Memórias de Angola
Uma transgressão do espaço físico
Não sei muito bem ainda recordar com detalhe como tudo se passou. Foi há tanto tempo…
Subitamente estava exausto com o gargalo de uma garrafa de cerveja que o Jorge Sá Pinto me passara, do seu lugar de condutor do Land Rover, enfiado nas goelas, estirado sobre as grades do tejadilho, ao lado do gigante negro. Era o condutor por direito da viatura, mas viera no meu encalço para disputar uns goles da garrafa de Whisky que surripiáramos da geleira do Vítor, que andava perdido com o seu grupo algures na aridez do Planalto.
Tudo começara assim:
Uma vez que o nosso destino era Benguela, o Jorge, aficionado do mergulho, levava na bagagem a tralha toda. Eu roubara-lhe as barbatanas e fizera uma aposta. Seria capaz de acompanhar a marcha do jipe, a correr a corta mato com as barbatanas calçadas.
Tudo se passava durante uma breve ausência do comandante da expedição, o Vítor Oliveira Jorge, que se perdera no horizonte com o seu grupo, a Susana incluída, claro, em demanda já não sei de quê. Os que ficámos estávamos de ressaca. Tínhamos passado a noite anterior, não me recordo em que vilória, a mergulhar da prancha de saltos, da distância de cinco metros de altura da superfície das águas lodosas, de uma piscina que nem enxergávamos. Noite de breu.
Cumprida a aposta, uma vez que tinha ganho, o Jorge entregou-me a garrafa de Whisky. Só para mim. Mas o gigante achou que também merecia, o condutor era ele e tinha-me facilitado a vitória.
A perseguição iniciou-se comigo de novo a fugir com as barbatanas enfiadas nos pés e terminou com o corpo a corpo no tejadilho do jipe, onde me tinha acastelado. O gigante apoderara-se do punhal do equipamento do Jorge e aquilo estava a entrar pelo sério. Ninguém venceu todavia, porque a garrafa rebolou para cima de um penedo e estilhaçou-se. Foi o Garcia quem, de gatas, ainda lambeu o que se conseguiu salvar, antes que se evaporasse. E então ali estávamos os dois estirados, a gozar o repouso dos guerreiros, sorvendo a bebida ritual, que, uma vez que não pudera ser Whisky, era cerveja. Suponho que foi a Luísa quem nos trouxe o creme solar. O gigante não precisava dele, eu é que sou alvo, da cor dos deuses olímpicos. Ele era mais negro do que qualquer deus bantu. Um carvão.
Depois, foi o cabo dos trabalhos. O fim da tarde aproximava-se, o horizonte incendiado pelo ocaso, o Vítor não aparecia com o seu grupo. Após duas intermináveis horas em itinerário labiríntico, circular, lá fomos resgatá-los de cima de um penedo que tinham trepado, mas de onde já ninguém conseguia sair.
Quando chegou abaixo desabafou: onde está a minha geleira? Preciso de um gole de Whisky.
Bebeu cerveja, como nós.
Passada uma semana ouviam-se de novo as largas e pesadas passadas do Vítor no último piso do edifício da Faculdade em Sá da Bandeira, chamava-se assim ainda, transportando três ou quatro calhaus em cada mão. Cá em baixo, no convívio, perante a audiência dos trânsfugas, a Susana recitava poesia. A do Vítor.
E, se bem me lembro, a poesia do Vítor tinha mais audiência do que os seus calhaus.
É esta a minha arqueologia. Não estávamos em lugar algum. Transgredíramos todos os limites do espaço físico e do tempo cósmico.
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