Excelentíssimos Senhores:
Manuel Maria Guimarães de Castro Nunes, falecido em Março, não me recordo do dia, de 1975, em Angola, nos arredores de Moxico, venho, em resposta a Vossa solicitação, declarar o seguinte:
Ora, primeiro que tudo, deixemo-nos de formalidades, deixem-me escrever de uma forma mais informal.
Fui o primeiro docente nomeado, ao abrigo de concurso público, para área disciplinar de arqueologia, na Universidade de Évora, em Setembro de 1984. Penso que talvez em Portugal. Ainda não compreendi, com os dados disponíveis, se foram admitidos, nas universidades de Lisboa, Coimbra e Porto, docentes designados explicitamente para a área de arqueologia em data anterior.
No documento de nomeação está bem explícito que a área para que é aberto e fechado é a área de Arqueologia Geral de Portugal, que não sei bem o que seja, mas Vossas Excelências saberão e é arqueologia com toda a certeza.
Ora, como a arqueologia, na Universidade de Évora, era então ministrada por uma rapaziada da área da história que já por lá andava, ao abrigo de um padre danado e alcoviteiro, que não gostava muito da minha cara, ou do resto, coube-me a mim ter a honra de ministrar uma cadeira de história contemporânea, o que muito me aprouve, pois sempre era um bom pretexto para umas boas larachas com os alunos, naquele tempo as coisas eram assim.
E, como ninguém era capaz de o fazer, por falta de mérito, ou por preguiça, foi-me acometida a espinhosa empresa de classificar e inventariar a colecção de objectos doados à UE pela Associação dos Amigos do Hospital de Évora, uma barafunda de coisas sem nexo, que integrava mesmo o espólio exumado à bomba por Henrique Leonor Pina, da Anta Grande do Zambujeiro.
Passados dois meses, sempre que abria um caixote, tremiam-me as mãos e tinha vontade de partir aquilo tudo a golpe de sabre. Sabre de mão.
Razão pela qual Ário Lobo de Azevedo, homem ainda com alguma dignidade, talvez por compaixão, me confidenciou que não ligasse muito àquele manicómio e, sempre que entendesse, poderia requisitar um jipe e pôr-me salvo lezíria fora a ver a paisagem.
Mas a rapaziada não me largava as canelas e todas as noites se reunia em minha casa à lareira, para tirar dúvidas e colher a minha opinião. Subitamente, pois, estava envolvido como mediador na guerra fria que decorria entre a rapaziada da UE e a dos Serviços de Arqueologia do Sul, pois não havia forma de um projecto de trabalhos de iniciativa académica passar pela lógica socorrista que presidia aos critérios do então IPAR.
Foi adentro dessa conjuntura, que expliquei, pela primeira vez, ao pessoal, que a arqueologia era uma coisa, a medicina socorrista outra. Pelos vistos, vinte e cinco anos passados, ainda ninguém me compreendeu.
Grande trapalhada. Era necessário um doutorado na área de arqueologia na UE, para impor respeito. Lá salto eu de novo para a berlinda, porque o que estava mais a jeito era meu pai. E depois de considerar o assunto, entendi que não devia causar semelhante dano a meu pai. E tive então a luminosa ideia de propor: ‘’Ora, convide-se o Jorge Alarcão’’.
Lá lhe escrevi uma cordial carta, mas devo-lhe ter ocultado o essencial. Porque, chegado, olhou em redor, chamou-me de lado e disse, talvez com vontade de me puxar as orelhas: ‘’Não, Castro Nunes. Peça ao seu pai!’’
Desabou então o António Augusto Tavares na UE. E então aliviaram-se-me as costas e pude continuar a fazer o que gostava, passear pela lezíria. Ainda me foi atribuída a realização das cartas arqueológicas dos concelhos de Alandroal, Borba e Vila Viçosa, que constavam em meu nome na base de dados do IGESPAR até meados do ano passado. Como era muito incómodo que eu fosse arqueólogo, constam agora em exclusividade no nome do Manuel Calado.
Bem, Excelentíssimos Senhores, como a história seria muito comprida e maçadora, podeis calcular o resto por dedução. Embora possa documentar, se o entenderdes, esta com certidões narrativas e prosseguir nela, na narrativa, um pouco para a frente. Mas talvez não seja oportuno, de momento, atirar com mais lume para a fogueira.
Por esta razão, solicito a Vossas Excelências a dispensa da condição de arqueólogo, que me vou a ser poeta.
Os meus cumprimentos.
Manuel Maria Guimarães de Castro Nunes.*
* Vulgo: O Manel.
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Manuel de Castro Nunes
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