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[Archport] Pensar o mundo, pensar a Arqueologia, pensar o "Outro"

Subject :   [Archport] Pensar o mundo, pensar a Arqueologia, pensar o "Outro"
From :   Pedro Albuquerque <skapedroalbuquerque@gmail.com>
Date :   Wed, 15 Sep 2010 02:19:36 +0100

Car@s archportianos, mais uma vez sinto necessidade de intervir neste espaço, porque acho que estes discursos que aqui se partilham apresentam alguns aspectos perigosos. Antes de enumerá-los, queria perguntar: utilizando tantos clichés nestes pensamentos, estaremos, realmente, aptos para interpretar de forma crítica o registo arqueológico? Não estaremos a correr o risco de criar generalizações perigosas? Lembro o triste exemplo (recentíssimo) de Sarkozy, que começou a expulsar pessoas que pertencem à comunidade cigana (baseando-se unica e exclusivamente nesse critério de pertença). Quando a situação é difícil, aponta-se o dedo ao “outro”, ao “diferente”, culpando-o pelos nossos erros. Não será um pouco isto que está a acontecer nos debates deste espaço?

Estes juízos de valor pecam sempre pela sua superficialidade, principalmente porque esse “outro”, esse “diferente”, é sempre aquele que é mais fácil de depositar no mesmo “saco”. Ou seja, quase chegamos ao ponto de afirmar que muçulmano = terrorista, cigano = ladrão, etc, etc., etc. Vamos começar, também, a deportar as pessoas dos piercings, dos charros e das t-shirts para Amsterdão?

Estes pensamentos são, em primeiríssimo lugar, indignos de profissionais formados numa Ciência Humana. Foram essas generalizações que pautaram muitos dos erros que a própria Arqueologia cometeu no passado, recorrendo aos seus ideais xenófobos para construir as suas «comunidades imaginárias», os seus nacionalismos, para justificar todas as atrocidades que se cometeram num passado bem recente (a interpretação do Passado não faz parte do nosso trabalho?). Pouco a pouco, muitos desses pensamentos foram superados, e uma das críticas apontadas à Arqueologia foi, precisamente, o uso do Senso Comum na interpretação do registo arqueológico, na tentativa de fornecer explicações satisfatórias para aquilo que se identificou e estudou. A libertação perante alguns dos nossos apriorismos é fundamental, sublinho, fundamental, na construção de uma Arqueologia que se pretende crítica, interventiva, que desafie o presente a olhar sobre si próprio e sobre o seu passado.

O que aqui temos visto resume-se um pouco a essa formação de clichés... por exemplo, associar o tal “mau aspecto”, as t-shirts do Che e o consumo dos tais “charros” a comícios do Bloco é um deles, politicamente (des)orientado”. Primeira  generalização aplicada ao “outro”, ao “diferente”.

 «Quem é que acredita num sem abrigo, okupa, ganzado saído da Festa do Avante ou do Sudoeste??» Segunda generalização que deve ser corrigida. Primeiro: porque o “cliché” do sem-abrigo esbarra com fenómenos sociais de exclusão, a situações de vida diversas, que não devem, por nada deste mundo, ser “clichés” de julgamento. Cada caso é um caso. Segundo, o movimento okupa é muito mais rico do que aquilo que se pensa: não são apenas uns “charrados” que se juntam para ocupar uma casa porque sim, alertam-nos, muitas vezes, para o crescente abandono nas cidades. Aconselho vivamente uma visita a uma casa ocupada. Mas, para dar o benefício da dúvida, cada caso é um caso. Terceiro, julgar uma pessoa pelos seus hábitos de consumo revela, tal como nos casos acima apresentados, um pensamento superficial. Novamente, pergunto: utilizando tantos clichés nestes pensamentos, estaremos, realmente, aptos para interpretar de forma crítica o registo arqueológico?

O mesmo se diz em relação à opção, politicamente orientada ou não, por uma determinada estética do corpo. São opções, como muitas pessoas que escreveram o que escreveram optaram por ver o mundo através de generalizações. Lembro-vos que estamos num mundo globalizado, e que nesse mesmo mundo existem milhões de pessoas que não têm as mínimas condições de higiene, porque nem água potável têm. Os culpados disso, lamento muito, somos tod@s nós, que alimentamos um sistema que subsiste graças a essa desigualdade. Essas pessoas, vítimas desse sistema, não têm credibilidade perante o resto de um mundo insensível aos seus problemas? Estaremos, realmente, aptos para desafiar o presente? Ou o nosso discurso sobre o Passado apenas o justifica?  

Atribuir aos arqueólogos que fazem buracos o estatuto de “drogados”, num exemplo que alguém deve ter considerado brilhante, é o mesmo que atribuir à pessoa que proferiu essas palavras o estatuto de “saloio”, “campónio”, etc., etc., adjectivos que as meninas e os meninos da cidade muitas vezes utilizam para catalogar as pessoas que trabalham no campo e que não tiveram, em muitos casos, oportunidade de ter uma vida melhor. E que são errados! O erro está nessas generalizações, que empurraram para Auchwitz e afins milhares de pessoas... tudo não passava disso mesmo, de generalizações, de pensamentos que, hoje, deviam ser inconcebíveis. Mesmo não chegando a esse extremo, o Senso Comum não mudou assim tanto na forma como vê as diferenças e como age sobre elas... há que sair do «buraco» e olhar um pouco mais além dele... ou, se preferirmos, da caverna, que tão bom nome deu a Platão.

Por isso, meus caros colegas, há que definir o que é essa verdade que se afirma tão peremptoriamente, tão segura de que o é. A mudança é importante, sim, mas ela deve começar por nós próprios, nos nossos actos, nos nossos pensamentos, pois como dizia Oscar Wilde, «the highest, as the lowest, form of criticism is a mode of autobiography» (Picture of Dorian Gray). Necessitamos – sim, necessitamos – de mais e melhor formação, não só como profissionais, mas como pessoas, como intérpretes do passado. Os maus cheiros não me custam. Custa-me, isso sim, ver que pouco ou nada evoluímos.

Tudo isto não exclui a necessidade de uma conduta correcta no contexto de trabalho. Mas, por favor, concentrem-se nisso, não nesse tal “mau aspecto”. Mau aspecto, verdadeiramente, é a falta de pensamento crítico em várias intervenções... é com este pensamento que se quer chegar ao grande público? A credibilidade constrói-se, meus caros colegas, pela palavra, pelos nossos actos. Há erros na conduta profissional? Sim, claro que há. É nisso, e somente nisso, que devemos focar as nossas atenções, e não na forma como uma pessoa mete medo ou não. Pergunto: um arqueólogo psicopata, bem vestido, inspiraria confiança?

 

Por favor, não tenho a arrogância de pedir que mudem. Peço, isso sim: pensem...


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