Esta questão do que tem a arqueologia a ver com política (e
com o mundo, em última instância) só me faz lembrar do eterno e explícito
problema de Alberto Caeiro: perante a negação absoluta da metafísica, o que se
constrói senão uma outra metafísica? Para muitos politólogos (como Philippe Schmitter, insuspeito
do que chamam de “lutas político-partidárias”), à partida,
assume-se que qualquer acontecimento social é potencialmente político, num
sentido abrangente e que vai beber à própria origem etimológica do termo.
Então vamos lá ver: o problema aqui não é saber se se deve politizar a
arqueologia ou não, enquanto ciência social. A arqueologia é, precisamente por
ser uma ciência social (feita por pessoas, sobre pessoas, para pessoas)
inerentemente política. E a verdade é que a melhor forma de confrontarmos as
circunstâncias intrínsecas a esse dado é precisamente através da compreensão e
crítica (e eventual transformação) da complexidade da sua teia de interesses,
processos e objectivos. A mim isto parece-me evidente desde a raiz: a arqueologia
nasceu e foi construída em determinados contextos sociais; ao longo da sua já
relativamente longa história, dela fizeram parte as agendas mais diversas,
sustentadas pelos grupos mais diversos. Não é por acaso que o rei de Nápoles
mandou escavar Pompeia; que a Europa tenha enviado missões antropológicas e
arqueológicas para as suas colónias; que a arqueologia integrou a Junta
Nacional de Educação durante o Estado Novo; que a “questão Côa”
tenha acontecido em determinado momento, com determinadas expectativas por
parte de todos os seus actores, e que se tenha realizado sob diversas formas.
Não é por acaso também que os inquéritos processualistas e pós-processualistas
tenham nascido no mundo anglo-saxónico, e a arqueologia marxista na URSS. A
história da própria institucionalização da arqueologia (veja-se o caso do nosso
país, para não irmos mais longe) é marcada por acontecimentos políticos muito
concretos, e naturalmente tudo isso tem impactos diversos nos processos de
investigação arqueológica. As preocupações com o património que se protege e
não protege, assim como com o retorno social da investigação arqueológica são
atitudes políticas de primeira instância, porque prevêem uma intervenção clara
na sociedade em que é produzida, visando a justificação da própria arqueologia
como actividade e até a transformação crítica da comunidade. Como introdução a
este assunto, vale bem a pena ler o clássico A
history of archaeological thought (1989) de Bruce Trigger, que foi
publicado em castelhano pela Crítica (1992). Em Portugal são essenciais os
trabalhos de Ana Cristina Martins, Carlos Fabião, João Luís Cardoso e Katina
Lillios, mais para o século XIX e primeira metade do século XX, e a AAP
publicou um volume exclusivamente sobre a construção da arqueologia no século
XX. Parece-me por isso um pouco ingénuo assumir que aos
arqueólogos só dizem respeito os aspectos técnicos e metodológicos da
profissão, ou ainda que os resultados da investigação estejam imaculados do que
esteja fora da arqueologia. Surpreende-me, sobretudo, porque desde os anos de
1970-1980 que as críticas pós-processualistas vieram pondo em causa a candura
científica do positivismo em arqueologia. Pelo mundo inteiro. Certo é que a
arqueologia dos nossos dias vive uma diversidade teórica e debates de
potencialidades imensas. A imparcialidade depende sobretudo da atitude
consciente, crítica e meticulosa sobre o que andamos a fazer (é preciso dizer
que, no limite, os profissionais das ciências naturais e exactas dificilmente
vêem a arqueologia, a história, a antropologia ou a sociologia como ciências).
Invocá-la sem perceber o conteúdo e o que a rodeia, é perigoso. E acho especialmente perigoso que não haja consciência destes
aspectos por uma razão essencial: se não tivermos as ferramentas necessárias
para identificar as condicionantes da nossa acção científica e profissional e
não tentarmos lidar com elas, mais facilmente seremos enrolados e pressionados
por factores de índole ideológica, ou outros (o código deontológico da APA,
embora não sendo obrigatório a toda a comunidade arqueológica, é por todos mais
ou menos assumido; o §7 incide precisamente sobre esta questão). Daqui volto rapidamente à questão de Israel e da Palestina,
e do património cultural no meio de um conflito armado. Como já disse em
mensagens anteriores, a experiência histórica mostra-nos como o património
cultural foi e é manipulado e até destruído em conflitos do género por questões
que nada têm a ver com aspectos técnicos e metodológicos da arqueologia
enquanto ciência. Sendo pragmático, não me parece que a actividade arqueológica
decorra normalmente num contexto de guerra, e tenho a certeza absoluta que as
pressões serão muitas (imagine-se o que uma intervenção arqueológica israelita
no terraço das mesquitas em Jerusalém, buscando o Templo, pode suscitar junto
da comunidade islâmica). Por outro lado estamos a assistir àquilo que já muitas
vezes aconteceu no passado: destroem-se as marcas identitárias de um
determinado grupo em certo território para obliterar a sua consciência história
e obliterar as suas pretensões a esse território, ao mesmo tempo que se
justificam as pretensões dos invasores. Os arqueólogos e as pessoas que mais directamente lidam com
o património cultural são os primeiros a tomar consciência disto. Não se deve
denunciar a negligência e destruição premeditadas do património por parte de um
grupo armado? Conhecendo e ignorando tornamo-nos cúmplices daquilo que é, no
fim de contas, uma verdadeira operação ideológica com fins sinistros e
proveitos sociais realmente duvidosos. Quanto ao ponto aqui levantado sobre a pertinência de em
Portugal se levantarem questões sobre a arqueologia no Médio Oriente, acho que
não há muito a dizer. Acho que a ciência há muito ultrapassou as questões
fronteiriças e quilométricas, e prova disso é existem instituições, congressos
e colaborações internacionais em projectos que se baseiam geograficamente em
lugares bem longe da origem dos seus protagonistas. Além disso estamos a falar
de uma região que é uma referência para todos nós, em termos culturais, e
sobretudo acho que este tipo de questões não têm fronteiras. É evidente que
começo por me preocupar com o que se passa no sítio onde nasci e vivo, mas também
sou sensível ao resto. É uma questão de humanidade. Basta ver que em Lima, no
Perú, houve uma concentração só de arqueólogos em torno da questão que
originou toda esta discussão. Sobre o resto: para sermos respeitados pela sociedade
enquanto profissionais temos de nos relacionar com a sociedade. E tal coisa
faz-se pensando e discutindo. Infelizmente isso nem sempre parece existir no
meio arqueológico português. Saudações PS: Bem a propósito, valerá a pena ler o que António Valera
escreve em Irrealidade Prodigiosa:
http://irrealidadeprodigiosa.blogspot.com/2009/01/0030-irrealidade-20.html |
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