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[Archport] Poesia e Arqueologia. Ou o invés.

Subject :   [Archport] Poesia e Arqueologia. Ou o invés.
From :   Manuel Castro Nunes <arteminvenite@gmail.com>
Date :   Wed, 25 Nov 2009 16:19:11 +0000

Porque a Arqueologia é também disfrutar da memória, recente e milenar.
 
 

Memórias de Angola

 

Uma transgressão do espaço físico

 

 

 

Não sei muito bem ainda recordar com detalhe como tudo se passou. Foi há tanto tempo…

Subitamente estava exausto com o gargalo de uma garrafa de cerveja que o Jorge Sá Pinto me passara, do seu lugar de condutor do Land Rover, enfiado nas goelas, estirado sobre as grades do tejadilho, ao lado do gigante negro. Era o condutor por direito da viatura, mas viera no meu encalço para disputar uns goles da garrafa de Whisky que surripiáramos da geleira do Vítor, que andava perdido com o seu grupo algures na aridez do Planalto.

Tudo começara assim:

Uma vez que o nosso destino era Benguela, o Jorge, aficionado do mergulho, levava na bagagem a tralha toda. Eu roubara-lhe as barbatanas e fizera uma aposta. Seria capaz de acompanhar a marcha do jipe, a correr a corta mato com as barbatanas calçadas.

Tudo se passava durante uma breve ausência do comandante da expedição, o Vítor Oliveira Jorge, que se perdera no horizonte com o seu grupo, a Susana incluída, claro, em demanda já não sei de quê. Os que ficámos estávamos de ressaca. Tínhamos passado a noite anterior, não me recordo em que vilória, a mergulhar da prancha de saltos, da distância de cinco metros de altura da superfície das águas lodosas, de uma piscina que nem enxergávamos. Noite de breu.

Cumprida a aposta, uma vez que tinha ganho, o Jorge entregou-me a garrafa de Whisky. Só para mim. Mas o gigante achou que também merecia, o condutor era ele e tinha-me facilitado a vitória.

A perseguição iniciou-se comigo de novo a fugir com as barbatanas enfiadas nos pés e terminou com o corpo a corpo no tejadilho do jipe, onde me tinha acastelado.  O gigante apoderara-se do punhal do equipamento do Jorge e aquilo estava a entrar pelo sério. Ninguém venceu todavia, porque a garrafa rebolou para cima de um penedo e estilhaçou-se. Foi o Garcia quem, de gatas, ainda lambeu o que se conseguiu salvar, antes que se evaporasse. E então ali estávamos os dois estirados, a gozar o repouso dos guerreiros, sorvendo a bebida ritual, que, uma vez que não pudera ser Whisky, era cerveja. Suponho que foi a Luísa quem nos trouxe o creme solar. O gigante não precisava dele, eu é que sou alvo, da cor dos deuses olímpicos. Ele era mais negro do que qualquer deus bantu. Um carvão.

Depois, foi o cabo dos trabalhos. O fim da tarde aproximava-se, o horizonte incendiado pelo ocaso, o Vítor não aparecia com o seu grupo. Após duas intermináveis horas em itinerário labiríntico, circular, lá fomos resgatá-los de cima de um penedo que tinham trepado, mas de onde já ninguém conseguia sair.

Quando chegou abaixo desabafou: onde está a minha geleira? Preciso de um gole de Whisky.

Bebeu cerveja, como nós.

Passada uma semana ouviam-se de novo as largas e pesadas passadas do Vítor no último piso do edifício da Faculdade em Sá da Bandeira, chamava-se assim ainda, transportando três ou quatro calhaus em cada mão. Cá em baixo, no convívio, perante a audiência dos trânsfugas, a Susana recitava poesia. A do Vítor.

E, se bem me lembro, a poesia do Vítor tinha mais audiência do que os seus calhaus.

É esta a minha arqueologia. Não estávamos em lugar algum. Transgredíramos todos os limites do espaço físico e do tempo cósmico.



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Manuel de Castro Nunes

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