In Público, P2,
14-4-2009, p. 8
Em
L'Aquila a natureza voltou a destruir a arte
14.04.2009, Luís Miguel
Queirós
Há momentos em que a oposição entre natureza e cultura se
torna tragicamente literal.
O sismo de L'Aquila é o capítulo mais recente de uma história que inclui
Pompeia e Lisboa
Ainda
é cedo para avaliar com um mínimo de detalhe os danos reais que o terramoto do
passado dia 6 provocou no património artístico e cultural de L'Aquila, em
Itália. Se a destruição de edifícios históricos, como a basílica de Santa Maria
de Collemaggio (século XIII) ou as igrejas de São Bernardino, Santo Agostinho e
Santa Maria do Sufrágio, é tristemente visível a olho nu, inventariar as obras
de arte que se perderam irremediavelmente, soterradas nos escombros, é uma
tarefa árdua e morosa.
O Ministério da Cultura italiano já disponibilizou 30 milhões de euros para
resgate e recuperação de património e tem 14 equipas de especialistas a
trabalhar no terreno. Os últimos dias trouxeram algumas boas notícias. O
mausoléu de Clemente V, que viveu no século XIII e foi o único Papa a renunciar
ao cargo, foi encontrado intacto, enterrado debaixo das ruínas de uma parede da
basílica de Santa Maria de Collemaggio. E, hoje mesmo, uma equipa de bombeiros
e polícias retirou da sede do episcopado e da catedral de L'Aquila, outros dois
edifícios bastante danificados, cerca de 500 peças, incluindo cruzes, cálices e
outros objectos de culto, avaliados em um milhão de euros. O receio de novas
réplicas do sismo levou as autoridades a resgatar com carácter de urgência este
tesouro da diocese, que será agora provisoriamente guardado em Roma.
A cidade das igrejas
L'Aquila é conhecida como a cidade das 55 igrejas, e poucas escaparam
completamente ilesas ao sismo do dia 6 e às réplicas que se fizeram sentir nos
dias seguintes. Para lá dos casos já referidos, na cidade e nas povoações
próximas, sofreram danos graves, entre dezenas de outras, as igrejas de Santa
Maria Paganica - da qual foi ainda possível salvar uma valiosa estátua da
Virgem com o Menino, mas cujo portal gótico, do início do século XIV, ficou
totalmente destruído -, a de São Pedro de Coppito, cuja fachada e parte da
cúpula ruíram, ou a de S. Silvestre, com vastas fissuras a requerer intervenção
urgente.
Um recente ponto da situação aponta mais de 30 igrejas com estragos já
identificados, e mesmo as que parecem estar intactas precisarão de vistorias, para
avaliar possíveis danos estruturais.
Alguns destes edifícios, como a catedral de L'Aquila, já tinham sido
reconstruídos após um anterior e violento sismo que a mesma região sofrera em
1703. O de dia 6, além de ter devastado a região de Abruzzo, provocou estragos
a 100 quilómetros
do seu epicentro, designadamente em Roma, onde os famosos Banhos de Caracala,
do século III, sofreram alguns danos.
Os especialistas consideram que o sismo de L'Aquila, embora muito mais grave em
perdas humanas, que já vão quase em 300, terá provocado perdas patrimoniais
mais ou menos comparáveis às do terramoto que atingiu em 1997 a região vizinha de
Umbria. Há 12 anos, só se registaram dez vítimas mortais, mas dezenas de
igrejas e outros edifícios medievais ficaram destruídos, incluindo a célebre
basílica de S. Francisco de Assis, na cidade onde nasceu este santo.
Com este terramoto, L'Aquila repete agora a sua presença na longa lista de
catástrofes culturais provocadas pelas forças da natureza, das quais a mais
famosa ainda será a da cidade romana de Pompeia, que, no ano 79 ficou
literalmente sepultada sob as cinzas expelidas pela erupção do vulcão Vesúvio.
No capítulo dos sismos, talvez nenhum tenha tido tanto impacto como o que teve,
na época, o terramoto, seguido de um tsunami, que devastou Lisboa em 1755,
matando pelo menos dez mil pessoas - há quem fale de 90 mil, o que
corresponderia a cerca de um terço da população - e arrasando perto de 90 por
cento das suas construções, incluindo numerosos palácios, bibliotecas, conventos
e igrejas. Lisboa era uma das capitais culturais do mundo, no século XVIII, e a
sua destruição consternou os intelectuais, como Voltaire, que lhe reserva
extensas passagens do Cândido. A própria sismologia moderna nasceu, em boa
medida, com este sismo, que permitiu estudar o efeito de um grande terramoto.
O terramoto mais intenso de que existe registo continua a ser o de 1960 em
Valdivia, no Chile, que atingiu 9,5 na escala de Richter. E o mais mortífero
ocorreu em 1556 no centro da China, em Shansi, tendo custado a vida a pouco
menos de um milhão de pessoas. Também na China, o recente sismo de 2008 em
Sichuan destruiu mais de 1500 peças de cerâmica antiga, um templo com dois mil
anos e sete das célebres estatuetas de guerreiros em terracota. Enquanto
catástrofe cultural, o que atingiu Tóquio em 1923 foi também um dos mais
trágicos, provocando a perda de milhares de peças de arte japonesa antiga.
E os desastres naturais, descontando já os incêndios, onde é sempre difícil
descartar a possibilidade de intervenção humana, não se resumem a vulcões e
sismos. Calcula-se que as cheias do Arno em Florença tenham destruído ou
danificado, em 1966, cerca de 1400 obras de arte, incluindo o célebre crucifixo
de Cimabue conservado na basílica da Santa Cruz.