita era
ensinada, já que tudo indica que a linha de cima foi escrita por um
mestre e a de baixo por um aprendiz. Na verdade, nada de muito
diferente do que se faz hoje, quando um aluno da primeira classe copia
para o caderno o abecedário que o professor escreveu no quadro negro.
A diferença é que o ensino estava longe de ser generalizado. "Só um
número muito restrito de pessoas saberia escrever", aventa Amílcar
Guerra, que está convencido de que nem as figuras ilustres que tinham
direito a inscrição funerária teriam sabido ler o que lá estava.
Uma nova descoberta
A convicção de que quase todos os testemunhos encontrados correspondem
a textos escritos em lápides tumulares não resulta de terem sido
encontrados em túmulos. Na verdade, um dos principais obstáculos ao
estudo da escrita do Sudoeste é o facto de as estelas terem sido quase
sempre encontradas fora de contextos arqueológicos susceptíveis de
fornecer indicações precisas sobre o uso a que se destinavam e a data
em que teriam sido produzidas. No entanto, a circunstância de quase
todas elas apresentarem uma zona limpa de quaisquer caracteres indica
que essa parte estaria enterrada e que, portanto, seriam feitas para
estar de pé, o que permite deduzir que se trataria de lápides.
Uma descoberta muito recente, de que o próprio Amílcar Guerra só esta
semana teve conhecimento através de um colega espanhol, José Antonio
Correa, veio, todavia, sugerir que a escrita do Sudoeste pode ter tido
outros usos sociais. "Apareceu na Andaluzia uma inscrição em cerâmica,
que datará de meados do século VII." Segundo o arqueólogo, trata-se da
primeira peça em cerâmica que contém garantidamente caracteres desta
escrita. E como os fragmentos de cerâmica podem datar-se com alguma
precisão, este achado vem também confirmar o que já se pensava sobre o
período em que teria florescido a escrita do Sudoeste, geralmente
situado entre os séculos VIII e V a.C.
Apesar da sua importância, a descoberta não deverá pôr em causa a tese
de que esta escrita era conhecida apenas por uma elite, que a ela
tivera acesso através dos fenícios e que a usava como símbolo de
prestígio social. Luís Raposo, director do Museu Nacional de
Arqueologia, sugere que não seria de esperar, de resto, uma difusão
mais generalizada, uma vez que "o uso social alargado da escrita é um
fenómeno que se associa, geralmente, à existência de um Estado, ou de
cidades-Estado", patamar que esta região peninsular ainda não teria
atingido na época.
Embora a considere menos plausível do que a hipótese do uso por uma
elite autóctone, Raposo nota que tem havido quem defenda a tese de que
as estelas encontradas "pertenceriam a colonos, comerciantes ou
sacerdotes, que morreram aqui".
Se hoje o termo "escrita do Sudoeste" é mais frequentemente empregado
do que o de "escrita tartéssica", isso talvez se deva ao desejo de
evitar um terreno armadilhado, já que a segunda expressão remete para
um eventual reino de Tartessos, que continua a provocar grande
polémica entre os historiadores. Sabe-se que Tartessos era a
designação que os antigos historiadores gregos davam àquela que teria
sido a primeira civilização do Ocidente, alegadamente nascida na zona
compreendida entre as actuais cidades espanholas de Huelva, Sevilha e
Cádis, e que se teria desenvolvido nas margens do rio Tartessos, a que
os romanos depois chamaram Baetis e os árabes Guadalquivir.
O mítico reino de Tartessos
Há vários documentos que referem lendários reis de Tartessos, desde o
fundador mitológico, Gerião, até aquele que teria sido o seu último
monarca, Argantonio, que, segundo Heródoto, viveu mais de cem anos, o
que sugere uma eventual sucessão de líderes homónimos. Mito amplamente
difundido na literatura espanhola, a existência de um reino de
Tartessos continua, todavia, a suscitar dúvidas. Dois arqueólogos
espanhóis, Álvaro Fernández Flores e Araceli Rodríguez Azogue,
publicaram recentemente um livro, Tartessos Desvelado, no qual
defendem que "Tartessos não foi uma civilização indígena, mas sim a
realidade que os gregos encontraram quando chegaram à Península
Ibérica no século VII a.C.: um conglomerado de colónias fundadas por
orientais, que nelas viviam já há dois séculos".
De resto, como nota Amílcar Guerra, a hipótese tartéssica, mais do que
esclarecer a escrita do Sudoeste, lança sobre ela um novo enigma, já
que, nota o arqueólogo, a esmagadora maioria das estelas foi
encontrada no interior do Alentejo e no Algarve, em zonas que estariam
já "completamente fora das fronteiras do reino de Tartessos".
Mas há epigrafistas, como o espanhol Javier de Hoz, que admitem que a
própria estela de Espanca poderia ser o testemunho de uma hipotética
escrita tartéssica, da qual derivaria a escrita do Sudoeste.
A teoria mais aceite é, contudo, a de que a escrita do Sudoeste
corresponde à adaptação da escrita fenícia a uma língua diferente, que
implicou a invenção de uma série de novos símbolos silábicos, que não
existem no fenício e no grego. A par de caracteres que representam as
cinco vogais e algumas das consoantes, o sistema inclui símbolos que
correspondem a uma consoante seguida de determinada vogal. Tanto
quanto se crê, não havia distinção escrita entre "b" e "p", "t e "d" e
"k" e "g". Em rigor, aliás, não existem caracteres que designem estes
sons, mas sim um conjunto de 15 símbolos que correspondem a cada uma
destas três duplas de consoantes seguidas de cada uma das vogais.
Embora não seja impossível que a língua falada não distinguisse, por
exemplo, "b" e o "p", Amílcar Guerra acha mais provável que o fizesse,
e que o leitor, perante um texto escrito, decidisse pelo contexto.
Lê-se mas não se percebe
É também hoje razoavelmente consensual que a escrita do Sudoeste tem
precedência sobre as restantes escritas paleo-hispânicas, que nela
teriam a sua origem próxima. Dada a evidência da matriz fenícia, a
hipótese parece ser a mais natural, já que os fenícios chegaram pelo
Mediterrâneo e, portanto, terão contactado primeiro com as populações
do Sul de Espanha e do Algarve.
Quer a escrita Meridional, do Sudeste da Península Ibérica, quer a
Levantina, no Nordeste, apresentam grandes afinidades com a escrita do
Sudoeste, ainda que na Levantina os textos tendam a ser escritos da
esquerda para a direita, ao contrário do que acontece nas outras duas.
Neste aspecto, aproxima-se da escrita Greco-Ibérica, provável
adaptação do alfabeto jónio, de que só se conhecem testemunhos numa
área muito restrita, na zona de Alicante e Murcia. Conhecem-se ainda
escritas mais tardias, derivadas destas, como a Celtibérica, no
interior de Espanha, desenvolvida a partir da escrita Levantina, que
terá sido usada nos séculos II e I a.C.
Este parentesco gráfico não garante, no entanto, uma identidade
linguística. Pensa-se que as escritas Meridional e Levantina
corresponderiam a variantes de uma língua a que se convencionou chamar
ibérica, ao passo que não está excluída a possibilidade de que a do
Sudoeste pudesse ser a transcrição de uma hipotética língua
tartéssica.
Ainda estará longe o dia em que os arqueólogos poderão ler estas
estelas como nós lemos um texto em português, ou noutra língua que
conheçamos. Mas, num sentido mais restrito, conseguem lê-los, visto
que, na maior parte dos casos, sabem a que sons correspondem os
símbolos, o que, com hesitações, permitiria transcrever as inscrições
em caracteres latinos. E julgam ter já reconhecido alguns
antropónimos, que conhecem de outros contextos. É também provável que
uma série de caracteres que tende a repetir-se nas várias estelas
corresponda a uma fórmula habitual das inscrições funerárias, como
"aqui jaz", ou algo de equivalente.
Mesmo este conhecimento ainda incipiente parecerá, ao leigo, bastante
extraordinário. Como é que se olha para símbolos de uma língua
inteiramente desconhecida, e desaparecida há mais de dois mil anos, e
se sabe a que sons correspondem aquelas garatujas?
Desde logo, as afinidades muito fortes com o alfabeto fenício
facilitam a tarefa, pois seria altamente improvável que importassem os
caracteres para depois fazer corresponder, por exemplo, o símbolo que
indica a vogal "a" à consoante "n". É claro que a língua fenícia
também se extinguiu há muito, mas está hoje bem estudada,
designadamente através do modo como se foi transfigurando em várias
línguas posteriores. De resto, como assinala Amílcar Guerra, também
não temos quaisquer testemunhos de como era pronunciado o latim.
Podemos apenas deduzi-lo a partir do que sabemos das línguas vivas que
nele tiveram origem.
No entanto, só uma parte dos caracteres da escrita do Sudoeste tem
correspondência ou afinidade com o fenício. Para identificar a que
sons correspondem os restantes, o processo é mais complexo. Uma das
estratégias é ver o que falta, a partir do que "deveria ter um sistema
fonético numa língua normal".
Já a possibilidade de que se venha a decifrar verdadeiramente esta
escrita continua a parecer bastante remota. "Talvez o conseguíssemos,
se tivéssemos dez vezes o material de que dispomos", aventa Amílcar
Guerra. E dependeria sempre muito de se saber se a língua expressa por
esta escrita é, ou não, indo-europeia. Há quem alvitre que sim, mas a
maioria dos especialistas tende a achar que o mais provável é que o
não seja, o que, a confirmar-se, complicará muito a tarefa dos
decifradores.