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[Archport] Posição da PP-CULT sobre a "Proposta de Lei que aprova o regime jurídico dos bens do domínio público

To :   "ARCHPORT" <Archport@ci.uc.pt>
Subject :   [Archport] Posição da PP-CULT sobre a "Proposta de Lei que aprova o regime jurídico dos bens do domínio público
From :   "ICOM Portugal" <info@icom-portugal.org>
Date :   Fri, 28 Nov 2008 23:01:53 -0000

 
 
No seguimento do debate promovido pela PLATAFORMA PELO PATRIMÓNIO CULTURAL no âmbito da discussão pública da "Proposta de Lei sobre o Regime Geral dos Bens do Domínio Público" , dá-se agora conhecimento do parecer emitido pela PP-CULT.
Dada a gravidade da matéria em apreço, desde já apelamos à divulgação e e eventual futura mobilização de todos os interessados, em defesa do Património Cultural português.
O Secretariado da PP-CULT.
 
 

Posição da Plataforma pelo Património Cultural (PP-CULT) acerca da ?Proposta da Lei sobre o regime geral dos bens do domínio público?

(emitida no âmbito da discussão pública promovida pelo Ministério das Finanças)

 

 

 

1. Considerações prévias

 

A Plataforma pelo Património Cultural (PP-CULT) é composta por um conjunto de 21 associações profissionais e cívicas de âmbito nacional e regional com actuação na área do Património Cultural *. Esta circunstância confere-lhe uma especial representatividade, a qual se traduz num reforçado direito/dever de intervenção em todas as matérias susceptíveis de interessar àquela área. A presente Proposta de Lei, ao elencar explicitamente na sua enumeração de ?bens do domínio público? uma parte significativa dos bens, móveis e imóveis, constituintes do património cultural português reveste uma importância decisiva para a defesa do interesse nacional neste campo e para o desenvolvimento das políticas públicas que melhor o acautelem e potenciem.

 

Tendo presente estas considerações, a PP-CULT promoveu um debate público sobre a Proposta de Lei em referência, que teve lugar em 27 de Novembro de 2008, no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, e no qual participaram cerca de algumas dezenas de especialistas e cidadãos interessados, vários deles em representação de estruturas associativas, integradas ou não na Plataforma.

 

As considerações que passamos a apresentar têm presente as intervenções e o sentimento unanimemente expresso no debate acima referido. Porém, devido aos prazos estabelecidos para a discussão pública, trata-se agora somente de uma primeira tomada de posição, de princípio, deixando para fase ulterior do processo legislativo quer a elaboração de pareceres mais desenvolvidos, com a incorporação de documentos técnicos e artigos específicos entretanto produzidos, quer a apresentação institucional e pública dos nossos pontos de vista, quer ainda e sobretudo a mobilização da sociedade civil para a defesa das causas que nos animam e consideramos constituírem imperativos patrióticos de mobilização nacional.

 

 

2. Medidas cautelares propostas

 

Sob a forma de uma aparente normalidade legislativa, evidenciada pelo reduzido tempo consagrado à sua discussão pública e pela quase nula divulgação oficial que lhe foi dispensada, bem ao invés das campanhas publicitárias usadas para promover medidas governativas a que se atribui especial significado, a Proposta de Lei em apreço constitui uma verdadeira revolução de regime e de projecto de País, pelas implicações que tem na alteração profunda, senão inversão absoluta em muitos aspectos, do adquirido social que séculos de história têm vindo a sedimentar no que respeita à relação dos cidadãos com o seu património colectivo, mormente com o património a que se atribui valorização histórico-cultural.

 

Esta radicalidade aconselharia desde logo uma primeira medida cautelar, a saber:

 

[1] SUSPENSÃO IMEDIATA DO PRESENTE PROCESSO LEGISLATIVO para audição prévia da sociedade civil e eventual futura apresentação de outra Proposta de Lei.

 

Todavia, se esta medida ? única verdadeiramente compatível com a vivência democrática e a dimensão cívica desta temática ? não puder ser tomada, aconselha-se pelo menos o:

 

[2] ALARGAMENTO SUBSTANCIAL DO PRAZO DE DISCUSSÃO PÚBLICA, pelo menos por mais dois meses, dada a aproximação da quadra natalícia e as naturais dificuldades de reflexão e encontro existentes nesta ocasião.

 

Ainda assim, não sendo de todo possível adoptar nenhuma das medidas anteriores ou, mesmo que o sejam, como primeiro contributo para uma eventual reconsideração substantiva da matéria em apreço, propõe-se, desde já, que seja feita a:

 

[3] EXCLUSÃO DO ARTICULADO DA PROPOSTA DE LEI DOS BENS DO PATRIMÓNIO CULTURAL, sem prejuízo dos mesmos poderem ser enunciados (com as correcções adiante expressas) aquando da enumeração inicial dos bens integrantes do domínio público, remetendo-se porém a sua regulamentação para legislação específica a ser elaborada subsequentemente.

 

 

3. Questões estratégicas

 

As medidas cautelares referidas são justificadas, como se disse, pela radicalidade com que a presente Proposta de Lei entende alterar a relação dos cidadãos e do Estado com os bens que constituem a memória do País. Com efeito, com esta Proposta de Lei invertem-se políticas e posturas sociais de décadas ou séculos, dando origem a situações de extrema gravidade social, como sejam:

 

a) A adopção de uma linha de fundo que pode ser resumida na expressão usada no preâmbulo, segundo a qual os bens do domínio público constituem uma «riqueza colectiva a explorar». Nesta expressão está contida a essência do que nos separa, e separa o património cultural, do conceito de País que subjaz aos autores do articulado, tanto na sua dimensão técnica jurídica, como sobretudo na sua profunda motivação política. No nosso entendimento, e no de todas as gerações que nos precederam, assim como dos respectivos políticos e legisladores, o património cultural da Nação não existe para que dele nos apropriemos como ?riqueza a explorar?, ?activo imobiliário? ou ?mercadoria em armazém?. Muito pelo contrário: ele existe e defende-se precisamente porque traduz um sistema de valores e memórias insusceptíveis de comércio jurídico privado ? e isso lhes confere o seu singular estatuto, isso o identifica;

 

b) O aparente abandono e mesmo inversão da linha política estratégica prosseguida por todos os regimes e governos, com mais de um século de execução persistente, visando a garantia da conservação dos mais valiosos e estratégicos bens patrimoniais de Portugal, através do seu acréscimo para a Nação, recorrendo ao que tecnicamente é conhecido como o resgate desses bens por parte do Estado, o qual teve acolhimento privilegiado em toda a legislação de enquadramento, incluindo na que actualmente vigora, ou seja, na Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, a Lei de Bases do Património Cultural Português. Com efeito, o regaste pelo Estado dos bens patrimoniais nacionais, tem sido prosseguido consistentemente desde finais do século XIX e conheceu, aliás, um ímpeto especial nas duas últimas décadas, com o uso de importantes fundos nacionais e europeus, postos ao serviço da aquisição de sítios, monumentos e conjuntos arquitectónicos e arqueológicos. Ou seja, à política consistente de resgate, que se prossegue desde o final da Monarquia, opõe-se agora a da venda e redução a valor venal dos bens do património cultural integrantes do domínio público, constituindo esta Proposta de Lei uma espécie de manual de estímulo e facilitação para esse efeito;

 

c) O regresso da tutela estratégica do património cultural da Nação à área das Finanças, feito contra todo o sentido da história e da vida social, depois de décadas de evolução em sentido contrário, com a inclusão sucessiva destes bens nas áreas das Obras Públicas, da Educação e, mais tarde, da Cultura. Com efeito, esta Proposta de Lei conduz na prática a que as políticas patrimoniais, incluindo a mais básica de todas, qual seja, a da criação de condições para a fruição pública, abandonem a esfera da Cultura, para ? dois séculos depois e em oposição às políticas de mundo ocidental - de novo ser assumida pelas Finanças, que determinam o âmbito e modalidades da sua gestão;

 

d) O ponto anterior está directamente relacionado com um outro equívoco conceptual, ou assumido erro político, que séculos e décadas anteriores tinham parecido denunciar e fazer abandonar definitivamente, qual seja, o da assimilação entre ?bens do domínio público? em geral e bens do património cultural, como se estes constituíssem recursos e representassem valores idênticos àqueles e pudessem neles ser subsumidos, sendo tratados dentro dos mesmos enquadramentos legais e regulamentares, como mera mercadoria sujeita a leis venais do mercado;

 

e) O não tratamento e consideração dos bens do património cultural como conjuntos integrados e não somente, nem principalmente, como peças isoladas (isoladas entre si e isoladas do território envolvente), menos ainda como artigos matriciais. Dito de outra forma: depois de décadas em que se conseguiu, nas políticas públicas, defender a necessidade de uma avaliação e gestão integrada dos bens do património cultural, entendidos como conjuntos coerentes, inseridos em zonas de protecção e territórios específicos, pretende agora adoptar-se um modelo que representa um penoso regresso ao conceito de objecto isolado e de artigo matricial, em oposição às políticas defendidas pela própria União Europeia e por todos os órgãos de consulta internacionais dedicados à salvaguarda do Património Cultural, no âmbito da UNESCO;

 

f) A abertura, quase se diria o incentivo, à inclusão dos bens do património cultural de propriedade pública na esfera do comércio jurídico privado, em contradição absoluta com o princípio contrário que toda a legislação anterior acolhia (inclusive no recente DL nº 280/2007). Esta matéria constitui, aliás, uma inovação de tal forma chocante que estamos certos vir a constituir um escândalo nacional, quando dela se tomar colectivamente consciência;

 

g) O abandono da ênfase colocada na responsabilização do Estado relativamente ao bom uso, para finalidades públicas, dos bens do património cultural do domínio público. Com efeito, ao invés de reafirmar o princípio responsabilizante anterior, retirando dele consequências operacionais úteis ao ser reforço, dir-se-ia que esta Proposta de Lei aposta em sentido contrário, isto é, no seu não cumprimento, de tal sorte que se orientam desde já as administrações e os gestores públicos para obrigações contrárias, como sejam as da denúncia do mau uso dado a esses bens, em ordem a potenciar a sua privatização ou arrendamento, indo-se ao ponto de instituir um princípio da ?desafectação implícita? ? uma verdadeira inversão do ónus que deveria servir de suporte a toda a legislação em matéria de património cultural público.

 

 

4. Articulado proposto: algumas perplexidades

 

Como já dissemos, não pretendemos realizar uma apreciação detalhada da Proposta de Lei em discussão, porque materialmente não nos deixa o tempo, nem entendemos ser o essencial nesta fase. Muitos menos pretendemos, perante a sua extrema tecnicidade, apresentar alternativas usando a mesma linguagem jurídica. As nossas objecções situam-se, como já ficou claro, bem mais a montante, no domínio conceptual e como tal e esperamos que possam ser entendidas e atendidas, conduzindo à apresentação de novo articulado legal.

 

Em todo o caso, nem mesmo assim deixamos de chamar a atenção para algumas perplexidades que a leitura do articulado nos deixou.

 

Assim:

 

a) Em matéria de património cultural edificado a Proposta de Lei refere-se apenas a ?monumentos classificados como bens de interesse nacional?. Que entendimento exacto tem o legislador desta expressão ? Incluirá ela somente, como legitimamente se pode supor atendendo aos termos usados na Lei nº 107/2001, os monumentos nacionais sob tutela do Estado central ? E sendo assim, que lugar é atribuído aos imóveis de interesse público, que são a grande maioria dos bens do património cultural português, incluindo os de tutela pública ? E qual o estatuto dos monumentos nacionais, imóveis de interesse público e de valor concelhio, sob tutela pública regional ou local?

 

b) Por outro lado, atendendo a que frequentemente os bens classificados como de ?interesse público? constituem apenas elementos muito parcelares de conjuntos coerentes mais amplos (por exemplo: uma igreja, um pano de muralhas, uma única varanda ou janela até), como será feita a gestão integrada do todo ?

 

c) E para que servirá a actual política de classificação do património, que desde o início do século XX tem sido encarada como um dever do Estado Português, nomeadamente como forma de garantir a protecção de bens imóveis considerados culturalmente relevantes e evitar a descaracterização das suas envolventes ?

 

d) Como explicar a total ausência de referência aos bens arqueológicos (móveis e imóveis), especialmente se atendermos ao facto que os mesmos serem considerados como ?património nacional? (cf., por exemplo, nº 3, do art. 74º, da lei nº 107/2001) e de, por essa razão, integrarem o domínio público ?

 

e) Como entender a constitucionalidade de uma norma que estabelece que um cidadão português residente nos Açores, ao abrigo do direito de acção popular, não possa por exemplo e apenas para dar referir casos extremos, interferir em processos de mudança da dominialidade de bens como a Torre de Belém, com o estatuto de Monumento Nacional e inscrita na Lista do Património da Humanidade ?

 

f) Como entender a possibilidade de transmissão para privados, sem a intervenção vinculativa de um organismo do Estado responsável pela gestão da sua conservação (o Ministério da Cultura através do IGESPAR.IP ou do IMC.IP, por exemplo), da dominialidade de bens patrimoniais culturais do Estado com o estatuto equiparável ao obras-primas da arte (ou das ciências e génio humano), impossíveis de avaliar pecuniariamente e de uma extrema subjectividade em termos de determinação do seu valor ou impacto económico ?

 

g) Como garantir a efectiva gestão da conservação de bens culturais materiais e imateriais classificados como do mais elevado nível de importância no quadro da aplicação da Lei nº 107/2001, por exemplo os bens estratégicos com estatuto de monumentos nacionais, também os conjuntos e sítios, ou de territórios e paisagens culturais, depois de alienados pelo Estado ?

 

h) Em geral como interpretar o carácter frequentemente ambíguo, difuso ou mesmo confuso, de muitas das normas estabelecidas ? Será que conceitos como os de ?efectiva utilização? ou ?função de utilidade pública? serão definidos pelas Finanças ?

 

  

 

5. ? Em conclusão

 

Em face do que fica exposto, a Plataforma pelo Património Cultural (PP-CULT) reafirma que considera inaceitável esta Proposta de Lei, a qual, para além de outros aspectos já enumerados, introduz o princípio da admissibilidade da alienação não apenas da propriedade, mas também das  funções de utilidade pública por parte de bens integrantes do património cultural, qualquer que seja o seu nível de classificação legal e quaisquer que sejam os seus detentores. Ora, a função de utilidade pública está ínsita na  própria identificação patrimonial destes bens e constitui uma referência inegociável, que lhe advém da força identitária que a Nação em primeiro lugar, e mais tarde o legislador, entendeu conferir-lhes. Trata-se de bens excluídos do domínio jurídico do comércio privado, imprescritíveis e impenhoráveis. Esta Proposta de Lei, ao introduzir princípios opostos, contrariando de um modo chocante as aspirações sociais, aliás amplamente consensuais, desbarata um esforço de anos, quer em termos de políticas adoptadas, como em termos financeiros.

 

Consideramos ainda que esta Proposta de Lei contraria em grande medida os princípios adoptados em termos europeus no âmbito do património cultural, bem como as convenções internacionais sobre a salvaguarda do património que o próprio Estado Português subscreveu.

 

Porque a hora é grave, importa dizer que a promulgação desta lei, tal como agora é apresentada, representaria grave dano para a conservação dos mais valiosos e estratégicos bens patrimoniais de Portugal, só comparável ao processo de desamortização, nacionalização e venda dos bens da Coroa e da Igreja, que ocorreu na primeira metade do século XIX ! 

 

Pode compreender-se a necessidade de uma gestão eficiente dos bens do domínio público, muitos dos quais se encontram subaproveitados, como sucede com inúmeras instalações militares sem valor histórico, inactivas desde a extinção do serviço militar obrigatório. Constitui, todavia, um erro grosseiro misturar esse universo de bens com o património cultural da Nação, como se faz nesta Proposta de Lei. Será esta uma opção consciente ou apenas um lapso de consequência dramáticas, se não for corrigido a tempo?

 

Esperamos, apesar de tudo, que seja este o caso e que, nestas circunstâncias, este nosso apelo seja tido em devida consideração, em nome da democracia e do desenvolvimento sustentável do país.

 

Lisboa, em 27 de Novembro de 2008.



*  Associações integrantes da PP-CULT, em 27 de Novembro de 2008:

AAP: Associação dos Arqueólogos Portugueses, APA: Associação Portuguesa de Antropologia, APA: Associação Profissional de Arqueólogos, APAC: Associação Portuguesa dos Amigos dos Castelos, APAI: Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial, APJSH: Associação Portuguesa de Jardins e Sítios Históricos, APOM: Associação Portuguesa de Museologia, APOREM: Associação Portuguesa das Empresas com Museus, APPI: Associação Portuguesa para o Património Industrial, ARP: Associação Profissional de Conservadores-Restauradores de Portugal, BAD: Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas, CPADA: Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente, FAMP: Federação dos Amigos dos Museus de Portugal, ICOM PT: Comissão Nacional Portuguesa do ICOM, ICOMOS PT: Comissão Nacional Portuguesa do ICOMOS, OPRURB: Ofícios do Património e Reabilitação Urbana, PROGESTUR: Associação Portuguesa de Turismo Cultural, RSF: Restauradores Sem Fronteiras.

E ainda, com o estatuto de entidades associadas:

ADIM: Associação de Defesa dos Interesses de Monsaraz, ALAGAMARES: Associação Cultural de Sintra, PRO-EVORA: Grupo Pró-Evora.

 
 
 
 

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