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[Archport] Ronda dos Fortes da Terceira

To :   archport <archport@ci.uc.pt>
Subject :   [Archport] Ronda dos Fortes da Terceira
From :   Alexandre Monteiro <no.arame@gmail.com>
Date :   Tue, 16 Feb 2010 01:36:50 +0000

Do Castelinho à Boa Nova: Ronda dos Fortes

Os fortes da Terceira são estruturas arquitetónicas precursoras a nível nacional, que retratam a luta contra os corsários e a história política e militar do país. E estão nos mais belos locais da costa da ilha. O historiador Manuel Faria volta a propor a criação de uma “Ronda dos Fortes”, que rentabilize este património e garanta a preservação de muitas fortificações que estão em risco de se perderem.



São fustigados pelo mar, pelo vento e pela indiferença das populações e das entidades responsáveis. Na Praia, chegou-se a retirar pedras de fortificações para construir as casas que acolheram os norte-americanos. O historiador Manuel Faria quer ver criada uma “Ronda dos Fortes”, partindo do Castelinho, passando por toda a costa e acabando no Castelo de São João Baptista, onde surge o museu a instalar no Hospital da Boa Nova. Se nada for feito em termos de preservação as perdas podem ser irreparáveis.

Os fortes da Terceira sentam-se à beira-mar, escuros e robustos, olhando algumas das mais belas paisagens da ilha. Começaram a ser construídos numa época em que a guerra se fazia no Oceano. Era a luta contra os corsários ao serviço das coroas inglesa, francesa, holandesa… Hoje, vários anos depois do historiador Manuel Faria ter apresentado o projeto “Ronda dos Fortes”, a grande maioria das fortificações terceirenses encontra-se ao abandono. O tempo e a erosão vão apagando as muralhas.

Atualmente, com a passagem do Hospital da Boa Nova, antigo hospital militar que servia o Castelo de São João Baptista, em Angra do Heroísmo, para as mãos da Região, a “Ronda dos Fortes” ganha outra força.

Os fortes da ilha são estruturas precursoras a nível nacional e não só. Marcam a passagem da fortificação medieval para a moderna. “Na fortificação medieval temos os castelos que costumamos ver no Continente, construídos essencialmente em altura, posicionados em pontos altos, com grande domínio sobre a paisagem. Com a evolução do armamento e o aparecimento da piro-balística (armas que trabalham a partir do fogo e da pólvora) há a tendência, lógica, das muralhas descerem e tornarem-se bastante mais espessas. Os Açores surgem exatamente nesse período de transição entre a velha fortificação e a nova. São fortificações precursoras da nova forma de construir”, explica.

De acordo com o coronel, se a ronda fosse uma realidade iniciar-se-ia pelo Castelinho. “Infelizmente está lá a pousada, que eu preferia que não estivesse, porque a partir dali tinha-se um ponto de partida excelente para explicar a cidade e a própria sociedade angrense da altura. O ideal seria não rentabilizar através da estalagem mas em termos culturais e depois financeiros, através do fluxo de turistas”. Além disso, esta é também uma estrutura única. “Estávamos a falar da transição para o abaluartado. Esta fortificação, com o forte de São Brás, em São Miguel, é a primeira construção do abaluartado português. Só isso tem valor suficiente em termos culturais”. Manuel Faria admite que a pousada é hoje uma realidade no Castelinho mas considera que o facto de a muralha continuar caída é uma “vergonha”.

Quanto ao resto da ronda seguiria pela costa Sul rumo a Leste, dando a volta à ilha e acabando no Castelo de São João Baptista, já com o Hospital da Boa Nova transformado e a acolher a coleção militar do Museu de Angra.

Mas a “Ronda dos Fortes” nunca avançou. No início, recorda Manuel Faria, o objetivo era realizar um projeto regional de inventariação de fortes. “A intenção não era propriamente saber quantos havia mas recolher informação sobre os fortes com o objetivo de essencial de preservar o que ainda houvesse. Esta Ronda tinha exatamente essa meta, de dar rentabilidade cultural mas também económica, em termos turísticos, e assim motivar para a preservação. Esta coisa do património é muito bonita mas se não lhe dermos rentabilidade mínima torna-se muito complicado”, avisa.

A oferta da Terceira em termos de fortes é imensa. “É a ilha que tem mais fortificações. Se esse trabalho fosse para a frente, só na ilha, iríamos inventariar para cima de 60 pequenos fortes”.

Manuel Faria afirma que já não existem muitos fortes em bom estado. A esmagadora maioria está ao abandono, fustigada pelo mar, pelo tempo e pela indiferença das populações. “Temos fortificações completamente abandonadas. Estou fora da Terceira há alguns anos e deixei, por isso, de fazer a ronda dos fortes, que, de vez em quando, fazia.
 
Mas estou convencido que há muita coisa que já desapareceu. O Diário Insular publicou uma vez, no âmbito deste trabalho que eu estava a desenvolver, uma fotografia do forte do Porto Judeu em que se via um canto da fortificação, uma muralha muito alta, com uma gaivota pousada. Estou convencido que essa parte da muralha já não existe. Neste momento tenho alguma dificuldade em saber ao certo como estão os fortes em termos de degradação mas tenho a certeza que nada se fez”, lamenta.

O desconhecimento e indiferença da população e das entidades responsáveis face a este património histórico têm sido talvez o maior inimigo. Chegou-se mesmo a retirar pedra das fortificações para construir habitações. “A partir do século XIX, foi feita a inventariação dos fortes pela engenharia militar. Vê-se que muitas vezes quando vão dar valor ao forte é em função do que rende a venda da pedra. Aos fortes que ficavam junto de povoados, depois de deixarem de ter utilidade, foram-lhes retiradas pedras para a construção”, exemplifica.

Na Praia da Vitória a pedra seguiu dos fortes para as futuras casas dos norte-americanos. “Há o forte das Chagas, logo a seguir ao convento de São Francisco, onde está o auditório do Ramo Grande. Esse forte, ainda há relativamente pouco tempo, em 1940, estava em muito bom estado. Esse e o outro lá ao fundo, do Espírito Santo. Mas curiosamente a pedra foi retirada quando se fizeram aquelas casas para os americanos irem viver. Porém, isto não tem nada a ver com os americanos porque foram os terceirenses, realmente, que levaram a pedra. Isto porque não lhe atribuíam valor.
 
Não estavam sensibilizados para o valor cultural”, conta.

Se o abandono dos fortes persistir, o preço a pagar pode ser irrecuperável. “A fortificação dos Açores sempre foi uma questão um pouco difícil. Os fortes estão à beira-mar, sofrem muito com erosão, com frequência o mar bate neles, e, é claro, que ao abandono ainda é pior. Acabam por desaparecer”.

Pensar em ações de promoção capazes de vender esta “Ronda dos Fortes” não é difícil. As fortificações têm o charme de estarem ligadas à luta contra o corso, imagem que despertaria o interesse de locais e turistas. São exemplos únicos no país em termos de arquitetura. E estão em sítios lindíssimos. Vender os fortes da Terceira é levar os visitantes numa visita pelos mais belos pontos da costa. “A Ronda dos Fortes, se fosse devidamente organizada em termos de descoberta da paisagem da costa terceirense, tinha coisas lindas. Os fortes estão em sítios estratégicos de forma a puder ‘bater’, em termos de artilharia, o máximo possível de mar. Por isso estão em sítios privilegiados e belíssimos”.
 
Hospital-Museu

Imagine que começou por visitar o Castelinho, onde o fizeram “entrar” na história da cidade e da ilha, depois seguiu pela costa, admirando paisagens de mar, céu e verde e fortificações que contam episódios históricos e que falam de corsários. Depois regressou à cidade Património Mundial da Humanidade, visitou o Castelo de São João Baptista, admirou a vista sobre a cidade e inspirou o ar puro do Monte Brasil. E ainda há tempo para visitar aquele que se pensa puder ser o primeiro hospital militar do país, que serviu as forças militares, de espanhóis a portugueses, do Castelo de São João Baptista. Lá está um museu de história militar. Talvez haja também uma loja onde se podem comprar “souvenirs” ou um pequeno canto agradável onde se pode parar para tomar uma bebida e falar sobre o que se viu naquele dia.

Esta seria a “Ronda dos Fortes” e uma das suas peças principais o antigo Hospital da Boa Nova.

Numa noite de um dia de semana, num hotel de Angra, Manuel Faria explicou, numa apresentação aos membros do “Clube Rotário”, o percurso deste hospital, intimamente ligado à sociedade angrense.

Contou a história desde o início. “Em 1583, o marquês de Santa Cruz trouxe consigo um hospital para assistência a feridos e doentes durante a expedição militar de submissão da Ilha Terceira à soberania e D. Filipe I. Conquistada a ilha, com este corpo especializado ‘fundou’ o Hospital Real de Angra, fazendo-o instalar no centenário hospital da Misericórdia da cidade”, relata.

Este hospital prestava, há mais de um século, assistência aos doentes locais, bem como aos navegantes da armada de Sua Majestade. Com as suas instalações ocupadas pelo hospital militar passou a funcionar em condições precárias, “na casa da moeda contígua, com grande dano da sua benemérita ação”, continua Manuel Faria. Já após a partida do terço espanhol e com o aboletamento de uma força de cerca de 400 homens em Angra, a Câmara começou a exercer pressão para que se encontrasse uma solução para os soldados dentro das muralhas, libertando as enfermarias para a população local.

“Ainda não sabemos, ou eu não sei ao certo quando foram construídos os edifícios que vieram acolher o Hospital Real de Angra. Provavelmente essa informação estará em documentação ao Arquivo Geral de Simancas, a que até agora não tive acesso. Sabemos comprovadamente que em 1642, na sua ermida de invocação de Nossa Senhora da Boa Nova se realizaram conversações que levaram à rendição da fortaleza e que a partir de então a documentação identifica o Hospital Real de Angra com o nome Hospital Real de Nossa Senhora da Boa Nova”, conta.

Este hospital prestou assistência até à Segunda Guerra Mundial, altura em que passou a enfermaria regimental. Para trás ficam histórias que nos falam da nossa História. “O pessoal médico especializado – médico, cirurgião e sangrador não exerciam os seus ofícios em exclusividade no hospital, sendo apenas requisitados os seus serviços quando havia doentes internados”, recorda o historiador, que explica também que o sangrador costumava exercer funções como barbeiro…

Os soldados eram na sua maioria terceirenses, existindo também elementos de outras ilhas e os oficiais. Ingressava-se na vida militar aos 16 anos e o berço não perdoava. “Uns atingiam os cargos mais elevados na hierarquia do comando, obviamente vindos da nobreza, outros, plebeus, não passavam de soldados”.

A vida de soldado era pobre. “O governador do Castelo recebia 50 mil reis por mês, os soldados 1200 reis, metade em dinheiro, metade em trigo. Os soldados viviam uma existência miserável. O soldo em dinheiro podia andar um ano, dois ou três em atraso. Valia-lhes o recebimento em géneros, em princípio pontual. Não admira, assim, que a Câmara de Angra diligenciasse para que tivessem alojamento dentro das muralhas: durante a noite já não se poderiam dedicar ao furto!”.

A história do Hospital da Boa Nova faz parte do Livro do Tombo do Castelo de São João Baptista, que Manuel Faria está a preparar com José Reis Leite. Mais um contributo para que os terceirenses adquiram património identitário. E a salvação para os fortes da ilha pode passar por isso mesmo. “Se as pessoas virem naquelas pedras os ‘avós’, lá de trás, que foram soldados, talvez elas lhe digam alguma coisa”.

(Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico).

 
in Revista Diário Insular, 14-02-2010

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