No
seguimento do debate promovido pela PLATAFORMA PELO PATRIMÓNIO CULTURAL no âmbito da
discussão pública da "Proposta de Lei sobre o Regime Geral dos Bens do Domínio Público" , dá-se agora
conhecimento do parecer emitido pela PP-CULT.
Dada a
gravidade da matéria em apreço, desde já apelamos à divulgação e e eventual
futura mobilização de todos os interessados, em defesa do Património Cultural
português.
O
Secretariado da PP-CULT.
Posição
da Plataforma pelo Património Cultural (PP-CULT) acerca da ?Proposta da Lei
sobre o regime geral dos bens do domínio
público? (emitida no âmbito da
discussão pública promovida pelo Ministério das
Finanças) 1. Considerações
prévias A Plataforma pelo
Património Cultural (PP-CULT) é composta por um conjunto de 21 associações
profissionais e cívicas de âmbito nacional e regional com actuação na área do
Património Cultural *. Esta circunstância confere-lhe uma especial representatividade,
a qual se traduz num reforçado direito/dever de intervenção em todas as matérias
susceptíveis de interessar àquela área. A presente Proposta de Lei, ao elencar
explicitamente na sua enumeração de ?bens do domínio público? uma parte
significativa dos bens, móveis e imóveis, constituintes do património cultural
português reveste uma importância decisiva para a defesa do interesse nacional
neste campo e para o desenvolvimento das políticas públicas que melhor o
acautelem e potenciem. Tendo presente estas
considerações, a PP-CULT promoveu um debate público sobre a Proposta de Lei em
referência, que teve lugar em 27 de Novembro de 2008, no Padrão dos
Descobrimentos, em Lisboa, e no qual participaram cerca de algumas dezenas de
especialistas e cidadãos interessados, vários deles em representação de
estruturas associativas, integradas ou não na
Plataforma. As considerações que
passamos a apresentar têm presente as intervenções e o sentimento unanimemente
expresso no debate acima referido. Porém, devido aos prazos estabelecidos para a
discussão pública, trata-se agora somente de uma primeira tomada de posição, de
princípio, deixando para fase ulterior do processo legislativo quer a elaboração
de pareceres mais desenvolvidos, com a incorporação de documentos técnicos e
artigos específicos entretanto produzidos, quer a apresentação institucional e
pública dos nossos pontos de vista, quer ainda e sobretudo a mobilização da
sociedade civil para a defesa das causas que nos animam e consideramos
constituírem imperativos patrióticos de mobilização
nacional. 2. Medidas cautelares
propostas Sob a forma de uma
aparente normalidade legislativa, evidenciada pelo reduzido tempo consagrado à
sua discussão pública e pela quase nula divulgação oficial que lhe foi
dispensada, bem ao invés das campanhas publicitárias usadas para promover
medidas governativas a que se atribui especial significado, a Proposta de Lei em
apreço constitui uma verdadeira revolução de regime e de projecto de País, pelas
implicações que tem na alteração profunda, senão inversão absoluta em muitos
aspectos, do adquirido social que séculos de história têm vindo a sedimentar no
que respeita à relação dos cidadãos com o seu património colectivo, mormente com
o património a que se atribui valorização histórico-cultural.
Esta radicalidade
aconselharia desde logo uma primeira medida cautelar, a
saber: [1] SUSPENSÃO
IMEDIATA DO PRESENTE PROCESSO LEGISLATIVO para audição prévia da sociedade
civil e eventual futura apresentação de outra Proposta de
Lei. Todavia, se esta medida
? única verdadeiramente compatível com a vivência democrática e a dimensão
cívica desta temática ? não puder ser tomada, aconselha-se pelo menos
o: [2] ALARGAMENTO
SUBSTANCIAL DO PRAZO DE DISCUSSÃO PÚBLICA, pelo menos por mais dois meses,
dada a aproximação da quadra natalícia e as naturais dificuldades de reflexão e
encontro existentes nesta ocasião. Ainda assim, não sendo
de todo possível adoptar nenhuma das medidas anteriores ou, mesmo que o sejam,
como primeiro contributo para uma eventual reconsideração substantiva da matéria
em apreço, propõe-se, desde já, que seja feita a: [3] EXCLUSÃO DO
ARTICULADO DA PROPOSTA DE LEI DOS BENS DO PATRIMÓNIO CULTURAL, sem prejuízo
dos mesmos poderem ser enunciados (com as correcções adiante expressas) aquando
da enumeração inicial dos bens integrantes do domínio público, remetendo-se
porém a sua regulamentação para legislação específica a ser elaborada
subsequentemente. 3. Questões
estratégicas As medidas cautelares
referidas são justificadas, como se disse, pela radicalidade com que a presente
Proposta de Lei entende alterar a relação dos cidadãos e do Estado com os bens
que constituem a memória do País. Com efeito, com esta Proposta de Lei
invertem-se políticas e posturas sociais de décadas ou séculos, dando origem a
situações de extrema gravidade social, como sejam: a) A adopção de uma
linha de fundo que pode ser resumida na expressão usada no preâmbulo, segundo a
qual os bens do domínio público constituem uma «riqueza colectiva a explorar». Nesta
expressão está contida a essência do que nos separa, e separa o património
cultural, do conceito de País que subjaz aos autores do articulado, tanto na sua
dimensão técnica jurídica, como sobretudo na sua profunda motivação política. No
nosso entendimento, e no de todas as gerações que nos precederam, assim como dos
respectivos políticos e legisladores, o património cultural da Nação não existe
para que dele nos apropriemos como ?riqueza a explorar?, ?activo imobiliário? ou
?mercadoria em armazém?. Muito pelo contrário: ele existe e defende-se
precisamente porque traduz um sistema de valores e memórias insusceptíveis de
comércio jurídico privado ? e isso lhes confere o seu singular estatuto, isso o
identifica; b) O aparente abandono e
mesmo inversão da linha política estratégica prosseguida por todos os regimes e
governos, com mais de um século de execução persistente, visando a garantia da
conservação dos mais valiosos e estratégicos bens patrimoniais de Portugal,
através do seu acréscimo para a Nação, recorrendo ao que tecnicamente é
conhecido como o resgate desses bens por parte do Estado, o qual teve
acolhimento privilegiado em toda a legislação de enquadramento, incluindo na que
actualmente vigora, ou seja, na Lei n.º
107/2001, de 8 de Setembro, a
Lei de Bases do Património Cultural Português. Com efeito, o regaste pelo
Estado dos bens patrimoniais nacionais, tem sido prosseguido consistentemente
desde finais do século XIX e conheceu, aliás, um ímpeto especial nas duas
últimas décadas, com o uso de importantes fundos nacionais e europeus, postos ao
serviço da aquisição de sítios, monumentos e conjuntos arquitectónicos e
arqueológicos. Ou seja, à política consistente de resgate, que se prossegue
desde o final da Monarquia, opõe-se agora a da venda e redução a valor venal dos
bens do património cultural integrantes do domínio público, constituindo
esta Proposta de Lei uma espécie de manual de estímulo e facilitação para esse
efeito; c) O regresso da tutela
estratégica do património cultural da Nação à área das Finanças, feito contra
todo o sentido da história e da vida social, depois de décadas de evolução em
sentido contrário, com a inclusão sucessiva destes bens nas áreas das Obras
Públicas, da Educação e, mais tarde, da Cultura. Com efeito, esta Proposta de
Lei conduz na prática a que as políticas patrimoniais, incluindo a mais básica
de todas, qual seja, a da criação de condições para a fruição pública, abandonem
a esfera da Cultura, para ? dois séculos depois e em oposição às políticas de
mundo ocidental - de novo ser assumida pelas Finanças, que determinam o âmbito e
modalidades da sua gestão; d) O ponto anterior está
directamente relacionado com um outro equívoco conceptual, ou assumido erro
político, que séculos e décadas anteriores tinham parecido denunciar e fazer
abandonar definitivamente, qual seja, o da assimilação entre ?bens do domínio
público? em geral e bens do património cultural, como se estes constituíssem
recursos e representassem valores idênticos àqueles e pudessem neles ser
subsumidos, sendo tratados dentro dos mesmos enquadramentos legais e
regulamentares, como mera mercadoria sujeita a leis venais do
mercado; e) O não tratamento e
consideração dos bens do património cultural como conjuntos integrados e não
somente, nem principalmente, como peças isoladas (isoladas entre si e isoladas
do território envolvente), menos ainda como artigos matriciais. Dito de outra
forma: depois de décadas em que se conseguiu, nas políticas públicas, defender a
necessidade de uma avaliação e gestão integrada dos bens do património cultural,
entendidos como conjuntos coerentes, inseridos em zonas de protecção e
territórios específicos, pretende agora adoptar-se um modelo que representa um
penoso regresso ao conceito de objecto isolado e de artigo matricial, em
oposição às políticas defendidas pela própria União Europeia e por todos os
órgãos de consulta internacionais dedicados à salvaguarda do Património
Cultural, no âmbito da UNESCO; f) A abertura, quase se
diria o incentivo, à inclusão dos bens do património cultural de propriedade
pública na esfera do comércio jurídico privado, em contradição absoluta com o
princípio contrário que toda a legislação anterior acolhia (inclusive no recente
DL nº 280/2007). Esta matéria constitui, aliás, uma inovação de tal forma
chocante que estamos certos vir a constituir um escândalo nacional, quando dela
se tomar colectivamente consciência; g) O abandono da ênfase
colocada na responsabilização do Estado relativamente ao bom uso, para
finalidades públicas, dos bens do património cultural do domínio público. Com
efeito, ao invés de reafirmar o princípio responsabilizante anterior, retirando
dele consequências operacionais úteis ao ser reforço, dir-se-ia que esta
Proposta de Lei aposta em sentido contrário, isto é, no seu não cumprimento, de
tal sorte que se orientam desde já as administrações e os gestores públicos para
obrigações contrárias, como sejam as da denúncia do mau uso dado a esses bens,
em ordem a potenciar a sua privatização ou arrendamento, indo-se ao ponto de
instituir um princípio da ?desafectação implícita? ? uma verdadeira inversão do
ónus que deveria servir de suporte a toda a legislação em matéria de património
cultural público. 4. Articulado proposto:
algumas perplexidades Como já dissemos, não
pretendemos realizar uma apreciação detalhada da Proposta de Lei em discussão,
porque materialmente não nos deixa o tempo, nem entendemos ser o essencial nesta
fase. Muitos menos pretendemos, perante a sua extrema tecnicidade, apresentar
alternativas usando a mesma linguagem jurídica. As nossas objecções situam-se,
como já ficou claro, bem mais a montante, no domínio conceptual e como tal e
esperamos que possam ser entendidas e atendidas, conduzindo à apresentação de
novo articulado legal. Em todo o caso, nem
mesmo assim deixamos de chamar a atenção para algumas perplexidades que a
leitura do articulado nos deixou. Assim: a) Em matéria de
património cultural edificado a Proposta de Lei refere-se apenas a ?monumentos
classificados como bens de interesse nacional?. Que entendimento exacto tem o
legislador desta expressão ? Incluirá ela somente, como legitimamente se pode
supor atendendo aos termos usados na Lei nº 107/2001, os monumentos nacionais
sob tutela do Estado central ? E sendo assim, que lugar é atribuído aos imóveis
de interesse público, que são a grande maioria dos bens do património cultural
português, incluindo os de tutela pública ? E qual o estatuto dos monumentos
nacionais, imóveis de interesse público e de valor concelhio, sob tutela pública
regional ou local? b) Por outro lado,
atendendo a que frequentemente os bens classificados como de ?interesse público?
constituem apenas elementos muito parcelares de conjuntos coerentes mais amplos
(por exemplo: uma igreja, um pano de muralhas, uma única varanda ou janela até),
como será feita a gestão integrada do todo ? c) E para que servirá a
actual política de classificação do património, que desde o início do século XX
tem sido encarada como um dever do Estado Português, nomeadamente como forma de
garantir a protecção de bens imóveis considerados culturalmente relevantes e
evitar a descaracterização das suas envolventes ? d) Como explicar a total
ausência de referência aos bens arqueológicos (móveis e imóveis), especialmente
se atendermos ao facto que os mesmos serem considerados como ?património
nacional? (cf., por exemplo, nº 3, do art. 74º, da lei nº 107/2001) e de, por
essa razão, integrarem o domínio público ? e) Como entender a
constitucionalidade de uma norma que estabelece que um cidadão português
residente nos Açores, ao abrigo do direito de acção popular, não possa por
exemplo e apenas para dar referir casos extremos, interferir em processos de
mudança da dominialidade de bens como a Torre de Belém, com o estatuto de
Monumento Nacional e inscrita na Lista do Património da Humanidade
? f) Como entender a
possibilidade de transmissão para privados, sem a intervenção vinculativa de um
organismo do Estado responsável pela gestão da sua conservação (o Ministério da
Cultura através do IGESPAR.IP ou do IMC.IP, por exemplo), da dominialidade de
bens patrimoniais culturais do Estado com o estatuto equiparável ao obras-primas
da arte (ou das ciências e génio humano), impossíveis de avaliar pecuniariamente
e de uma extrema subjectividade em termos de determinação do seu valor ou
impacto económico ? g) Como garantir a
efectiva gestão da conservação de bens culturais materiais e imateriais
classificados como do mais elevado nível de importância no quadro da aplicação
da Lei nº 107/2001, por exemplo os bens estratégicos com estatuto de monumentos
nacionais, também os conjuntos e sítios, ou de territórios e paisagens
culturais, depois de alienados pelo Estado ? h) Em geral como
interpretar o carácter frequentemente ambíguo, difuso ou mesmo confuso, de
muitas das normas estabelecidas ? Será que conceitos como os de ?efectiva
utilização? ou ?função de utilidade pública? serão definidos pelas Finanças ?
5. ? Em
conclusão Em face do que fica exposto, a Plataforma pelo Património Cultural
(PP-CULT) reafirma que considera inaceitável esta Proposta de Lei, a qual, para
além de outros aspectos já enumerados, introduz o princípio da admissibilidade
da alienação não apenas da propriedade, mas também das funções de utilidade pública por parte
de bens integrantes do património cultural, qualquer que seja o seu nível
de classificação legal e quaisquer que sejam os seus detentores. Ora, a função
de utilidade pública está ínsita na
própria identificação patrimonial destes bens e constitui uma referência
inegociável, que lhe advém da força identitária que a Nação em primeiro lugar, e
mais tarde o legislador, entendeu conferir-lhes. Trata-se de bens excluídos do
domínio jurídico do comércio privado, imprescritíveis e impenhoráveis. Esta
Proposta de Lei, ao introduzir princípios opostos, contrariando de um modo
chocante as aspirações sociais, aliás amplamente consensuais, desbarata um
esforço de anos, quer em termos de políticas adoptadas, como em termos
financeiros. Consideramos ainda que esta Proposta de Lei contraria em grande
medida os princípios adoptados em termos europeus no âmbito do património
cultural, bem como as convenções internacionais sobre a salvaguarda do
património que o próprio Estado Português
subscreveu. Porque a hora é
grave, importa dizer que a promulgação desta lei, tal como agora é apresentada,
representaria grave dano para a
conservação dos mais valiosos e estratégicos bens patrimoniais de Portugal, só
comparável ao processo de
desamortização, nacionalização e venda dos bens da Coroa e da Igreja, que
ocorreu na primeira metade do século XIX !
Pode compreender-se a
necessidade de uma gestão eficiente dos bens do domínio público, muitos dos
quais se encontram subaproveitados, como sucede com inúmeras instalações
militares sem valor histórico, inactivas desde a extinção do serviço militar
obrigatório. Constitui, todavia, um erro grosseiro misturar esse universo de
bens com o património cultural da Nação, como se faz nesta Proposta de Lei. Será
esta uma opção consciente ou apenas um lapso de consequência dramáticas, se não
for corrigido a tempo? Esperamos, apesar de
tudo, que seja este o caso e que, nestas circunstâncias, este nosso apelo seja
tido em devida consideração, em nome da democracia e do desenvolvimento
sustentável do país. Lisboa, em 27 de
Novembro de 2008. *
Associações integrantes da PP-CULT, em 27 de Novembro de
2008: AAP:
Associação dos Arqueólogos Portugueses, APA: Associação Portuguesa de
Antropologia, APA: Associação Profissional de Arqueólogos, APAC: Associação
Portuguesa dos Amigos dos Castelos, APAI: Associação Portuguesa de Arqueologia
Industrial, APJSH: Associação Portuguesa de Jardins e Sítios Históricos, APOM:
Associação Portuguesa de Museologia, APOREM: Associação Portuguesa das Empresas
com Museus, APPI: Associação Portuguesa para o Património Industrial, ARP:
Associação Profissional de Conservadores-Restauradores de Portugal, BAD:
Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas, CPADA:
Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente, FAMP: Federação
dos Amigos dos Museus de Portugal, ICOM PT: Comissão Nacional Portuguesa do
ICOM, ICOMOS PT: Comissão Nacional Portuguesa do ICOMOS, OPRURB: Ofícios do
Património e Reabilitação Urbana, PROGESTUR: Associação Portuguesa de Turismo
Cultural, RSF: Restauradores Sem Fronteiras. E ainda,
com o estatuto de entidades associadas: ADIM:
Associação de Defesa dos Interesses de Monsaraz, ALAGAMARES: Associação Cultural
de Sintra, PRO-EVORA: Grupo
Pró-Evora. |
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