Foi em 1938 que os Serviços Florestais entraram nos 400.000 hectares que restavam de “logradouro” camponês nas montanhas.
Uma lógica muito limitada informava um Plano que afinal se reduzia a dilemas: floresta ou rebanho, defesa da água e do solo ou erosão, conservação da flora, da fauna e da paisagem ou desastre ecológico. Tais dilemas baseavam-se na realidade incontestável de que a multimilenária destruição provocada pelo pastoreio nas montanhas, desde tempos anteriores aos dos Castros e das Citânias, agravada depois pelo sobrepastoreio e pela cultura de centeios entre as rochas, onde houvesse ainda nesga de solo a cultivar, pedia o remédio de um planeamento florestal, com sementeiras e plantações, aceiros e recifes, e programações de espécies pioneiras e depois de rendimento.
No entanto, a Serra era de há muito solar dos montanheses, ou o seu Couto se quisermos assim entender o espírito das doações medievais. Havia posse, era um espaço organizado e conhecido que excluía intromissões de estranhos. Cada fraga tinha o seu nome, cada penedia a sua história. Caminhos lajeados, alguns celtibéricos e muitos outros romanos, e veredas percorridas serviam espaços onde cada encosta, cada planalto, cada ribeiro ou nascente de águas límpidas, tinham a sua identificação histórica ou funcional. De tudo isto que, no fundo, era mais do que “economia” porque constituía a vida total ou a vida social, nada constava no plano, que se firmava na contabilidade dos ''inputs'' e dos ''outputs'' que eram outra perspectivassem vivência implantada no terreno.
Importa, talvez, insistir na ideia de que o Plano de Povoamento Florestal de 1938, independentemente dos seus méritos técnicos indiscutíveis era, afinal, o instrumento maior de uma nova e poderosa agressão ao baldio das montanhas, ciosamente guardado por montanheses agressivos, tão lógicos como incoerentes. Julgamos poder avaliar que, para eles, tendo em conta a integração histórica e social, a presença dos Serviços Florestais ou da “floresta” significava que o “REI” os atraiçoara. E isso era grave, porque fora o Rei, em Ordenações e Cartas de Foral, que lhes fomentara a autonomia em face das pressões para instalação de Coutos de Conventos ou Honras da Nobreza.(...)
Por tudo isto a entrada dos Serviços Florestais na montanha foi um desastre social. A “floresta” avançou, após sumário “inquérito à economia e vida social” exigido por imposição da Lei e consumado por inquiridores incompetentes. Levou diante de si pastores e cabras dos rebanhos e os cães serranos, com coleiras de picos, aliados dos homens, rosnaram, em uníssono com o uivar dos lobos, à vista dos guardas florestais. Abriram-se estradas e caminhos, subornaram-se os montanheses pondo o seu nome em folhas de salários, colocaram-se tabuletas e letreiros assinalando lugares “sagrados”, até então escondidos. Lançaram-se fios telefónicos, poluíram-se os ares com motores. Transfor-mou-se a vida, comprometeram-se as pessoas com fardas e espingardas, tentaram-se alianças, geraram-se ódios.
E assim a floresta, por vezes recuou, queimada impetuosamente na mais espantosa orgia das labaredas e fogo manobrado por ninguém. Novos caminhos se abriram, carregaram-se nas viaturas gentes de fora, aliciadas como bombeiros. E a floresta avançou sempre, teimando em se instalar, triunfante, misteriosa, imponente, mostrando-se a quem a contempla como um renovo da Natureza que não será um estertor da Ecologia, dessa Ecologia que nou-tros lugares da terra vai sendo amortalhada.
Eugénio de Castro Caldas , A Agricultura Portuguesa no Limiar da Reforma Agrária. Instituto Gulbenkian de Ciência, CEEA, 1978.
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