Inuk tinha os olhos castanhos e uma propensão para a
calvície
Público, 10.02.2010, por Ana Gerschenfeld
Foi graças a um tufo de cabelo, conservado durante
milénios no permafrost do Árctico, que uma equipa internacional de
investigadores conseguiu, pela primeira vez, reconstituir 80 por cento do
genoma de um ser humano pré-histórico e determinar alguns dos seus traços
físicos, bem como alguns elementos da origem geográfica dos seus antepassados.
Eske
Willerslev, da Universidade de Copenhaga, e os seus colegas, que publicam os
seus resultados na revista Nature, baptizaram com o nome Inuk este velho humano
– que os seus genes dizem ser do sexo masculino. Inuk, que viveu há uns
quatro mil anos na Gronelândia, pertencia à cultura saqqaq, hoje extinta,
conhecida como sendo a primeira a ter habitado aquela região do mundo. Trata-se
de um povo sobre o qual pouco se sabe, porque pouco resta da sua cultura.
Os restos de cabelo – e também de osso – provêm da localidade de
Qeqertasussuk. Mas, ironicamente, como conta também na Nature Rex Dalton, num
perfil de Willerslev, não foi ele que os encontrou. O cientista já tinha
procurado, em 2006, cabelos humanos no permafrost da tundra do norte da
Gronelândia. Mas em vão. Qual não terá sido o seu espanto quando, dois anos
mais tarde, deu com o cabelo de Inuk... numa cave do Museu de História Natural
da Dinamarca, a escassos quarteirões de distância do seu próprio laboratório. Estava
lá guardado há 20 anos.
Genómica último modelo
Utilizando a mais avançada geração de máquinas de sequenciação genética, os
investigadores conseguiram, no ano passado, extrair e sequenciar o ADN do
cabelo de Inuk. A operação demorou dois meses e meio e custou meio milhão de
dólares. Graças a isso, puderam repetir a sequenciação 20 vezes, o que lhes
permitiu obter resultados de grande precisão, com muito poucos erros de leitura
dos seis mil milhões de bases do ADN (metade vinda da mãe de Inuk, metade do
seu pai). “A nossa sequência”, disse Willerslev durante uma
conferência telefónica com jornalistas, “é comparável em qualidade à dos
genomas sequenciados até agora de indivíduos actuais”.
A seguir, os cientistas fizeram, basicamente, o que faz hoje qualquer uma
daquelas empresas que, por algumas centenas de euros, nos propõem analisar o
nosso genoma para determinar a nossa ancestralidade, características físicas e
os nossos riscos perante diversas doenças: estudaram os chamados SNP de Inuk
– mais precisamente, 350 mil destes marcadores genéticos. Os SNP, ou
single nucleotide polymorphisms, são variações pontuais, numa única letra do
ADN, distribuídas por todo genoma e que permitem deduzir este tipo de
informações comparando os indivíduos.
Concluíram assim, entre outras coisas, que Inuk tinha provavelmente os olhos e
a pele castanha, que tinha os dentes “em forma de pá” (uma
morfologia característica dos povos asiáticos) e que estava geneticamente
adaptado ao clima frio do seu habitat. Que a cera dos seus ouvidos era seca,
que o seu grupo sanguíneo era A+ e que tinha uma tendência para a calvície. A
este propósito, Willerslev salienta que “este tipo tinha ainda muito
cabelo, portanto deve ter morrido jovem...”
Mas a grande surpresa veio do estudo da ancestralidade de Inuk. “Descobrimos
que as populações actuais geneticamente mais próximas de Inuk”,
acrescenta Willerslev, “são três populações da Sibéria”. Os
nganasans, os koryaks e os chukchis. Embora Inuk possa não ser representativo
da cultura saqqaq, isto sugere que, ao contrário do que se pensava, terá
havido, há uns 5500 anos, uma migração do Velho Mundo para o Novo Mundo até
agora desconhecida e independente da dos antepassados dos inuit e dos índios da
América do Norte. Inuk tem, ao que tudo indica, antepassados diferentes destas
duas outras populações. Trata-se de uma migração “substancial e
relativamente recente que atravessou o estreito de Bering da América do Norte
até a Gronelândia”, escrevem por seu lado dois especialistas, David
Lambert e Leon Huynen, da Universidade Griffith, na Austrália, num comentário
que acompanha a publicação dos resultados.
Naquela altura, frisa ainda Willerslev, “terão tido de atravessar o mar
de Bering de barco ou de passar por cima do gelo aproveitando o Inverno”.
Desta vez, os investigadores utilizaram o melhor material imaginável para
extrair o ADN: um espécimen congelado – e portanto pouco degradado ou
contaminado com ADN de outras espécies. Mas os cientistas confiam que, mesmo
com outro tipo de restos, vindos de latitudes mais amenas, será possível fazer
o mesmo. Morten Rasmussen, um dos co-autores do trabalho, explicou aos
jornalistas que para isso, bastará que os fragmentos de ADN sequenciados
“sejam suficientemente compridos para encaixar sem ambiguidade numa dada
localização do genoma humano”.
“Vamos ver aparecer muitos mais resultados destes nos próximos cinco
anos”, garante Willerslev. O seu próximo objectivo: fazer o mesmo com
múmias. “Há, um pouco por toda a América do Sul, múmias que têm entre
8000 anos e uns séculos.”
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