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[Archport] Pode a Arqueologia Portuguesa (sobre)viver sem Tutela?

Subject :   [Archport] Pode a Arqueologia Portuguesa (sobre)viver sem Tutela?
From :   Jacinta Bugalhão <jacintabugalhao@gmail.com>
Date :   Tue, 15 Mar 2011 22:34:11 +0000

 Caros colegas

 
No passado dia 2 de Março, a Associação dos Arqueólogos Portugueses divulgou uma moção aprovada na sua Assembleia-Geral acerca da mais recente reestruturação orgânica dos organismos públicos com competências sobre o Património Cultural Imóvel. A situação que motivou esta tomada de posição é, em meu entender, muito grave e requer a maior atenção dos arqueólogos, apesar de uma certa apatia que se verifica entre a nossa profissão…

Tenho falado com alguns colegas que me referem não ser possível construir uma opinião, muito menos tomar uma posição, sem deter informação mínima sobre o que de facto se passa. Nobre e sensata atitude; tenho a certeza que quem vem desenvolvendo esta “reforma” conta com ela para ir passando discretamente entre os pingos da chuva até que o facto esteja consumado. Não podemos esperar por mais informação, porque ela não vai chegar. Há muito tempo que a estratégia seguida pelo Estado nestas coisas é a mesma: a discussão pública é vista como um embaraço, areia na engrenagem, logo é de evitar a todo o custo. Assim se queremos informação temos de a procurar. Foi o que eu fiz: procurei por todos os meios que consegui obter informação junto de quem a possui, cruzei os dados e cheguei, acredito eu, a um conjunto de informações fidedignas que agora partilho convosco.

No Ministério da Cultura (como aparentemente nos restantes) prepara-se uma reestruturação orgânica que visa a diminuição de unidades orgânicas e chefias. Paralelamente, perspectiva-se um aprofundamento da regionalização dos serviços iniciada em 2007. Como é que estas operações irão afectar a área da Arqueologia? Em primeiro lugar é certa a intenção de transferir as 10 Extensões Territoriais do IGESPAR para as DRC’s. Em segundo lugar, o emagrecimento da estrutura do IGESPAR provocará o desaparecimento das 2 únicas unidades orgânicas de arqueologia (DAPA e DANS) bem como a supressão de 1 dos 2 subdirectores do Instituto, o “arqueólogo”; ambas as situações resumem o que sobrou após a extinção do IPA e consubstanciavam as garantias dadas à comunidade arqueológica de que as “valências” do IPA iriam ser preservadas no IGESPAR…

Outra informação relevante que gostaria de partilhar refere-se ao facto de esta reestruturação orgânica curso não contar com a colaboração de nenhum arqueólogo. Trata-se portanto de uma medida com fortes consequências para a Arqueologia nacional, mas completamente órfã: não há nenhum arqueólogo, do aparelho de Estado ou fora dele, a colaborar neste processo. Ninguém representa a Arqueologia e os arqueólogos. Assim, questiono-me: quem com conhecimento, competência, experiência e curriculum nesta matéria, assegura que os interesses da Arqueologia e dos arqueólogos, que são interesse público, estão salvaguardados? A nossa área de trabalho é demasiado complexa, sensível e especializada para delegarmos em burocratas uma reforma desta natureza. Não me parece que haja condições para passarmos uma procuração a este respeito, seja a quem for, muito menos em branco! As consequências deste processo disfuncional e leviano começam a emergir.

Começando pelo menos grave: a Arqueologia será VARRIDA da estrutura orgânica do Estado. Assim e pela primeira vez desde a República, o Estado não possuirá uma estrutura orgânica especializada em Arqueologia, os arqueólogos não terão um interlocutor que ao mesmo tempo é um par. Aos Conselhos de Arte e Arqueologia (1911), Comissões Municipais de Arte e Arqueologia (1932), Junta Nacional de Escavações e Antiguidades (1933), Comissões Municipais de Arte e Arqueologia (1940), Departamento de Arqueologia e Secção de Arqueologia do Conselho Consultivo - no IPPC e no IPPAR (1980 e 1992), Serviços Regionais de Arqueologia (1980), Instituto Português de Arqueologia (1997), Divisão de Arqueologia Preventiva e de Acompanhamento (2007), sucederá NADA! A existência de organismos, estruturas orgânicas e de um processo de decisão tecnicamente especializados foi sempre uma das aspirações dos arqueólogos. O facto da apreciação e decisão em Arqueologia passar para organismos e dirigentes sem qualquer grau de competência técnica, conhecimento, comprometimento ou interesse em Arqueologia será sem dúvida, não um mas “O” passo atrás. Foi assim que o Côa aconteceu, foi assim nas fases mais negras do nosso passado recente quando éramos poucos e desconsiderados e a Arqueologia era uma curiosidade que não contava para nada: nem na reabilitação urbana, nem nas grandes obras e projectos, nem no ordenamento do território, nem na investigação científica. É para aí, para o estatuto de hobby “muito interessante”, que grupos de pressão com poder económico e político nos querem novamente remeter, e aparentemente estão a ter sucesso…

Mais grave porém é o enfraquecimento, fragmentação e até desaparecimento da Tutela Arqueológica, tal como esta está instituída no sistema jurídico português (Regulamento de Trabalhos Arqueológicos, Lei de Bases do Património e Convenção de Malta). A Tutela Arqueológica materializa-se na existência de um organismo público que aglutina competências de gestão, regulação, fiscalização, inventário, apoio à investigação e promoção da disciplina. Trata-se de competências de salvaguarda do interesse público e não corporativo, pois destina-se a defender valores da sociedade e dos cidadãos de forma sustentada e evoluída. Não carece de uma estrutura pesada, pois não tem funções executivas mas sim de regulação. Não deve ser pulverizada, pois é muito especializada e fluida; se diluída em organismos vários de espectro funcional alargado, dilui-se, perde para a concorrência; sem o necessário protagonismo, a Arqueologia será remetida rapidamente para competência marginal, residual. Foi assim no passado e voltará rapidamente a ser assim. Só uma Tutela una, autónoma e bem adequada organicamente às necessidades funcionais da gestão arqueológica se pode assumir eficazmente como interlocutor institucional e social.

Numa perspectiva de racionalização de recursos públicos escassos, é também importante referir que o país não possui recursos para ter 5 ou 6 sistemas avançados de informação arqueológica ligados a 5 ou 6 SIG’s avançados, como dificilmente criará 5 ou 6 bons, modernos, bem apetrechados e tecnologicamente evoluídos Arquivos de arqueologia abertos à utilização pública. O país precisa de concentrar e racionalizar recursos; dispersar equivale a desorçamentar, desinvestir, dispersar, devanear e desestruturar.

Com base nas escassas informações disponíveis, depreende-se que as alterações eminentes passam também por alargar à gestão arqueológica o retorcido, burocratizante, ineficaz, ineficiente, financeiramente irracional e tecnicamente errado processo que separa institucionalmente os processos de instrução (DRC’s) e decisão (IGESPAR), remetendo os organismos regionais para um papel incompreensivelmente dependente e sem qualquer autonomia ou poder efectivo, mantendo em funcionamento um organismo central com poderes inexplicáveis de decisão superior, que apenas tem servido para expor a administração pública às pressões externas, sem nenhum resultado efectivo na salvaguarda do Património.

Ou seja, o IGESPAR será também para a Arqueologia o IPOST’it, como já é para a salvaguarda dos bens classificados. Assim, e como acontece para os projectos em áreas ou imóveis classificados, os processos ligados à actividade arqueológica serão processados nas DRC’s (informação técnica, parecer do Director de Departamento, despacho do Director Regional, estes dois últimos não arqueólogos), depois viajarão (efectiva e fisicamente) para o Palácio da Ajuda onde outro técnico os voltará a apreciar (!?) e colocará um post’it, que posteriormente passará para um Chefe de Divisão e Director de Departamento (todos não arqueólogos) que manterão o post’it ou (raramente) o substituirão. Finalmente, o Director de Instituto despacha o processo: copia o post’it. Depois ainda, viaja tudo de volta para as DRC’s que comunicam a decisão a quem por ela espera (simplex no seu melhor!). Ou seja, o IPOST’it impõe-se pois não é aceitável na administração pública a coexistência de dois circuitos/processos de decisão (logo, o segundo é clandestino) e porque o despacho do IGESPAR não pode ser “de cruz” (como seria sem o post’it…). E como se este absurdo, que vigora para os bens classificados há 4 anos sem que o Ministério da Cultura o resolva, não fosse suficiente, o mesmo Ministério quer agora estende-lo à gestão arqueológica, com a agravante que pelo meio os processos ainda têm de ir ao Inventário (para registo no Endovélico) e ao Arquivo de Arqueologia (para fotocopiar?!). Ou não e acaba-se de vez com o Endovélico e com o Arquivo de Arqueologia. ISTO É RIDICULO!

Ou seja, a reforma em curso, não resolve a inexplicável subalternidade das DRC’s, continua a manter um organismo central normativo, que não normaliza nada (nem serve para nada?) e dá-se a machadada final à Tutela arqueológica, que ainda é a única função com sentido no actual IGESPAR, por pior que este organismo a desempenhe, pois como todos sabemos a confusão, ineficiência, inadequação e falta de clareza orgânicas, imperam sem solução desde a sua criação em 2007!

Não é disto que a Arqueologia precisa. A Arqueologia precisa de uma Tutela moderna, leve, eficaz e simples! Dirigida por arqueólogos. Com autonomia técnica e poder de decisão. Dedicada apenas à gestão, regulação, fiscalização, inventário, apoio à investigação e promoção da disciplina. Reconhecida institucionalmente. Sem confusões. Foi este modelo que no passado recente produziu melhores resultados, que produziram as grandes mudanças da Arqueologia portuguesa.

Se o processo em curso vingar, o interesse público será afectado. Também os arqueólogos e as empresas de arqueologia serão afectados. Acreditem que eu sei do que falo: o volume de actividade arqueológica como nós hoje o conhecemos não caiu céu; foi consequência do trabalho deliberado, dedicado e exclusivo de uma Tutela. Nós somos arqueólogos. A nossa função social é defender a Arqueologia como fonte de saber e o património arqueológico como recurso comum e finito. Se assistirmos impávidos (como temos estado) ao destroçar de importantes instrumentos do nosso ofício, ficaremos à mercê de um merecido mau julgamento futuro!

Por isso lanço daqui um apelo para aqueles que eventualmente partilhe estas minhas preocupações: temos que assumir as nossas responsabilidades colectivas! É o que eu pretendo, com este testemunho…

 

Jacinta Bugalhão

 


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