"O Património Arqueológico Subaquático: um tesouro a preservar
in Revista da Armada Março 2009
ENQUADRAMENTO
“O que nos interessa sobretudo na História será dar (…) conteúdo eterno ao que acaba por aparecer como um empoeirado, como um arqueológico episódio do passado (Agostinho da Silva - filósofo).”
Quando falamos de património arqueológico subaquático é neste interesse de dar conteúdo eterno que estamos essencialmente a pensar. Queremos que estas peças de cultura sejam investigadas, analisadas, preservadas e possam ser partilhadas como património comum da humanidade.
Este património é diversificado e é constituído, principalmente, pelos mais de três milhões de navios naufragados, que se estima existirem, desde o mediático Titanic até aos navios de Cristóvão Colombo, para além de outros vestígios subaquáticos que não navios. Conforme é referido numa brochura da UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization), “um naufrágio, assim como uma ruína submersa é uma cápsula do tempo esperando para ser revelada”. Todos estes vestígios podem contribuir para o conhecimento histórico e social da humanidade e são um testemunho inestimável da cultura das civilizações passadas.
O interesse pelos sítios e artefactos arqueológicos são diversificados. Vão desde a comunidade científica que quer preservar e analisar esta valiosa fonte de informação, até às empresas de turismo, em geral, e em particular as dedicadas ao mergulho de lazer, e ao público, que continua a frequentar os museus sobre estas matérias (v.g. o navio Mary Rose em Portsmouth). Dentro destes interesses, há um que não pode ser esquecido: as empresas que desenvolvem actividades como caçadoras de tesouros para fins comerciais e cujo principal objectivo é a obtenção de lucro. A exploração, recolha e comércio destes artefactos são actividades lucrativas, normalmente associadas à utilização de técnicas destrutivas que fazem desaparecer todo o conhecimento (v.g. furto e utilização de explosivos).
Tendo em atenção que as actividades subaquáticas são milenares e sempre foram fundamentalmente relacionadas com actividades militares e económicas (resgate de bens perdidos nos naufrágios e recolha de recursos naturais), porquê esta preocupação relativamente recente com este património? As preocupações arqueológicas surgem quando o património começa a ficar em perigo. Desde meados do século XX, quando foi inventado o escafandro autónomo (Self Contained Underwater Breathing Apparatus - SCUBA), que se passaram a atingir maiores profundidades no mergulho. Actualmente já se consegue descer a 140 metros com circuito fechado, para além da possibilidade de serem usados aparelhos não tripulados.
Assim, com o progresso nas técnicas de exploração e com uma acessibilidade a estes equipamentos sem precedentes, os fundos marinhos e os vestígios arqueológicos e históricos nele assentes ficam exploráveis por empresas e pessoas sem preparação, nem formação, mas essencialmente sem escrúpulos. Como referiu Francisco Alves (Director do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática), citado pelo jornal Expresso, sobre a nau portuguesa descoberta na Namíbia: trazemos conhecimento para casa, conhecimento para o futuro. É a diferença entre nós e os caçadores de tesouros, cujo objectivo é o lucro. De facto, a profundidade já não protege da depredação e destruição.
A RESPOSTA DO DIREITO
A resposta que a comunidade internacional está a dar às actividades dos caçadores de tesouros, que procuram as lacunas no ordenamento jurídico, para, na falta de protecção jurídica, poderem explorar e apropriar-se de objectos com vista só ao lucro, passou pela criação de uma convenção internacional, a Convenção da UNESCO para a Protecção do Património Cultural Subaquático (Convenção da UNESCO de 2001). Esta Convenção entrou em vigor para os Estados-partes em 02 de Janeiro de 2009, integrando Portugal o grupo inicial de vinte países, ao ter ratificado a Convenção em 2006.
A recepção desta Convenção no ordenamento jurídico Português implicará uma alteração do quadro legal nacional. Este contém diversos diplomas que dispõem sobre o património cultural subaquático, no que concerne à competência, ao regime e às disposições sancionatórias. Assim, a competência nesta matéria, no continente, é do IGESPAR, I.P. – Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Decreto-Lei n.º 215/2006, de 27 de Outubro, entre outros), embora outras entidades também tenham nas suas atribuições a preservação e a protecção deste património (v.g. Sistema de Autoridade Marítima).
Quanto ao regime que rege a actividade arqueológica subaquática, está em vigor o Decreto-Lei n.º 164/97, de 27 de Junho. Este diploma já não respondia, de forma cabal, à necessidade de protecção do património cultural subaquático, mesmo antes da entrada em vigor da Convenção, pois só “protege” o que se encontra para o interior das 12 milhas náuticas, i.e. mar territorial e águas interiores, para além de outras águas que pertencem ao domínio público lacustre e fluvial. Deste modo, este diploma não inclui ainda, no seu quadro sancionatório, contra-ordenações relativas a trabalhos ilícitos na zona contígua (ZC - entre as 12 e as 24 milhas náuticas), cuja legitimidade para fiscalizar encontra fundamento no art. 303.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), em conjugação com o Decreto-Lei n.º 34/2006, de 28 de Julho (“Lei do mar”).
Importa aqui salientar que a fiscalização é uma tarefa essencial. Nesta matéria, o paradigma é colaboração, pois embora a actividade de fiscalização do cumprimento das disposições do diploma seja da competência do IGESPAR, este pode solicitar a colaboração de outras entidades. É no âmbito desta necessidade de colaboração que surgiu o Decreto Regulamentar (DR) n.º 86/2007, de 12 de Dezembro, que visa regular, de forma integrada, a articulação, nos espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional. No que a esta matéria diz respeito, o DR dispõe que, na ZC, os órgãos locais da Autoridade Marítima adoptam medidas cautelares e urgentes de fiscalização e de polícia.
Devido aos problemas já explicitados no início, a comunidade internacional vem desde há alguns anos a mostrar a sua preocupação e a recomendar a criação de uma convenção sobre a matéria ora em apreço, pois a CNUDM só dispõe de dois artigos relevantes (arts 149.º e 303.º), que têm sido considerados manifestamente insuficientes. Neste sentido, foram dados diversos passos ao longo dos anos, desde recomendações, a declarações de princípio, projectos de convenções por entidades relevantes (UNESCO, Conselho da Europa, Cultural Heritage Committee da International Law Association), ou mesmo a Carta do ICOMOS (International Council on Monuments and Sites) sobre a Protecção e Gestão do Património Cultural Subaquático. Finalmente, a 2 de Novembro de 2001, surge a já citada Convenção da UNESCO, que ora entrou em vigor. Trata‑se de uma Convenção específica para esta matéria e reflecte a consciência da comunidade internacional relativamente à importância cultural e histórica deste património e os perigos crescentes associados e pela qual efectuaremos um breve excurso.
A Convenção define património cultural subaquático como todos os vestígios da existência do homem de carácter parcial ou totalmente, periódica ou continuamente, submersos há, pelo menos, 100 anos. Um princípio essencial é que os Estados têm obrigação de conservar o património cultural subaquático em benefício da humanidade. Dentro desta obrigação, a conservação in situ, i.e. no leito marinho, é considerada como a primeira opção. Esta manutenção no local é importante em termos científicos e respeita o contexto histórico do objecto, para além de atingir o equilíbrio com o ambiente e ficar melhor preservado. O mar torna-se o protector da sua presa. Outro dos grandes princípios é a prevenção da exploração comercial e da especulação. Esta regra vem estabelecer que estes bens não têm carácter comercial, pelo que não devem ser negociados, comprados ou trocados. Foi necessário acabar com a tradição antiga do princípio “first come, first served” das normas sobre os salvados marítimos. A Convenção não regulamenta a propriedade ou titularidade de um bem cultural entre as várias partes interessadas (normalmente entre Estado costeiro e o Estado de pavilhão). Também não toma opção, relativamente aos direitos sobre os navios ou aviões de Estado, entre o princípio da imunidade soberana (um navio ou aeronave de Estado, mesmo afundado, em qualquer local, mantém a sua imunidade e também a propriedade do Estado) e o princípio da protecção do património cultural. Neste âmbito, o Estado Português, embora defenda que o princípio da imunidade soberana deva ser respeitado, o que deseja é que o seu património cultural subaquático seja protegido e investigado, e que contribua para o desenvolvimento da ciência e da cultura. Foi o que aconteceu quando da descoberta dos vestígios de nau portuguesa do século XVI, descoberta em Abril de 2008 ao largo da Namíbia.
Dependendo da localização, nas zonas marítimas, dos bens arqueológicos, a Convenção estabelece regimes específicos, pelo que passaremos a descrever sucintamente aqueles que são inovadores:
Na Área a legitimidade para actuar é só do Estado de pavilhão do navio de onde parte a actividade relativa aos bens arqueológicos (cada país tem obrigação de legislar no sentido dos seus nacionais comunicarem as descobertas). Por outro lado, a Zona Económica Exclusiva e a Plataforma Continental são zonas de jurisdição muito limitada, no que diz respeito aos bens arqueológicos, pelo que a palavra-chave da Convenção é cooperação, associada a uma obrigação de comunicação internacional. Se nenhum Estado tiver jurisdição sobre o local, será nomeado um Estado coordenador com competência estabelecida na Convenção.
Por fim, uma palavra sobre o Anexo; este é constituído por 36 artigos (com base na carta de ICOMOS) e é uma parte essencial desta Convenção, pois contém regras práticas, de carácter técnico, que já representam um padrão internacionalmente aceite, mesmo antes da sua entrada em vigor, no tratamento e na investigação do património cultural subaquático.
CONCLUSÃO
Face ao exposto, importa reter os seguintes pontos conclusivos:
Portugal aderiu à Convenção da UNESCO de 2001, o que demonstra a vontade de integrar o grupo dos que querem efectivamente proteger o património cultural subaquático, lutando contra os saques e pilhagens, e contra a delapidação deste património comum da humanidade.
A entrada em vigor da Convenção de 2001, a 02 de Janeiro de 2009, obriga os Estados a adaptar a sua legislação nacional. Portugal não é excepção, pelo que o Decreto-Lei n.º 164/97, de 27 de Junho terá que ser alterado, estabelecendo procedimentos obrigatórios para as diversas zonas marítimas, ligados a um adequado regime contra-ordenacional, por forma a exercermos uma protecção eficaz.
Por último, a palavra-chave – cooperação. Para além da cooperação externa, também a cooperação interna é muito importante e deve haver sensibilização pelos órgãos competentes, nas matérias da arqueologia subaquática para que todas as entidades públicas participem na fiscalização destas actividades com o fim de evitar práticas ilícitas. A Marinha certamente está disponível e pronta para esta “batalha”.
Sabemos que estas poucas linhas são uma pequena gota num oceano de informação. No entanto, com muitas pequenas gotas de água se faz um mar e, neste mundo, ainda algo misterioso, porque escondido debaixo da água, é preciso juntar as gotas, colaborar, estarmos atentos e trabalhar em equipa, pois “da distracção da maioria se faz a profundeza de alguns” (Vergílio Ferreira).
por António Neves Correia, CFR
Nota: texto adaptado de uma palestra efectuada na Academia da Marinha, em 06NOV08, no Symposium “Os Naufrágios Portugueses e Espanhóis no Arquipélago dos Açores” (em fase de publicação)"
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