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[Archport] Ainda sobre a Palestina

To :   "Archport" <archport@ci.uc.pt>
Subject :   [Archport] Ainda sobre a Palestina
From :   "Rui Gomes Coelho" <ruigomescoelho@gmail.com>
Date :   Mon, 12 Jan 2009 20:24:21 -0000

Esta questão do que tem a arqueologia a ver com política (e com o mundo, em última instância) só me faz lembrar do eterno e explícito problema de Alberto Caeiro: perante a negação absoluta da metafísica, o que se constrói senão uma outra metafísica?

 

Para muitos politólogos (como Philippe Schmitter, insuspeito do que chamam de “lutas político-partidárias”), à partida, assume-se que qualquer acontecimento social é potencialmente político, num sentido abrangente e que vai beber à própria origem etimológica do termo. Então vamos lá ver: o problema aqui não é saber se se deve politizar a arqueologia ou não, enquanto ciência social. A arqueologia é, precisamente por ser uma ciência social (feita por pessoas, sobre pessoas, para pessoas) inerentemente política. E a verdade é que a melhor forma de confrontarmos as circunstâncias intrínsecas a esse dado é precisamente através da compreensão e crítica (e eventual transformação) da complexidade da sua teia de interesses, processos e objectivos.

 

A mim isto parece-me evidente desde a raiz: a arqueologia nasceu e foi construída em determinados contextos sociais; ao longo da sua já relativamente longa história, dela fizeram parte as agendas mais diversas, sustentadas pelos grupos mais diversos. Não é por acaso que o rei de Nápoles mandou escavar Pompeia; que a Europa tenha enviado missões antropológicas e arqueológicas para as suas colónias; que a arqueologia integrou a Junta Nacional de Educação durante o Estado Novo; que a “questão Côa” tenha acontecido em determinado momento, com determinadas expectativas por parte de todos os seus actores, e que se tenha realizado sob diversas formas. Não é por acaso também que os inquéritos processualistas e pós-processualistas tenham nascido no mundo anglo-saxónico, e a arqueologia marxista na URSS. A história da própria institucionalização da arqueologia (veja-se o caso do nosso país, para não irmos mais longe) é marcada por acontecimentos políticos muito concretos, e naturalmente tudo isso tem impactos diversos nos processos de investigação arqueológica. As preocupações com o património que se protege e não protege, assim como com o retorno social da investigação arqueológica são atitudes políticas de primeira instância, porque prevêem uma intervenção clara na sociedade em que é produzida, visando a justificação da própria arqueologia como actividade e até a transformação crítica da comunidade. Como introdução a este assunto, vale bem a pena ler o clássico A history of archaeological thought (1989) de Bruce Trigger, que foi publicado em castelhano pela Crítica (1992). Em Portugal são essenciais os trabalhos de Ana Cristina Martins, Carlos Fabião, João Luís Cardoso e Katina Lillios, mais para o século XIX e primeira metade do século XX, e a AAP publicou um volume exclusivamente sobre a construção da arqueologia no século XX.

 

Parece-me por isso um pouco ingénuo assumir que aos arqueólogos só dizem respeito os aspectos técnicos e metodológicos da profissão, ou ainda que os resultados da investigação estejam imaculados do que esteja fora da arqueologia. Surpreende-me, sobretudo, porque desde os anos de 1970-1980 que as críticas pós-processualistas vieram pondo em causa a candura científica do positivismo em arqueologia. Pelo mundo inteiro. Certo é que a arqueologia dos nossos dias vive uma diversidade teórica e debates de potencialidades imensas. A imparcialidade depende sobretudo da atitude consciente, crítica e meticulosa sobre o que andamos a fazer (é preciso dizer que, no limite, os profissionais das ciências naturais e exactas dificilmente vêem a arqueologia, a história, a antropologia ou a sociologia como ciências). Invocá-la sem perceber o conteúdo e o que a rodeia, é perigoso.

 

E acho especialmente perigoso que não haja consciência destes aspectos por uma razão essencial: se não tivermos as ferramentas necessárias para identificar as condicionantes da nossa acção científica e profissional e não tentarmos lidar com elas, mais facilmente seremos enrolados e pressionados por factores de índole ideológica, ou outros (o código deontológico da APA, embora não sendo obrigatório a toda a comunidade arqueológica, é por todos mais ou menos assumido; o §7 incide precisamente sobre esta questão).

 

Daqui volto rapidamente à questão de Israel e da Palestina, e do património cultural no meio de um conflito armado. Como já disse em mensagens anteriores, a experiência histórica mostra-nos como o património cultural foi e é manipulado e até destruído em conflitos do género por questões que nada têm a ver com aspectos técnicos e metodológicos da arqueologia enquanto ciência. Sendo pragmático, não me parece que a actividade arqueológica decorra normalmente num contexto de guerra, e tenho a certeza absoluta que as pressões serão muitas (imagine-se o que uma intervenção arqueológica israelita no terraço das mesquitas em Jerusalém, buscando o Templo, pode suscitar junto da comunidade islâmica). Por outro lado estamos a assistir àquilo que já muitas vezes aconteceu no passado: destroem-se as marcas identitárias de um determinado grupo em certo território para obliterar a sua consciência história e obliterar as suas pretensões a esse território, ao mesmo tempo que se justificam as pretensões dos invasores.

 

Os arqueólogos e as pessoas que mais directamente lidam com o património cultural são os primeiros a tomar consciência disto. Não se deve denunciar a negligência e destruição premeditadas do património por parte de um grupo armado? Conhecendo e ignorando tornamo-nos cúmplices daquilo que é, no fim de contas, uma verdadeira operação ideológica com fins sinistros e proveitos sociais realmente duvidosos.

 

Quanto ao ponto aqui levantado sobre a pertinência de em Portugal se levantarem questões sobre a arqueologia no Médio Oriente, acho que não há muito a dizer. Acho que a ciência há muito ultrapassou as questões fronteiriças e quilométricas, e prova disso é existem instituições, congressos e colaborações internacionais em projectos que se baseiam geograficamente em lugares bem longe da origem dos seus protagonistas. Além disso estamos a falar de uma região que é uma referência para todos nós, em termos culturais, e sobretudo acho que este tipo de questões não têm fronteiras. É evidente que começo por me preocupar com o que se passa no sítio onde nasci e vivo, mas também sou sensível ao resto. É uma questão de humanidade. Basta ver que em Lima, no Perú, houve uma concentração de arqueólogos em torno da questão que originou toda esta discussão.

 

Sobre o resto: para sermos respeitados pela sociedade enquanto profissionais temos de nos relacionar com a sociedade. E tal coisa faz-se pensando e discutindo. Infelizmente isso nem sempre parece existir no meio arqueológico português.

 

Saudações

 

PS: Bem a propósito, valerá a pena ler o que António Valera escreve em Irrealidade Prodigiosa: http://irrealidadeprodigiosa.blogspot.com/2009/01/0030-irrealidade-20.html

 


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