[Archport] Era uma vez Ida, a maior descoberta de todos os tempos...
O fóssil foi um caso de ciência pop
Era uma vez Ida, a maior descoberta de todos os tempos...
PÚBLICO
05.06.2009 - 10h27 Nicolau Ferreira
Nem o Google escapou à histeria. Quinta-feira de manhã, o logótipo da
empresa tinha-se transformado numa paisagem do Eocénico com o mais
recente "elo perdido" da evolução humana estampado no centro.
Ida ou Darwinius masillae - para celebrar os 200 anos do nascimento de
Charles Darwin -, o fóssil de uma primata com 47 milhões de anos,
tinha sido dada a conhecer ao mundo no dia anterior, a 19 de Maio, e
veio embrulhada num pacote irresistível, com o laçarote "a oitava
maravilha do mundo" ou "a Mona Lisa" de Oslo, à escolha do freguês.
Nessa quarta-feira o estudo foi publicado na revista científica online
"Public Library of Science One" (PLoS One), ao mesmo tempo que em
muitas redacções do mundo algum jornalista ou editor recebia um
comunicado de imprensa intitulado The link.
Poucos órgãos de comunicação sabiam o que estava para acontecer. O
comunicado da PLoS One explicava que aquela informação era "para
publicação imediata, não há embargo associado a este artigo", por isso
os jornais estavam livres para publicar a notícia quando quisessem.
Resultado, a descoberta tem 763 ligações no Google Notícias UK e 62 no
português. No mesmo dia o fóssil foi apresentado numa exposição em
Nova Iorque pelo mayor da cidade. Foi também disponibilizado um site,
lançado um livro e a BBC e o Canal História, que seguiram os vários
passos da pesquisa do fóssil, tinham documentários televisivos prontos
para serem apresentados. Era difícil conseguir mais imediatismo à
volta do fóssil, mas a máquina que lançou Ida pôs ainda David
Attenborough à frente do esqueleto. "Ela representa a semente de onde
vieram a diversidade dos macacos, os macacos antropóides e em última
análise todas as pessoas do planeta", disse o famoso comunicador de
ciência britânico ao jornal "Guardian", que já tinha preparado duas
páginas de jornal para contar toda a história.
Perdida no tempo
Ida teve um pontapé de saída explosivo, dirigido com ângulo certo para
ser apanhado por todos os meios de comunicação. "A ciência já está
muito permeável às técnicas jornalísticas", esclareceu ao P2 Helena
Mendonça, jornalista e bolseira da Fundação para a Ciência e
Tecnologia, apontando como exemplo a técnica do lead - o primeiro
parágrafo com que os artigos no jornalismo arrancam, onde se responde
ao quê, quando, como, onde e porquê da notícia - que já é utilizada em
todos os comunicados na ciência.
A crítica principal feita aos autores foi a forma como apresentaram
Ida ao público, transmitindo a ideia de que as ossadas eram a maior
descoberta de sempre de um elo perdido e que iriam revolucionar tudo o
que se sabia até aqui sobre a evolução do Homem, o que estava bastante
distante da informação patente no artigo científico. Se mais nada
fosse dito, e se ninguém estivesse atento, Darwinius masillae ficava
na História como nosso antepassado directo com 47 milhões de anos, na
altura em que os primatas ainda se estavam a diversificar.
Só por si Ida é impressionante. Está preservada em 95 por cento,
raríssimo se olharmos para outros fósseis de primatas da mesma altura
que chegam às nossas mãos só com uma mandíbula ou outro osso. A
primata teria nove meses quando caiu no lago Messel, que fica na
região que hoje é a Alemanha, quando a Terra tinha um clima mais
quente, com florestas tropicais a alcançarem a latitude actual do Sul
de França e florestas temperadas a tocarem nos pólos, uma verdadeira
estufa - foi na época do Eocénico, há 56 a 34 milhões de anos.
O lago Messel manteve a primata preservada em sedimentos finos. Quando
em 1983 um coleccionador privado encontrou as ossadas na cova de
Messel - que é Património da Humanidade classificada pela UNESCO
devido aos inúmeros fósseis desta época que guarda em condições
extraordinárias -, não só era possível ver o contorno dos pêlos da
primata, alguns até estavam conservados, como a última refeição
vegetariana ainda não tinha sido comida pelo tempo.
O fóssil teve uma vida atribulada até 2002. As ossadas foram divididas
em duas metades, tendo uma sido restaurada e vendida como se estivesse
completa. Em 1991, o Dinosaur Center at Thermopolis, no Wyoming, EUA,
adquiriu-a. Mas em 2000, Jens Franzen, primeiro autor do novo artigo
sobre Ida, estudou e compreendeu que o restauro era um logro, só com
uma pequena parte verdadeira. A outra metade, que era maior, foi
adquirida só há dois anos pelo Museu de Oslo, numa bem sucedida
aventura de Jorn Hurum, o show man norueguês da paleontologia, grande
responsável pela exposição mediática de Ida.
"O meu coração começou a bater muito depressa", disse o investigador
do Museu de Oslo aos jornalistas há duas semanas, referindo-se à
compra do fóssil. "Eu sabia que o vendedor tinha nas mãos um
acontecimento mundial. Não consegui dormir durante duas noites." Há
poucos dias, Hurum revelou que adquiriu a segunda parte do fóssil por
mais de 500 mil euros. Depois, o paleontólogo contactou vários
investigadores para analisar o fóssil.
Mas antes de reunir aquilo que chamou a sua "equipa de sonho", o
norueguês apresentou Ida a Anthony Geffen, o director executivo da
Atlantic Productions, uma produtora sedeada em Londres. Os dois já
estavam envolvidos num programa sobre o Predador X - o fóssil de um
réptil e carnívoro aquático do tempo dos dinossauros que Hurum estava
a investigar. O monstro foi dado a conhecer em Março, na mesma altura
em que o documentário foi exibido pelo Canal História, com a
frase-anúncio "Faz o Tyranossaurus rex parecer um cachorrinho".
Geffen ficou imediatamente interessado em Ida. "Na realidade, é raro
alguém que faz televisão compreender a importância de um pequeno
animal com o tamanho de um gato", explicou o norueguês à revista
"Seed". Durante dois anos, enquanto a investigação sobre o fóssil
prosseguiu, a campanha mediática foi crescendo.
Entre teorias
"É provável que pudesse ter sido publicada uma pesquisa mais
detalhada", disse por email ao P2 o paleontólogo Christophe Soligo,
referindo-se ao resultado dos dois anos de estudo de Ida. "E pelo
menos um dos autores (Phil Gingerich) parece admitir que estiveram sob
pressão para coordenar o artigo com os planos de publicidade", referiu
o investigador do London College.
O artigo científico publicado na PLoS One foi comparar várias
características entre as novas ossadas e os esqueletos de primatas da
mesma época. O Darwinius masillae pertence aos adapiformes, um grupo
de primatas extinto que se pensa estar mais próximo dos primatas
inferiores como os lémures e mais distante dos grupos de primatas
superiores que incluem os társios e os verdadeiros símios - macacos
dos velho e novo mundo, antropóides e o Homem.
Mas Ida, que não tem mais do que 66 centímetros de comprimento,
apresenta características que a afastam dos lémures e aproximam-na dos
macacos superiores: não tem uma garra no segundo dedo do pé, nem
dentes fundidos, os polegares dos pés são oponíveis e já apresenta o
talus, um osso do tornozelo que aparece mais desenvolvido nos humanos.
Estas características dão força a uma teoria que defende que os
adapiformes estão incluídos no ramo que deu origem aos primatas
superiores, levemente sustentada pelo artigo.
"Isto não é uma hipótese nova", explica Christophe Soligo. "Os
Cercamoniinae (a subfamília dos adapiformes a que Darwinius pertence)
tem sido durante muito tempo um dos grupos dos primatas do Eocénico
que se teoriza ter estado na origem da evolução dos antropóides,
apesar de esta hipótese se ter tornado menos popular nos últimos anos."
Assumir o espectáculo
Embora haja no meio científico quem considere que o estudo tem lacunas
quanto ao número de características que se compararam entre Ida e os
outros fósseis, tanto o paleontólogo como Adam Rutherford, jornalista
da "Nature" que escreveu um artigo de opinião a criticar a campanha
mediática, defendem que o estudo apresentado na PLoS One é cauteloso.
"Houve coisas ditas sobre Ida que não estavam no artigo, que sofreu
peer review [o processo de revisão dos artigos que é feito por outros
especialistas na área e é fundamental no processo de produção
científica]: quando dito pelos media, isso é mau jornalismo. Quando
dito pelos cientistas, isso é perigoso e desrespeita o processo de
revisão", explicou ao P2 por email o jornalista, que também edita os
podcasts da Nature.
"O que neste caso parece ser paradigmático", aponta por outro lado
Helena Mendonça, "é que fez-se o artigo o melhor possível, mas agora
para a imprensa vai-se tornar isto numa grande bomba", refere a
jornalista, que está a tirar o doutoramento sobre a relação entre o
jornalismo e a ciência.
Em resposta a acusações parecidas, Jorn Hurum atenuou o significado do
elo perdido. "Nós não estamos a alegar que [a Ida] é o nosso ancestral
directo. Isso é de mais. Nós só existimos há poucos milhões de anos e
a Ida esteve viva há 47 milhões de anos." Mas o cientista assume o
espectáculo, que aliás, já tinha sido utilizado no Predador X, que
segundo o paleontólogo é a melhor forma de pôr os miúdos interessados
em paleontologia. "Qualquer banda pop ou atleta faz o mesmo tipo de
coisas. Nós, na ciência, temos que começar a pensar da mesma forma",
disse, citado pela "Times Online".
O norueguês defende ainda que o público deve ser o principal crítico
da ciência, justificando desta forma a escolha da PLoS para publicar o
artigo em detrimento de uma Nature ou Science, mais reputadas, mas com
acesso limitado a assinantes ou a quem queira pagar pelo artigo, o que
não acontece com a PLoS One que tem os conteúdos disponíveis
gratuitamente.
"É difícil porque não há público que possa legitimar uma coisa
destas", referiu Helena Mendonça em relação a esta posição do
norueguês. "Nem acredito que outros antropólogos cá [em Portugal]
possam olhar para o artigo e dizer que 'é verdade' ou 'não' o facto do
elo perdido. Quem somos nós para dizer que isto é mau, no máximo
poder-se-á dizer 'isto cheira mal'."
Rutherford põe no factor tempo a decisão final sobre o que representa
o fóssil Ida. "Com o tempo, vamos compreender o que Ida é na
realidade, e isso vai ser feito por cientistas motivados não por
horários televisivos ou vendas de livros, mas pela procura do
conhecimento, puro e simples", defendeu o jornalista, que apontou os
blogues - e não os meios de comunicação tradicionais - como os locais
de informação onde "mais uma vez" saíram as melhores notícias sobre o
assunto.
"O problema com a apresentação da Ida é que foi demasiado grande em
magnitude", desabafou o jornalista. "Algumas das declarações feitas
pela equipa foram um absurdo, como compará-la à ida à Lua, à Mona Lisa
ou ao Cálice Sagrado. Ela não é nada disso, mas é um fóssil
verdadeiramente notável. Pessoalmente, acho que ela não precisa de
nenhuma hipérbole, porque é impressionante."