Re: [Archport] Pilhagem sem castigo... TEXTO LONGO!
Desculpe mas não concordo.
Ando desde 1995 nestas lides da defesa do património, a lutar contra a indiferença, a ignorância, a cupidez e, até, a estupidez, e, mesmo tantos anos depois, não deixo de ter esta opinião: deve-se formar e educar os cidadãos para a protecção do património e, simultaneamente, punir aqueles que, com dolo e consciência, o pilhem e o destruam, seja por puro e simples vandalismo, seja para seu ganho pessoal. É para isso que serve todo o instrumento jurídico (portarias, leis, decretos-lei e convenções internacionais) que, a meu ver, bem, protege esse mesmo património - e, no limite, mesmo que se descurasse a importância que os instrumentos jurídicos nacionais e internacionais têm na protecção do nosso património, haverá ainda que contar com a Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, a lei fundamental, ao incluir uma Constituição Cultural, constitui o Estado em Estado Cultural ou de Cultura. Na verdade, tanto em 1993 como hoje, Portugal é, não só um Estado de Direito de Cultura, obrigado a respeitar as liberdades culturais dos cidadãos, como também um Estado Democrático Cultural, empenhado na democratização da cultura e no alargamento dos direitos à cultura. Ora, este conceito constitucional de cultura abrange, entre outros valores culturais, a tradição e o património, que devem ser defendidos e valorizados, operando como um conceito aberto e universal, com a possibilidade de fruição dos bens culturais de todas as épocas e de todos os povos, abrindo o caminho à exigência de defesa do direito à fruição e criação cultural e de preservação, defesa e valorização do património cultural do povo português, por parte da ordem jurídica globalmente considerada, consagrando-as como uma tarefa fundamental ou um fim do Estado e, simultaneamente, como um verdadeiro direito fundamental.
Nesta linha, a Constituição, no artigo 78º constitui o património cultural objecto de um dever de todos de não atentar contra ele e de impedir a sua destruição, uma obrigação do Estado de o não destruir e de o defender e um direito de todos os cidadãos de o defender, impedindo a sua destruição - donde resulta que o direito à fruição e criação cultural deverá condicionar todas as atitudes do legislador ordinário e aplicantes do direito, não só impedindo a destruição e o desaparecimento do património cultural, mas também obrigando à adopção de condutas e actuações favoráveis à sua preservação, defesa e valorização.
É nossa obrigação, enquanto cidadãos de um país que se diz civilizado, não só defender o “nosso” património, como também o de o “reclamar” para nossa fruição colectiva. No caso português, o legislador constitucional conferiu enorme força à tutela da cultura e do património cultural, em especial no capítulo III- Direitos e deveres culturais- do Título III, que engloba os artigos 73º a 79º, a ponto de se poder falar da existência de uma verdadeira Constituição Cultural. Este facto condiciona o legislador ordinário e os diversos aplicadores do direito aos princípios nesta matéria resultantes do quadro constitucional.
Dito de outra forma, a Constituição da República Portuguesa, ao incluir uma Constituição Cultural, constitui o Estado em Estado Cultural ou de Cultura. Na verdade, ele é um Estado de Direito de Cultura obrigado a respeitar as liberdades culturais dos cidadãos e simultaneamente um Estado Democrático Cultural, empenhado na democratização da cultura e no alargamento dos direitos à cultura, com a expressão “Estado de Cultura” a ser entendida de forma a excluir a ideia de pôr a cultura ao serviço do Estado ou toda dependente do auxílio do Estado, marginalizando a sociedade civil e os cidadãos individualmente considerados e sacrificando a liberdade de criação e de crítica dos agentes culturais. O conceito constitucional de cultura abrange (entre outros valores culturais) a tradição e o património, que devem ser defendidos e valorizados, operando como um conceito aberto e universal, com a possibilidade de fruição dos bens culturais de todas as épocas e de todos os povos.
A conjugação da denominada Constituição Cultural com o “Princípio da Protecção Jurisdicional Efectiva” permite que seja assegurada aos cidadãos a protecção jurisdicional efectiva do seu direito à cultura e ao património cultural. A Constituição da República Portuguesa abriu assim o caminho à exigência de defesa do direito à fruição e criação cultural e de preservação, defesa e valorização do património cultural do povo português, por parte da ordem jurídica globalmente considerada, consagrando-as como uma tarefa fundamental ou um fim do Estado e, simultaneamente, como um verdadeiro direito fundamental.
O direito à fruição e criação cultural, consagrado no artigo 78º, constitui uma concretização do direito à cultura e implica a sua democratização, com a generalização a todas as pessoas do acesso aos bens culturais e de participação na vida cultural. O direito à fruição e criação cultural abrange necessariamente a defesa do património cultural. Nesta linha, a Constituição, no artigo 78º constitui o património cultural objecto de um dever de todos de não atentar contra ele e de impedir a sua destruição, uma obrigação do Estado de o não destruir e de o defender e um direito de todos os cidadãos de o defender, impedindo a sua destruição.
Merecedor de destaque é, ainda, a relação estreita da protecção e da valorização do património cultural com a protecção e a preservação do ambiente, consagrada nos artigos 9º, alínea e), 52º, nº3 e 66º, nº2, alínea c), da Constituição. Com efeito, carecemos tanto da presença das grandes criações artísticas da humanidade como da permanência de determinados elementos telúricos, ambientais e paisagísticos, desaparecidos os quais, não se perde apenas um valor ecológico, económico ou histórico mas, também a nossa realidade ontológica última. A paisagem,a física e a histórica, surge-nos como a guardiã do ser e a sua destruição como a causa desintegradora da unidade espiritual e cultural do homem.
É claro que eu me movo no domínio do património cultural subaquático que, pela sua especificidade, é mais "trabalhoso" de definir. Mas, em terra, onde não há essas complicações todas de lei do almirantado, águas internacionais, países-bandeira, etc., o caso é muito mais cristalino e muito mais fácil de defender. Mas, mutatis mutandis, os problemas são os mesmo,, mudam apenas os actores e a visibilidade (por outro lado, também não concordo que esta problemática seja pouco falada - dou como exemplos desde a revista de Unesco, a Sources de Fevereiro de 1997, onde defendo já esta minha opinião -
http://unesdoc.unesco.org/images/0010/001051/105111E.pdf- como, no presente, a revista também da UNESCO, a nº 240 da Museum International, de Dezembro de 2008 -
http://www.unesco.org/culture/museum/newsletter/en/240.htm - igualmente dedicada ao mesmo tema.)
Mas as coisas, mesmo no mar, avançam. Progride-se. Protege-se mais, pilha-se menos. Hoje, por exemplo, o Governo português não se atreveria a fazer o que fez em 1993. E é preciso não esquecer, nunca, o que se passou em 1993.
Por exemplo, quem nesse ano se debruçasse sobre a história marítima de Portugal veria que o arquipélago dos Açores, situado em pleno Atlântico, teria funcionado no período das Descobertas e nos séculos imediatamente seguintes, como uma autêntica placa giratória mundial das embarcações que regularmente cruzavam os oceanos nas rotas de torna-viagem do Oriente e das Américas, em favor e obediência aos alísios característicos da região que convertem naturalmente o arquipélago num entreposto quase indispensável na conquista dos oceanos.
Baluarte e sentinela avançada dos impérios ibéricos, lugar de abrigo e de passagem obrigatória de navios e frotas de comércio e de guerra, o arquipélago era também cenário habitual de naufrágios – o potencial arqueológico do mar dos Açores era eloquentemente ilustrado pelos cerca de 900 navios naufragados, recenseados até à data. Desses, 113 eram navios com cargas preciosas a bordo, o que explicava bem o fascínio exercido por este diminuto e bem circunscrito período da História da humanidade nas mentes dos coleccionadores, dos antiquários e dos leiloeiros.
Ora, em 1993, era já bem claro que o problema da existência de bens subaquáticos de carácter cultural – e venal - nos mares dos Açores ultrapassava o âmbito dos interesses específicos da Região, para se projectar em dois planos de muito mais vastas dimensões:
- à escala mundial, esses bens integravam-se num Património comum a toda a humanidade cabendo portanto - pelo menos tendencialmente - no âmbito daquele elenco de bens reconhecidos como detentores de um valor universal excepcional, cuja salvaguarda se tinha que garantir de modo eficaz;
- à escala nacional, muitos desses bens, constituídos por destroços de navios portugueses da época dos Descobrimentos e de outros posteriores, tinham obviamente um interesse relevante para a permanência da identidade da cultura portuguesa através do tempo, integrando de forma indiscutível o património cultural do nosso País, carecendo de protecção, estudo e divulgação.
Um problema se levantava, contudo, no horizonte da protecção e estudo desses bens: com efeito, desde os anos 80 que se vinha a assistir, em paralelo com o desenvolvimento da tecnologia subaquática, à multiplicação de empresas que se dedicavam à pesquisa de tesouros.
O seu interesse principal não era o da investigação científica ou arqueológica, mas o da recuperação de valores e preciosidades, com fins comerciais, destruindo no processo a informação histórico-arqueológica contida nos destroços saqueados.
Ora, já em 1993 se sabia que a caça ao tesouro não tinha qualquer afinidade com a Arqueologia, apesar de nos tempos modernos esta se tentar disfarçar de respeitabilidade social - através da acção de grupos de pressão e "tráfico de influências" nos meios da cultura, jornalismo, política, forças armadas e organismos estatais - e de respeitabilidade científica - através da invocação de pressupostos históricos e arqueológicos como objectivos prioritários das suas explorações e recorrendo à contratação de arqueólogos para camuflagem das suas reais intenções.
Vários eram os argumentos alegados pelos caçadores de tesouros profissionais na senda da legitimidade:
- invocavam que a única maneira de pagar a enorme despesa de uma recuperação subaquática era através da venda de artefactos, preferindo ignorar que especialistas como George Bass conduziram, durante 23 anos, pesquisas em quatro continentes sem que tivessem vendido fosse o que fosse;
- afirmavam que era necessário salvar os destroços que se encontravam em águas profundas de maneira a que não fossem destruídos pelas tempestades, preferindo ignorar que os destroços estabilizam passado pouco tempo;
- diziam que não era necessário escavar um casco de um barco do período colonial com precisão, visto haverem planos originais de construção disponíveis nos arquivos, ignorando que se sabe mais sobre os barcos gregos ou romanos (que foram escavados cientificamente) do que sobre os galeões ou caravelas.
- afirmavam que a venda de material duplicado não acarretava prejuízos científicos, ignorando que, à medida que as técnicas de análise vão progredindo, assim se vão publicando artigos novos sobre artefactos ao principio aparentemente idênticos e que só é possível fazer-se isso porque os artefactos estão todos reunidos num Museu e não dispersos por colecções particulares.
Os caçadores de tesouros constituíam à época - como ainda hoje, aliás - um grupo restrito dotado de meios verdadeiramente fabulosos. Robert Marx, Henri Deleuze, Herbert Humphrey e Robert Sténuit eram autênticos profissionais que faziam e desfaziam empresas, angariavam patrocínios e distribuíam dividendos enquanto iam saqueando as águas de países pobres e do terceiro mundo.
Contudo, em 1993, uma sociedade moderna, mais esclarecida, não poderia nunca tolerar o que Sténuit fez em Vigo, ao dinamitar destroços, ou o que Marx fez nas Bahamas ao destruir os bancos de coral. Em 1993 a arqueologia legítima caracterizava-se pelo exame e pelo registo in situ dos materiais e dos artefactos submersos, num processo moroso, que poderia levar mais de uma quinzena de anos a ser executado.
Sabia-se que, enquanto para o arqueólogo um naufrágio era uma verdadeira cápsula do tempo, uma parte integral do material cultural e dos sistemas históricos social, económico e tecnológico reflectida nos restos do navio e da sua carga espalhada pelo fundo do oceano, para o caçador de tesouros o objectivo a atingir era apenas económico: minimizar ao máximo o custo da exploração enquanto recuperava o ouro, a prata ou outros artefactos com o máximo de valor no mercado.
Estava pois provado, em 1993, que a caça ao tesouro tinha como principal objectivo a rentabilidade financeira e o lucro, lógica incompatível e inconciliável com puros critérios científicos - tendo em conta esta lógica estritamente lucrativa, na caça ao tesouro tudo aquilo que não possuísse valor venal era pura e simplesmente destruído ou ignorado na busca ávida e cega dos valiosos tesouros. Reagindo a esse perigo, várias convenções da UNESCO e do ICOMOS foram assinadas e implementadas pelos mais diversos países, Portugal incluído (aliás, fomos dos primeiros países, juntamente com a Espanha, a assinar a Convenção para a Protecção do Património Cultural Subaquático, que entrou em vigor a 3 de Janeiro deste ano, o que só mostra que de 1996 até aqui, o nosso país até tem estado na linha da frente em termos legislativos).
Em 1993 existia, portanto, um imperativo de ordem cultural no sentido de se preservar o património cultural subaquático, garantindo por todos os meios que a sua exploração só se fizesse de acordo com critérios rigorosamente científicos, e não ao sabor dos interesses económicos de concessionários impelidos pelo móbil do lucro, naturalmente hostis a tudo o que dificultasse ou impedisse a maximização desse lucro.
Ora se já se sabia tudo isto em 1993, que fez o nosso Governo nesse ano, quando era responsável pela Cultura Pedro Santana Lopes?
Escutou ou convocou os caçadores de tesouros e sob o pretexto de pôr termo à alegada tradição do Estado "não fazer nem deixar fazer", publicou o Decreto Lei 289/93, de 21 de Agosto, lançando as bases de um anacronismo jurídico e político-cultural que, entre outras consequências negativas, veio promover e inaugurar a corrida à caça ao tesouro no mar Português, contrariando frontalmente os princípios consagrados internacionalmente no âmbito da Arqueologia e do Património Subaquáticos.
A entrada em vigor desta lei teve como principal consequência imediata a instauração de um defeso que implicou, a partir de 1994, a desactivação e o bloqueamento de todas as iniciativas com exclusivas finalidades cientifico-patrimoniais, e o implícito esvaziamento da capacidade de actuação das raras entidades que nos últimos 15 anos, em Portugal, tinham lançado as bases de uma actuação credível neste domínio, nomeadamente daquelas que, baseadas na colaboração entre o Museu Nacional de Arqueologia e o IPPC/IPPAR, garantiram, por mais de dez anos, uma efectiva e credível actuação oficial nesta área do património. Ou seja, o Governo português, pela mão de Santana Lopes, fez tudo ao contrário!
Em primeiro lugar, não se baseou em princípios consagrados e recomendados internacionalmente, nomeadamente pela UNESCO e pelo Conselho da Europa, nem se inspirou em qualquer legislação específica de países em que a actuação no âmbito da arqueologia e do património subaquático fosse tradição corrente.
Na base de elaboração do projecto não foram atendidos os conselhos das raras entidades e personalidades idóneas consultadas em Portugal, sendo também ignoradas todas as personalidades e entidades credenciadas em termos científicos, académicos e institucionais, a nível internacional em matéria de arqueologia subaquática.
Por outro lado, tendo sido criado para dar resposta a explorações com finalidades lucrativas, o Decreto-Lei nº289/93, de 21 de Agosto veio condicionar todos os projectos com exclusivas finalidades cientifico-culturais, introduzindo critérios estranhos à tradição da investigação arqueológica, privilegiando os projectos com características e finalidades financeiras lucrativas e rentáveis, em detrimento de projectos de investigação e de salvaguarda incidindo sobre testemunhos arqueológicos de reduzido ou nulo valor venal, mas que poderiam ter grande importância cientifica e patrimonial, em contradição com o principio de que todo e qualquer projecto de investigação deve obedecer prioritariamente a critérios de prioridade cientifica e patrimonial.
Este diploma legal veio ainda agravar a burocracia já existente na área da Arqueologia: logo após a publicação do diploma, e pela primeira vez em treze anos, não foi feito um único reconhecimento, uma única prospecção, uma única identificação de achado legalmente declarado. Muitos programas tiveram de ser anulados, outros não foram sequer objecto de qualquer resposta oficial e as intervenções de emergência ficaram sem resolução.
Criticável era também o pouco ou nenhum relevo e importância concedido naquele diploma legal à Carta Arqueológica do Património Subaquático, que contém cerca de 5000 registos, correspondentes a navios naufragados em águas portuguesas e de navios portugueses naufragados em qualquer parte do mundo, o que demonstrava a ignorância de um dos pressupostos de base da Arqueologia contemporânea, que se baseia no reconhecimento da importância primordial dos programas da carta arqueológica e de inventário geral, para a definição de opções em hierarquização de prioridades.
O Decreto-lei não só era omisso quanto a um regime de protecção preventiva de sítios ou zonas arqueológicas subaquáticas de interesse arqueológico potencial mas insusceptíveis de classificação por falta de evidências comprováveis visualmente, o que contrariava o artigo 41º da então vigente Lei 13/85, que consagrava os princípios da co-responsabilização e da arqueologia preventiva, como ignorava também o principio de que todos e quaisquer testemunhos arqueológicos devem ser objecto, genericamente, de protecção legal especifica, e não apenas aqueles que fossem considerados de relevante interesse. O diploma era ainda totalmente omisso em relação a um sistema operativo nacional e inter-regional de gestão do património cultural subaquático, indispensável garante da sua exequibilidade.
Mas o mais grave consistia no facto de a recompensa do achador declarante, ou de a remuneração da entidade concessionária ou licenciada no âmbito de explorações do património arqueológico subaquático, poderem ser feitas através da entrega dos próprios bens achados ou recuperados - o Decreto Lei 289/93, ao optar pela remuneração através do pagamento com o próprio património recuperado, iniciou definitivamente a corrida aos tesouros submersos, a caça ao tesouro, em Portugal, algo só então visto nos países do terceiro mundo ou nos estados mais atrasados dos Estados Unidos.
Resumindo, o Decreto-lei 289/93, de 21 de Agosto (actualizado pelo Decreto-lei 85/94, de 30 de Março, conjugado com a Portaria 568/95, de 16 de Junho) afastava clara e decisivamente a arqueologia subaquática da arqueologia terrestre, no que respeitava aos critérios de base metodológica e à tutela do Estado e consagrava, descaradamente, a exploração comercial da actividade arqueológica subaquática, com prejuízo para a contextualização científica do património cultural.
E esse prejuízo adveio dos vários interesses em jogo. Por exemplo, três dias apenas após a publicação da lei em Diário da República, uma empresa, a Companhia das Naus, enviava um fax a possíveis investidores estrangeiros interessados em participar na mina de ouro agora colocada a saque. Nesse fax vinha-se a saber que a companhia tinha sido criada para poder executar trabalhos arqueológicos de âmbito subaquático, “garantindo ao mesmo tempo o aproveitamento das excelentes oportunidades financeiras criadas por esta nova legislação”. Para garantir a boa execução dos trabalhos esta empresa contava com o apoio de outra empresa sua subsidiária, a Carreira das Índias, Lda. composta por quatro departamentos. Ora, o departamento legal era presidido por Rui Gomes da Silva que era, nem mais nem menos, do que o legislador do decreto-lei!
Mas havia mais. Mais empresas e mais ligações obscuras.
Uma das candidatas à caça ao tesouro era a Arqueonautas, uma sociedade anónima, de capital de risco, apoiada pelo Banco Espírito Santo e por uma sociedade financeira alemã, a Finurba, contando nas suas fileiras com Pinto Balsemão, Henrique Granadeiro, o barão Slot tot Everloe e Dom Duarte Pio, Duque de Bragança, e que ainda mexe hoje em dia, escavando o nosso património náutico nas águas de Moçambique, depois de ter feito o mesmo em Cabo Verde e vendendo o espólio a quem der mais em leilões internacionais.
Outra candidata era a Lex Rhodia, uma empresa portuguesa, com sede em Alcântara, dirigida pelo recentemente falecido Sacchetti e pelo engenheiro naval João Filipe Galvão. Sacchetti era na altura almirante da Armada, na situação de reforma activa, sendo presidente do Conselho de Disciplina da Armada, tendo sido Vice-Chefe do Estado-maior da Armada.
E havia também a New Era, uma liderada por Jack Kelly e por José Saldanha, um comerciante de armas, proprietário da empresa ETEM que, também em 1993, vendeu um lote de metralhadoras G-3, pretensamente destinadas para a Bolívia, mas que tiveram como destino final a ex-Jugoslávia.
E finalmente, entre outros, havia Robert Marx, um caçador de tesouros famosíssimo em todo o Mundo, expulso de incontáveis países por atentados ao património, cujo advogado em Portugal era… o Rui Gomes da Silva!, o co-legislador da lei sobre o património subaquático, então deputado do PSD à Assembleia da República e assessor do Secretário de Estado da Cultura.
Por tudo isto, pelo atentado ao património, pela ignorância com que foi feito, para não evocar sequer a hipotética má fé com que terá sido produzido, o Decreto-lei 289/93 foi alvo de violentas críticas por parte da maioria dos arqueólogos, portugueses e estrangeiros.
Baseados na convicção profunda de que o património cultural subaquático não podia, nem devia ser tratado, como era até aí, de acordo com a tradição e princípios dos salvados marítimos e da caça ao tesouro, devendo, pelo contrário, ser objecto de tratamento similar ao património cultural situado em meio terrestre, fizemos uso do direito de acção popular, previsto no artigo 52º da Constituição da Republica Portuguesa, que é, simultaneamente, um meio de defesa de interesses difusos, que alarga a legitimidade processual activa, e um meio suplementar de tutela relativamente a outros direitos e interesses legítimos dos cidadãos que possam ser lesados por condutas da Administração Pública, entendendo-se os interesses difusos como interesses cuja titularidade pertence a todos e a cada um dos membros de uma comunidade ou de um grupo, mas que não são susceptíveis de apropriação individual por qualquer desses membros - casos de saúde pública, do ambiente e qualidade de vida e do património cultural.
E foi assim, que secundados pela Comunicação Social – Expresso, Público, Diário de Notícias, El País, New York Times, CNN, The Guardian, Visão, Diário Insular, Açoreano Oriental, Unesco Sources, A União, RTP1, SIC, TVI, RTP2, FR3, ARTE, e tantos, tantos outros – e ajudados pelos tiros nos pés disparados por Santana Lopes que nos foi possível inverter o rumo da caça ao tesouro, contra Santana Lopes, Rui Gomes da Silva e Manuel Frexes.
Foi apenas com Manuel Carrilho - através da publicação do Decreto-Lei 164/97 - que se harmonizou a legislação que rege a actividade arqueológica em meio subaquático com a aplicável à actividade arqueológica em meio terrestre, consignando a arqueologia subaquática como uma disciplina informada por puros critérios científicos, tal como já acontecia com a arqueologia em terra, abandonando-se uma perspectiva arcaica e limitada sobre o património arqueológico subaquático, que considerava apenas o valor venal dos objectos perdidos ou abandonados em meio subaquático, eliminando-se o concessionamento da exploração da exploração comercial do património cultural subaquático e reconduzindo toda a actividade arqueológica realizada em meio subaquático à condição de empreendimento estritamente científico, impedindo todas as práticas destrutivas ou intrusivas que possam danificar bens culturais subaquáticos e respectivas zonas envolventes.
Portanto, que o texto já vai longo, há que não desanimar. Uma pulga pode não parar um comboio, mas pode encher de comichão o maquinista. As coisas avançam, por vezes ao ritmo das eras geológicas, mas avançam. Temos é que ajudar todos a empurrar essas coisas um bocadinho que depois a inércia há dar a sua ajuda.
2009/5/15 Manuel Castro Nunes <
arteminvenite@gmail.com>:
> Estamos agora a tratar de pilhagem e ruína de locais ou jazidas
> arqueológicas, é pois este o local indicado para comentar a matéria.
>
> Continuo convencido de que esta será porventura a forma mais perturbada de
> colocar a questão. Porventura também a mais ineficaz. É, de resto, inverter
> a questão.
> Continuar a investir no castigo de pilhagens ou devastações já ocorridas e
> focar aí o problema é evitar questionar a matéria mais relevante, seja, como
> e com que meios evitá-las. O texto citado, de resto, dá, talvez sem se
> aperceber, a resposta para esta questão. Os locais e jazidas arqueológicos
> são desvastados por impossibilidade, ou falta de vontade para produzir os
> meios e os contextos para o evitar.
> Penso mesmo que, não havendo meios para o evitar, dificilmente se conseguirá
> constituir o contexto judicial para punir, porque não se consegue produzir o
> onus da prova. O texto citado permite deduzir que as denúncias se
> fundamentam na mera constatação a posteriori da pilhagem ou devastação,
> sendo essse o motivo porque delas não decorre um processo de atribuição de
> autoria consistente.
> Depois, a devastação pode ter várias origens e inserir-se em vários
> contextos, por vezes de complexa análise, a intervenção anterior de
> Francisco Sande Lemos fornece-nos um exemplo. De resto, um local ou jazida
> devastada, por uma intervenção urbanística ou similar, pode simultaneamente
> ser pilhada. Será o caso de uma intervenção mal acompanhada no contexto do
> correspondente EIA. Se uma estrada avançar sobre uma jazida arqueológica,
> sem rigoroso acompanhamento, os escombros ficarão à mercê da pilhagem. Em
> meu entender, as pilhagens não procedem todas, nem talvez na sua maioria, da
> intervenção de detectoristas. As devastações nunca, obviamente.
> Esta sucessão de comentários começa talvez a deixar antever que a abordagem
> da matéria se pode começar a estruturar, ganhando consistência, operando a
> autonomia específica dos múltiplos tópicos envolvidos, superando lugares
> comuns e orientando-se para a formulação de propostas objectivas de
> intervenção. Se assim não for, passaremos o resto da vida a verberar contra
> o que não conseguimos evitar.
> Apenas um registo mais: o segundo blog citado vem escoltado por dois
> inesperados anúncios.
>
> Manuel de Castro Nunes
>
> --
> Manuel de Castro Nunes
>
> _______________________________________________
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>
Archport@ci.uc.pt
>
http://ml.ci.uc.pt/mailman/listinfo/archport>
>