Re: [Archport] Um padre numismata (e saqueador)
Cara Maria Isabel
A ideia, "errada", de apodar este sacerdote de saqueador foi minha.
Por mais que admire a sua paixão de coleccionador e a verve com que
admite que incentivou a recolha de "tudo o que aparecesse na região de
Trás-os-Montes", não posso deixar de me desgostar com o tom
hagiográfico com que este artigo foi redigido e publicado.
É verdade que os tempos eram outros - mas, é exactamente por terem
mudado, que não podemos continuar a pactuar com esta visão de
antiquário e de coleccionista sobre o NOSSO património. Portanto,
lamento mas, mesmo descontando o facto de serem outras as
mentalidades, isto que este sacerdote fez mais não foi do que caça ao
tesouro, já que, pelo que parece, não se guiou pelas boas práticas
instituídas pelo estado ético, metodológico e científico da
arqueologia do momento (que, recordo, também se fazia desde pelo menos
os finais do século XIX em Portugal).
E mais, não percebo como pode este sacerdote "leccionar" arqueologia
(mesmo que seja numa Universidade sénior), sabendo-se que a
arqueologia é feita de acordo com regras científicas publicadas e
segundo um código deontológico, aprovado e seguido pela grande maioria
dos arqueólogos; já o esbulho, a caça ao tesouro e a espoliação não
seguem essas regras nem esse código.
Afinal, há a regra não escrita que diz que não há uma maneira certa de
escavar, só uma menos destrutiva, já que escavar é sempre destruir –
escavar um castro é como ir lendo um livro raro, único, e ir
queimando-lhe as páginas à medidas que as vamos lendo. Só se tem uma
única oportunidade de registar tudo o que for possível registar. Se
falharmos um pequeno detalhe que seja, essa informação perder-se-á
para sempre; por isso os arqueólogos têm de fazer registos rigorosos
de tudo o que escavam. Os coleccionadores não perdem tempo com estas
coisas; só se interessam por artefactos com valor de mercado ou pela
própria natureza do objecto, alvo da sua pulsão coleccionista.Ora,
quanto a esta colecção, os artefactos têm muito pouco interesse fora
do contexto em que foram encontrados. A quem servem 40.000 moedas fora
de contexto? Apenas aos coleccionistas. Perderam-se, infelizmente,
oportunidades únicas de encontrar muitos sítios arqueológicos ou de
datar outros tantos.
Relembro aos mais distraídos que todos os sítios arqueológicos, seja
de que período forem, são um recurso finito. Uma vez destruídos e/ou
pilhados (ou escavados), desaparecem para todo o sempre. Não são,
literalmente, propriedade de alguém ou de um país em particular. São
património da Humanidade. O país ou a região que tem a sorte de os ter
deve considerar-se como guardião de um recurso histórico precioso e
envidar todos os esforços de forma a protegê-lo e estudá-lo - ou seja,
deve geri-los em nome da Humanidade (aliás, há leis e convenções a que
Portugal está vinculado que criminalizam, hoje em dia, tais acções de
esbulho e de vandalização). Bem executados, esses esforços engrandecem
quem os desenvolve, gerando mais valias para as regiões, quer através
da musealização desse património, quer por toda a dinâmica de
investigação criada.
Lamento dizê-lo, mas não reconheço ao "esforço" deste sacerdote
qualquer mérito cultural. Muito pelo contrário.
2009/10/13 Maria Isabel da Veiga Cabral <isabelveigacabral@gmail.com>:
> Caro Alexandre Monteiro
>
> Agradeço o e-mail que teve a gentileza de enviar sobre o Padre Paredes, que,
> apaixonado pelo coleccionismo, neste caso de moedas, acabou por juntar uma
> colecção impressionante.
>
> Não sei de quem partiu a ideia, errada, de acrescentar ao título do e-mail "
> ... e saqueador"... Certamente de alguém, que por excesso de zelo, não se
> apercebeu de que a atitude do padre não foi predatória. E tanto assim é, que
> os resultados estão à vista - uma colecção de moedas que se teria perdido
> para sempre nas mãos de quem não entendia o que encontrara. O resultado
> prático foi a salvaguarda de testemunhos históricos importantes. É pena que
> não tenha havido, na altura certa, uma colecção de Padres Paredes.
> Certamente muito do nosso património e das nossas memórias não se teriam
> perdido.
>
> Com os meus cumprimentos
>
> Maria Isabel da Veiga Cabral
>
>
>
>
> 2009/10/8, Alexandre Monteiro <no.arame@gmail.com>:
>>
>>
>> http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/print.pl?id=75377
>>
>> Ecclesia, 07/10/09
>>
>> João Parente, Padre e... Numismata
>>
>> Ser coleccionador de moedas é um hobby frequente, mas juntar cerca de 40
>> mil moedas romanas é uma tarefa hercúlea. O presbitério de Vila Real tem um
>> enamorado pela numismática cuja paixão se transferiu para o nome: Pe. João
>> das «Moedas».
>>
>> Neste Ano Sacerdotal, a Agencia ECCLESIA foi conhecer esta faceta do padre
>> coleccionador. Nascido na década de 30, numa data que diz muito aos
>> portugueses (13 de Maio), o Pe. João Parente foi substituir um padre da
>> diocese na região de Alijó e, durante uma conversa com “três rapazitos”,
>> estes disseram-lhe que havia um castro numa localidade próxima onde
>> apareciam “pacharricas”. Ao visualizar aquele achado do século IV, o jovem
>> padre deu-lhes o dobro daquilo que os rapazes pediram: “cinco coroas por
>> cada uma delas”.
>>
>> Aquela compra foi o início de uma paixão. No Domingo seguinte foi
>> novamente à terra do «tesouro». “Apareceram tantas pessoas com moedas que
>> não tinha dinheiro suficiente para comprar aquilo tudo” – lamentou.
>>
>> Com o intuito de colocar ordem na colecção e saber as datas verdadeiras
>> das moedas, o Pe. João Parente comprou, em Londres, um “livro simples” sobre
>> numismática romana. Posteriormente, adquiriu os melhores manuais desta arte.
>> “Tive tanta sorte que, nos trinta anos em que me dediquei à numismática,
>> apareceram-me moedas de todos os gostos e feitios” – confessou.
>>
>> Neste domínio, tudo o que aparecesse na região de Trás-os-Montes “não
>> deixava escapar nada”. O gosto pelas moedas era tanto que, “às vezes, ficava
>> com dificuldades económicas”. E acentua: “juntei perto de 40 mil moedas
>> romanas”. Seguidamente, começou a coleccionar moedas gregas, visigóticas,
>> cartaginesas, ibéricas e luso-romanas. Fez um leque cronológico que ia do
>> Ano 450 antes de Cristo (AC) até ao ano 702 depois de Cristo (DC). “Tinha
>> uma moeda mandada cunhar por Pôncio Pilatos” – afirma com alguma emoção.
>>
>> Era uma colecção tão extensa que “não sabia o que fazer a tanta moeda”.
>> Nunca quis vender o fruto de milhares de horas de trabalho. No entanto conta
>> que “o Banco de Portugal fez-me propostas para comprar a colecção”. Algumas
>> autarquias e uma universidade também o sondaram para o nascimento do museu
>> das moedas. “Sou natural de Vila Real e queria fazer o museu nesta cidade” –
>> realça o numismata.
>>
>> Depois dos “muitos problemas que tive com a Câmara de Vila Real”, esta
>> restaurou uma casa e fez-se lá o museu onde estão “expostas 4 mil moedas
>> (desde 450 AC até 702 DC)”. E acrescenta: “o catálogo desta selecção demorou
>> 30 anos a fazer”. As restantes moedas – ao todo eram cerca de 40 mil – estão
>> no acervo da instituição. “Umas são repetidas e outras estão estragadas”.
>>
>> Com mais de 70 anos, actualmente, o Pe. João das «Moedas» é professor de
>> Arqueologia da Universidade Sénior de Vila Real, mas não perdeu a paixão
>> pelo hobby. Em casa arquiva “poucas dezenas para mostrar aos meus alunos” –
>> disse.
>>
>> Para conservar e limpar aquelas preciosidades com muitos séculos, o Pe.
>> João Parente lamenta a morosidade e delicadeza do processo. “Há moedas que
>> resistem aos ácidos e ficam boas, mas outras tinham que ser limpas com uma
>> escova”. Depois de ser visível a leitura da moeda – “mesmo que ficassem com
>> um bocadinho de verdete” – o coleccionador não lhe “tocava mais”.
>>
>> As moedas de prata e ouro não necessitam de cuidados especiais. “Só lavar
>> e mais nada”. Em relação aos objectos de bronze, a limpeza deverá ser “mais
>> cuidadosa e com muito jeito”. “Foram milhares de horas” – realça. Das nove
>> moedas de Alijó nasceu uma monumental colecção. É conhecido a nível nacional
>> e internacional. Um dia enviaram-lhe uma carta de Viena (Áustria) com o
>> seguinte endereço: Padre João das Moedas – Portugal. “A carta veio cá ter a
>> casa” – salientou.
>>
>>
>>
>> Paixão pela Arqueologia
>>
>> Para além das moedas, o Pe. João Parente também gosta de arqueologia.
>> “Algumas peças são do Paleolítico”. Numa visita a um colega com alguma
>> idade, este sacerdote de Vila Real é surpreendido com um “machado do
>> neolítico”. Após um pequeno diálogo sobre o achado arqueológico, o
>> coleccionador recebeu um presente: “pode levá-lo”. A doação não foi fácil.
>> “Não quero porque se tivesse uma coisa destas não a dava a ninguém”. Teve
>> como resposta: “Pode levar porque esse objecto está aí há muitos anos à
>> espera de alguém que aprecie”. (Risos)
>>
>> Não sabe quanto investiu nas colecções, mas em “trabalho foi mais de
>> trinta anos”. As poupanças “iam para as moedas e peças arqueológicas” –
>> frisou. Nesta troca de dinheiro por dinheiro (risos), o Pe. João Parente
>> conta um episódio: “Os meus colegas e sobrinhos riam-se de mim e diziam, com
>> frequência, que eu ligava a coisas velhas e que não prestavam”.
>>
>> Com “um temperamento próprio” e uma “paixão pelas coisas antigas”, o padre
>> coleccionador lecciona aulas nesta área na Universidade Sénior daquela
>> cidade. Só os verdadeiros apreciadores “é que compreendem o tempo passado
>> junto das moedas”. Nestas tarefas não existem apenas vitórias. “Apanhei
>> doenças devido ao pó das moedas” – confidenciou.
>>
>> A exercer o seu múnus pastoral em Mondrões e Parada de Cunhos, o Padre
>> João Parente garante que as “coisas essenciais na paróquia não perco”.
>> Questionado se nunca se atrasou para uma missa por causa de uma moeda, o
>> coleccionador deu uma gargalhada e foi lacónico. “Não... Às vezes
>> levantava-me da cadeira mesmo no limite da hora”. (risada)
>>
>> Os coleccionadores “perdem a noção do tempo”. E completa: “Às vezes
>> estamos um dia ou um mês com a moeda”. Para aparecer o resultado final
>> “temos de consultar muitos livros”. Tempos infinitos... No entanto, quando
>> se encontra a decifração na folha mágica “lembro-me da parábola do Evangelho
>> sobre o «Dracma Perdido»” – confessa.
>>
>> Este hobby e esforço na recolha de objectos perdidos no tempo são
>> reconhecidos pela população de Vila Real. Apesar deste sentimento de
>> felicidade nota-se no padre coleccionador uma certa mágoa: “não foi
>> reconhecido pela Câmara Municipal a quem fiz uma doação total”. E
>> acrescenta: “não estou arrependido daquilo que fiz”.
>>
>> Calcorreou os montes circundantes da região do Marão na busca de elementos
>> arqueológicos. “Procurei gravuras rupestres e penedos com as mensagens dos
>> nossos antepassados”. Como resultado deste palmilhar “fiz um livro sobre a
>> arqueologia” naquela zona.
>>
>> A idade não lhe tira a vontade de trabalhar. Como não pode andar pelos
>> montes – “tive um problema numa anca” – o Pe. João Parente está a elaborar
>> um livro sobre a idade média no distrito de Vila Real. “Gosto da história
>> antiga e medieval” – afirma. A Torre do Tombo, em Lisboa, e o Arquivo
>> Distrital de Braga são poisos frequentes deste sacerdote transmontano. As
>> novas tecnologias não lhe são indiferentes. Não teve aulas de computador,
>> mas “sei trabalhar um texto e colocar notas de rodapé”.
>>
>>
>> Amigo de Miguel Torga
>>
>> Para além do prazer pelas «coisas antigas», o Pe. João Parente também
>> gostava de andar com a espingarda ao ombro e atirar uns tiros às perdizes.
>> “Fui colega de Miguel Torga na caça”. E relata um episódio: “na poesia ele
>> era melhor que eu, mas na caça isso não acontecia”.
>>
>> O forte deste escritor de S. Martinho da Anta (Sabrosa) não era a
>> pontaria. “Matava uma ou outra perdiz, mas não era grande especialista na
>> caça”. Os dois parceiros percorreram muitos trilhos naquela região de
>> Trás-os-Montes. Como o Pe. João Parente matava mais perdizes do que o
>> escritor – “nunca me deu a oportunidade de partilhar com ele o produto da
>> caça” -, este ficava “zangado e desaparecia”. (Risos.)
>>
>> Os amigos comuns ajudavam na reconciliação destes dois transmontanos. “Às
>> vezes – mal disposto – Miguel Torga maltratava-me e dizia que eu era
>> assassino porque matava muitas perdizes”. Certo dia, o padre caçador
>> perguntou-lhe: “O senhor doutor mata poucas porque não pode ou porque não
>> quer?”. Apesar destes episódios, “admiro-o muito”.
>>
>> Na paróquia de Mondrões há trinta e oito anos, este padre de Vila Real
>> recorda a data de chegada àquela localidade e o encontro com uns homens
>> sentados no muro do adro da igreja. Depois dos bons dias, perguntou-lhes se
>> aquela zona tinha perdizes. Teve uma resposta afirmativa. Não perdeu tempo e
>> foi à caça. “Matei nove perdizes” – disse. Os comentários não se fizeram
>> esperar: “o padre matou tudo, o padre matou tudo…”. No domingo seguinte
>> equipou-se novamente com o seu camuflado e foi à busca das perdizes. Não
>> teve a sorte da primeira vez. Num diálogo com uma senhora – “não me conheceu
>> porque parecia um tropa” –, esta disse-lhe que “existia muita caça na zona,
>> mas passou lá o filho da… do padre e matou-as todas” (risada sonora).
>>
>>
>> Mais de 50 anos de sacerdócio
>>
>> Em 1957, recebeu a ordenação sacerdotal. “Não estou nada arrependido da
>> opção que fiz” – confessou. Teve muitas alegrias e “um ou dois problemas por
>> causa das festas”, mas “sinto o carinho das pessoas”. Adaptou-se “bem” ao II
>> Concílio do Vaticano e, actualmente é responsável pela Arte Sacra da
>> diocese. A “maioria dos padres acata a minhas posições sobre o restauro das
>> capelas” – afirma o Pe. João Parente. E conclui: “sou um padre que gosta de
>> uma boa dose de humor”.
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