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[Archport] Fwd: Património em risco e a questão dos incêndios.

Subject :   [Archport] Fwd: Património em risco e a questão dos incêndios.
From :   Manuel Castro Nunes <arteminvenite@gmail.com>
Date :   Thu, 7 May 2009 11:17:25 +0100



---------- Forwarded message ----------
From: Manuel Castro Nunes <arteminvenite@gmail.com>
Date: 2009/5/7
Subject: Património em risco e a questão dos incêndios.
To: archport@ci.uc


Se é inquestionavelmente legítimo colocar com ênfase a questão imediata do risco que poderá constituir para o património arqueológico em geral e não só, na antevisão do crescimento ainda imprevisível do fenómeno dos incêndios florestais, penso nunca ser despropositado chamar a atenção para muitas questões que se colocam a montante, recorrentes de vários temas que já aqui têm sido comentados, relacionados com décadas de um prática irracional de ordenamento do território, com a desertificação do território rural, com as significativas perdas da produção agrícola da Nação, nomeadamente após a assinatura da PAC.
Em minha opinião, das sucessivas campanhas de florestação ditadas por imediatos interesses de rentabilização da propriedade rural, num quadro de consequente desmembramento das estruturas de produçao agrícola, resultaram já, a montante dos incêndios, perdas muito mais significativas do que aquelas que estes venham a fazer acrescer. Como exemplos, para não tornar a intervenção maçadora, bastaria imaginar os danos provocados pelas ciclópicas e contínuas mobilizçoes de solo em áreas contíguas a locais arqueológicos de referência, como o Santuário de Endovélico no Alandroal, ou o Castelo Velho do Degebe.
E se tais danos são já irremediáveis e a eventualidade daqueles que têm sido aqui comentados poderia ainda ser evitada, nunca será dispiciendo invocar o passado, como paradigma do que se poderia ter evitado e o não foi e porquê. Não faltaram vozes, então, a clamar por atenção para o assunto.
Quer pelo inegável valor apelativo da sua expressão literária, quer pela escorreita transmissão sintéctica desta problemática, referida a ocorrências com sete décadas, reproduzo um texto limnar.
 

         Foi em 1938 que os Serviços Florestais entraram nos 400.000 hectares que restavam de “logradouro” camponês nas montanhas.

            Uma lógica muito limitada informava um Plano que afinal se reduzia a dilemas: floresta ou rebanho, defesa da água e do solo ou erosão, conservação da flora, da fauna e da paisagem ou desastre ecológico. Tais dilemas baseavam-se na realidade incontestável de que a multimilenária destruição provocada pelo pastoreio nas montanhas, desde tempos anteriores aos dos Castros e das Citânias, agravada depois pelo sobrepastoreio e pela cultura de centeios entre as rochas, onde houvesse ainda nesga de solo a cultivar, pedia o remédio de um planeamento florestal, com sementeiras e plantações, aceiros e recifes, e programações de espécies pioneiras e depois de rendimento.

            No entanto, a Serra era de há muito solar dos montanheses, ou o seu Couto se quisermos assim entender o espírito das doações medievais. Havia posse, era um espaço organizado e conhecido que excluía intromissões de estranhos. Cada fraga tinha o seu nome, cada penedia a sua história. Caminhos lajeados, alguns celtibéricos e muitos outros romanos, e veredas percorridas serviam espaços onde cada encosta, cada planalto, cada ribeiro ou nascente de águas límpidas, tinham a sua identificação histórica ou funcional. De tudo isto que, no fundo, era mais do que “economia” porque constituía a vida total ou a vida social, nada constava no plano, que se firmava na contabilidade dos ''inputs'' e dos ''outputs'' que eram outra perspectivassem vivência implantada no terreno.

            Importa, talvez, insistir na ideia de que o Plano de Povoamento Florestal de 1938, independentemente dos seus méritos técnicos indiscutíveis era, afinal, o instrumento maior de uma nova e poderosa agressão ao baldio das montanhas, ciosamente guardado por montanheses agressivos, tão lógicos como incoerentes. Julgamos poder avaliar que, para eles, tendo em conta a integração histórica e social, a presença dos Serviços Florestais ou da “floresta” significava que o “REI” os atraiçoara. E isso era grave, porque fora o Rei, em Ordenações e Cartas de Foral, que lhes fomentara a autonomia em face das pressões para instalação de Coutos de Conventos ou Honras da Nobreza.(...)

            Por tudo isto a entrada dos Serviços Florestais na montanha foi um desastre social. A “floresta” avançou, após sumário “inquérito à economia e vida social” exigido por imposição da Lei e consumado por inquiridores incompetentes. Levou diante de si pastores e cabras dos rebanhos e os cães serranos, com coleiras de picos, aliados dos homens, rosnaram, em uníssono  com o uivar dos lobos, à vista dos guardas florestais. Abriram-se estradas e caminhos, subornaram-se os montanheses pondo o seu nome em folhas de salários, colocaram-se tabuletas e letreiros assinalando lugares “sagrados”, até então escondidos. Lançaram-se fios telefónicos, poluíram-se os ares com motores. Transfor-mou-se a vida, comprometeram-se as pessoas com fardas e espingardas, tentaram-se alianças, geraram-se ódios.

            E assim a floresta, por vezes recuou, queimada impetuosamente na mais espantosa orgia das labaredas e fogo manobrado por ninguém. Novos caminhos se abriram, carregaram-se nas viaturas gentes de fora, aliciadas como bombeiros. E a floresta avançou sempre, teimando em se instalar, triunfante, misteriosa, imponente, mostrando-se a quem a contempla como um renovo da Natureza que não será um estertor da Ecologia, dessa Ecologia que nou-tros lugares da terra vai sendo amortalhada.  

 

 

          Eugénio de Castro Caldas , A Agricultura Portuguesa no Limiar da Reforma Agrária. Instituto Gulbenkian de Ciência, CEEA, 1978.



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Manuel de Castro Nunes



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Manuel de Castro Nunes

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