Em Mértola preservou-se o passado mas teme-se o futuro
Público, 31.05.2009, por Carlos Dias
Equipa de três dezenas de historiadores e arqueólogos, dos mais bem preparados, optou pela formação para sobreviver
O arqueólogo Cláudio Torres, fundador e director do Campo Arqueológico de Mértola (CAM), diz que a "cumplicidade e a interajuda" que existiam com o município alentejano para desenvolver um projecto cultural está a passar por um mau bocado e pode acabar. A autarquia, admite o arqueólogo, "substituiu a colaboração pela hostilização", ameaçando um trabalho lançado há três décadas.
O CAM foi forçado a transformar-se em empresa para poder disputar com outras
firmas especializadas a prospecção e investigação arqueológica no concelho de
Mértola, onde desenvolveu um projecto de reconhecido mérito. O mal-estar entre
a autarquia e o CAM acentuou-se nos últimos anos. A desconfiança surgiu quando
Jorge Pulido Valente foi eleito presidente da câmara, em 2001, numa lista do
PS. Na altura, o arqueólogo advertiu para os riscos que o projecto poderia correr
com a nova liderança municipal. Pulido Valente comprometeu-se, então, a manter
a essência da colaboração que vinha da anterior gestão da CDU, alegando, no
entanto, que teria de haver mais rigor na gestão dos dinheiros públicos.
Apesar desta garantia, Cláudio Torres assume que o projecto "começou a ser
abandonado" logo que o autarca assumiu funções. O visado, que renunciou ao
cargo há seis meses, para fazer parte da administração da Empresa de
Desenvolvimento e Infra-estruturas de Alqueva e assumir a candidatura à Câmara
de Beja, contrapõe que o projecto "não só não foi abandonado como foi
reforçado". Em relação ao projecto político - "mas não
partidário" - assumido pelo arqueólogo, Pulido Valente argumenta:
"Foi o nosso [projecto] que a população escolheu e não o da CDU, que
Cláudio Torres empenhadamente defendeu."
O director do CAM salienta que a eleição do autarca socialista representa
"uma escolha que derivou de uma votação que logicamente tinha de ser
aceite". No entanto, explica: "Da parte da câmara é que surgiram
ordens para não usarmos o nosso símbolo do campo arqueológico nos painéis, na
sinalética, e nas publicações, sempre que a câmara participa nos eventos ou
realizações."
Escavações travadas
"Obrigaram-nos a tirar o símbolo do Campo Arqueológico de Mértola que
existe há 30 anos", queixa-se o arqueólogo. Pulido Valente nega esta
acusação, frisando que a câmara "não dá ordens ao CAM". Cláudio
Torres garante que houve "um corte completo" entre a autarquia e o
CAM. E acrescenta que as consequências "vieram a agravar-se
progressivamente", até aos dias de hoje, acusando Pulido Valente de
abandonar Mértola para "ocupar outro pedestal com objectivos meramente
pessoais".
"Pulido Valente aproveitou-se do trabalho que realizámos ao longo de 30
anos para o apresentar agora como sendo trabalho seu", acusa Cláudio
Torres. O ex-autarca não comenta esta declaração por a considerar
"descabida".
Seja como for, quem se desloque a Mértola nota que já não há jovens a trabalhar
nas escavações. "Tudo isso acabou", lamenta o arqueólogo, que recebeu
o Prémio Pessoa, em 1991, pelo trabalho que até então tinha desenvolvido na
vila alentejana. "As escavações foram travadas", prossegue o
investigador, esclarecendo que só foi possível concretizar o arranjo da
alcáçova do castelo de Mértola, para a tornar visitável, porque era um projecto
antigo.
"Estamos a viver com enormes dificuldades com base no trabalho na área
formativa para sobreviver", informa Cláudio Torres, referindo que a única
tarefa que ainda vai sendo feita se limita ao levantamento e interpretação dos
vestígios arqueológicos que surgem num qualquer buraco que é aberto na zona
histórica da vila.
Colocado perante os novos desafios que se apresentam à continuidade do campo
arqueológico, decorridos 30 anos, o arqueólogo acredita que apesar das
dificuldades o CAM "vai sobreviver à custa de um prestígio que vem de
trás": "O prestígio do nosso trabalho."
Vila alentejana possui a maior biblioteca temática do país sobre civilização islâmica
31.05.2009
Cláudio Torres trocou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1976, pelo campo arqueológico
No Campo Arqueológico de Mértola (CAM) trabalham cerca de 30 investigadores. Esta
equipa, considerada das melhores do país na sua área de actividade, para
resistir à ameaça do encerramento do campo arqueológico lançou-se na criação de
uma escola de formação profissional, onde os jovens da região adquirem
conhecimentos sobre arqueologia e museologia.
O CAM já concluiu um mestrado em Desenvolvimento Local em colaboração com a
Universidade do Algarve e neste momento está a decorrer um mestrado em
civilização islâmica e do Mediterrâneo, em colaboração com outras
universidades. A equipa de investigadores mantém parcerias com as Universidades
de Granada (Espanha), de Marraquexe (Marrocos) e Manuba (Tunísia). Com as
universidades de Coimbra e do Porto criou "o único instituto unificado na
investigação científica e história do Mediterrâneo e do islão", refere
Cláudio Torres, salientando que em Mértola existe "a melhor biblioteca do
país em civilização islâmica e do Mediterrâneo, com cerca de 70 mil volumes. A
este acervo bibliográfico junta-se a biblioteca pessoal que o historiador José
Matoso ofereceu ao campo arqueológico.
Os seis museus, entretanto instalados em Mértola, onde está guardado o material
arqueológico e sacro descoberto e recuperado pelo CAM, recebem cerca de 30 mil
visitantes por ano. O arqueólogo, que trocou a carreira académica para
responder ao apelo de um seu aluno, Serrão Martins, eleito presidente da Câmara
de Mértola, desenvolveu um trabalho sistemático de investigação e tratamento de
todo o património histórico de Mértola, mas agora a braços com a possibilidade
de vir a terminar.
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