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Re: [Archport] [Museum] Alienar património é uma questão nova para os museus

To :   archport <archport@ci.uc.pt>
Subject :   Re: [Archport] [Museum] Alienar património é uma questão nova para os museus
From :   3raposos@sapo.pt
Date :   Sat, 12 Nov 2011 16:21:40 +0000

Saúdo a contribuição da Isabel Luna, abaixo. Precisamos muito deste tipo de reflexões, exigentes e sossegadas. Mais tarde ou mais cedo, não tenhamos ilusões, a questão sensível da relação custo/benefício na manutenção dos acervos museológicos vai colocar-se também entre nós. É bom que estamos preparados, quer dizer que cada um reflicta e procure alicerçar o melhor possível a sua posição. O pior que poderá acontecer é defender questões complexas com base em pensamentos simplistas, ditados por posturas ideológicas demasiado esquemáticas.

Dito isto e reconhecendo embora a pertinência das observações da Isabel, devo acrescentar que não a acompanho algumas das saídas que parece sugerir.
Alguns exemplos:
a)      Quanto à gestão pública ou privada doa acervos museológicos. Tudo depende de que acervos estamos a falar. Existe uma diferença enorme entre o acervo do Museu Gulbenkian, do Museu do Oriente, do Museu da Farmácia (privados) e dos Museus Nacionais portugueses (refiro-me aqui especialmente aos que juridicamente assim são classificados desde 1965, classificação que aliás importaria rever). É que estes últimos integram patrimónios que constituem a memória da Nação; aqueles, não. Aliás entre eles (os privados indicados) existem diferenças abissais. Para mim, o Museu Gulbenkian poderia ser classificado como "museu nacional" português. Mas não penso o mesmo quanto aos outros dois. Não tenho por óbvio que o Estado e os museólogos tivessem de intervir em caso de encerramento e eventual venda das respectivas colecções, especialmente no caso do Museu da Farmácia, constituído maioritariamente por colecções com expresso valor de mercado (compradas muitas em leilões), numa óptica onde o interesse patrimonial e do público (inegáveis) convivem de mãos dadas com o do entesouramento privado da entidade proprietária.
b)      Quanto à exigência demasiada da RPM / IMC para reconhecer museus, dando como exemplo a abertura ao público - elemento essencial constante também da definição do ICOM. Não concordo com a Isabel porque não entendo que exista vantagem em descaracterizar a esse ponto o conceito de museu. O enfraquecimento da relação com o público (como também faz notar a Isabel noutra passagem) constitui um perigo de morte para os museus. Regressariam à condição de "arquivos", depois de "armazéns" de que seria mais fácil vender os "stocks" em tempo de crise. Na nossa lei existe aliás alternativa para quem queira constituir colecções, sem os requisitos necessários a ser museu: são as colecções visitáveis, que até podem ser objecto de apoio público tal como os museus. Acontece é que a palavra museu ainda possui um sortilégio tal que a faz desejada. Imagine-se o que seria se no caso das farmácias se passasse a aceitar que não tivessem a gama de medicamentos que é suposto terem, mas apenas alguns, os mais vendáveis; que não tivessem de estar abertas ao público nos horários normais e de extensão a que são obrigadas; etc., etc. Deixariam de ser farmácias e deixaria de existir a relação social entre instituição e população que lhes confere o estatuto. O mesmo se diga das universidades, se deixassem de ter investigação, etc, etc. Ou seja, cada instituição deve procurar definir os seus contornos sociais através de critérios de demarcação exigentes e não o contrário. É mais caro ter um museu, uma farmácia ou uma universidade do que ter um armazém de coisas velhas, uma loja de chinês ou uma sociedade de recreação e cultura ? Pois é. Mas entendemos todos, enquanto Nação-Estado, que devemos possuir aquele tipo de serviços, sendo indiferente aqui quem paga o quê, quer dizer, sejam instituições pública ou privadas, isto porque, enquanto não vivermos a "lei da selva", mesmo a iniciativa e os capitais privados têm de obedecer a regras de funcionamento ditadas pelos poderes públicos, desejavelmente em representação do Povo.
c)       Quanto à alienação ou transferências de colecções. Concordo inteiramente que cada museu deve definir uma política de incorporações, a qual por definição tem como correlativo uma potencial "política de desincorporações". Mas estas devem ser ditadas por opções programáticas e não por conveniências económicas, muito menos por "apertos financeiros". Neste sentido é de saudar, como sugere a Isabel, a permuta de colecções entre museus, visando o melhor cumprimento dos seus respectivos programas de incorporações.
d)      Finalmente, quanto à Holanda e às vendas no eBay. Confesso que aqui quase me "passo do sério". Conheço bem a recente experiência museológica holandesa, promovida por governos de direita, na base do princípio da privatização da gestão dos museus, mesmo os mais emblemáticos, e da gestão mercantilista dos seus acervos. Visitei alguns na companhia dos respectivos gestores, porque quis ver in loco e avaliar por mim antes de fixar ideias. O que vi deixou-me deveras preocupado, quase alarmado. Muitos dos acervos públicos dos museus holandeses estão actualmente a saque, postos ao serviço da rentabilidade financeira. O Museu de Arqueologia de Leiden, quando o visitei, tinha deixado de possuir investigação das colecções (dizia-me o gestor muito simpático que me recebeu que os investigadores não faziam lá falta nenhuma e eram até mal vistos); todos os espaços de circulação, e mesmo as galerias, estavam povoadas pela mais diversa quinquilharia; peças originais notáveis desfiguravam-se ao lado de recreações de plástico; etc. O Museu passou a ter mais visitantes ? Sim. O Museu passou a fazer mais dinheiro ? Sim. Mas deixou em grande medida de ser museu para passar a ser uma espécie de centro comercial. Reconheço apenas uma coisa: isto aconteceu porque a Universidade de Leiden tratou durante décadas muito mal os seus museus, que pouco mais eram do que "coutadas" dos professores... até ao dia em que um Governo de direita resolveu "partir a loiça".
Como se vê, existe aqui imensa matéria para reflexão. Na direcção do ICOM.PT temos vindo a trocar impressões sobre tudo isto e pensamos proximamente promover um ou mais debates. Contaremos contigo Isabel.
Luís Raposo



Citando Isabel Luna <misabel.luna@gmail.com>:

Gostaria de atirar mais algumas achas para esta ?fogueira?, para que o assunto não morra à nascença e possa ter a discussão que merece, sobretudo pela forma aberta e frontal como o Dr. Luís Raposo expôs aqui a sua visão.

Em primeiro lugar, é de aplaudir a coragem de alguém ter assumido falar publicamente de um tema que tem sido, ou tabu, ou alvo de respostas espontâneas, emocionais e impeditivas de qualquer debate.

Pessoalmente, não consigo ver qualquer vantagem na venda de bens culturais como forma de gestão das colecções de um museu mas, como em tudo, é passando pelas dificuldades que estas questões se colocam de outra forma, pelo que aceito que tal possa eventualmente ser uma opção, se for bem ponderada e realizada com rigor profissional e muito bom senso. Como bem referiu Luís Raposo, as ?ligações perigosas? entre o museu e o mercado são já uma realidade em Portugal - e, sobretudo, às custas dos contribuintes.

Quando se fala em incitar os cidadãos para ?defender o nosso património?, a questão que se coloca é a de saber se o património é mais ou menos ?nosso? por estar na posse do Estado, ou se é mais ou menos bem tratado pela mesma razão. Pessoalmente, não sinto que os bens detidos pela Fundação Gulbenkian ou pelo Museu do Oriente sejam menos património nacional do que os bens existentes no Museu Nacional de Arte Antiga. E também sei ? saberemos todos ? de muitos privados que têm feito mais pelo património nacional do que muitos museus públicos. Se, por infelicidade, o Museu da Farmácia se visse na contingência (como já aconteceu noutros países), de ter de vender os seus bens, penso que, apesar de a dispersão de uma colecção com tal excelência constituir, por si só, um enorme infortúnio, ninguém acreditaria que, no dia seguinte, estes bens fossem completamente destruídos ou que a sua conservação não fosse devidamente acautelada pelos seus novos proprietários. Não vejo, portanto, que a questão se possa basear neste tipo de premissas.

No debate promovido pelo ICOM em Lisboa, no Museu da Electricidade, mencionou-se a necessidade de envolver os utentes na ?luta? pela manutenção do investimento nos museus, num tempo que é de crise. Alguém da plateia referiu então que uma intervenção dos públicos seria improvável, por dificilmente estes sentirem estas causas como suas. Isto parece-me a assunção de alguma incapacidade dos museus em cumprirem a sua missão: se estas instituições existem para salvaguardar e legar às novas gerações os bens comuns e se os cidadãos não vêem estes bens como seus, somos levados a perguntar, então para que servem e o que têm andado a fazer os museus?

Receio que a ideia de que a crise actual é temporária e de que mais cedo ou mais tarde tudo voltará a ser como dantes, seja ilusória; o que poderá implicar que, dentro de alguns anos, o museu possa não existir nos exactos termos em que o concebemos actualmente. No Museu da Electricidade falou-se também do investimento feito nos museus britânicos, em tempo de crise, mas não se referiu que, apesar disso, só no ano transacto cerca de um quarto dos museus reduziu os horários de abertura ao público, 30% reduziu drasticamente o pessoal e uma grande parte foi obrigada a reduzir o número de eventos e de serviços prestados ao público.

 A acção do IPM/IMC nas últimas duas décadas foi absolutamente notável e fundamental para a requalificação do tecido museológico português mas, simultaneamente, ao formatar consideravelmente os requisitos para a existência de um museu ? nomeadamente a exigência de abertura permanente ao público -, ajudou a criar instituições que são, em muitos casos, insustentáveis. Seria óptimo que todos os museus fossem museus ideais, mas o museu ideal só existe num mundo ideal.

Sem falar na excepção que, apesar de tudo, constitui a maioria dos museus nacionais (uma pequena parcela dos museus existentes), provavelmente todos conheceremos casos de museus, alguns até muito próximos da capital, em que o número diário de visitantes se conta, por vezes, por menos de uma mão cheia. Não poderão, por ventura, esses museus cumprir melhor a sua função de uma forma mais imaginativa, que não passe, necessariamente, por aplicar a tempo inteiro todos os seus parcos recursos numa estratégia de visitação que dificilmente terá sucesso?

Parece-me que não podem existir receitas únicas e que, fundamentalmente, mais do que tentar manter condições pré-formatadas e insustentáveis nos dias que correm ? no encontro do ICOM o Dr. José Arnaud referiria, inclusivamente, a notória impossibilidade de todos os museus disporem, por exemplo, de um vigilante para cada uma das suas diversas salas de exposição -, seria positivo que a comunidade museal, de certa forma, ?aproveitasse? a conjuntura para repensar o museu e a sua acção e procurasse, desde já, formas de se preparar para tempos ainda mais complicados, que certamente se seguirão; procurando assim antecipar-se, na medida do possível, à conjuntura, em vez de ser por ela arrastada.

Não concebo ? pelo menos por ora -, a possibilidade de os museus poderem recorrer à venda do seu património para garantirem a requalificação do seu acervo, ou até mesmo a sua sobrevivência. No entanto, para lá das formas de ?ganhar dinheiro?, penso ser fundamental uma estratégia de ?poupar dinheiro? e de, dentro do possível, redimensionar as instituições e as suas actividades, de acordo com os recursos disponíveis. Neste contexto, a reavaliação dos acervos e a redução de custos com a manutenção e conservação de bens insignificantes, inúteis para a missão do museu e descartáveis, poderá já ter o seu papel. O processo poderá passar pelo estabelecimento de redes de transferência e permuta de bens entre museus, bem como de parcerias para a criação de condições de armazenamento, conservação e gestão comuns de espólios.

No entanto, acho particularmente interessante a solução adoptada na Holanda, em que as peças insignificantes que, após uma vasta consulta pública, não sejam objecto de interesse por parte de nenhum museu, são postas à venda num local acessível a qualquer cidadão que tenha interesse em cuidar delas (caso do eBay ? veja-se a página http://stores.ebay.nl/museumveiling). Não obstante a sua insignificância, estes objectos são valorizados por carregarem consigo a marca da sua anterior passagem pelo museu. Neste caso, esta parece-me uma excelente forma de, ao mesmo tempo que se garante a conservação de alguns objectos descartáveis, se formarem públicos para os museus, especialmente na noção de que este património é mesmo de todos.

 

IL

 

----- Original Message -----
From: 3raposos@sapo.pt
To: Archport@ci.uc.pt ; museum@ci.uc.pt
Sent: Thursday, November 10, 2011 11:58 AM
Subject: Re: [Archport]Alienar património é uma questão nova para os museus Público 2011-11-09 e archport 2011.11.10

 
100% DE ACORDO !
Mas importa esclarecer que a notícia do Publico não dá rigorosamente 
conta do que foi a intervenção da Inês Brandão, a qual foi 
intelectualmente exigente e longe de tomar partido por um qualquer 
liberalismo ultramontano. Tenho grande apreço intelectual pela Inês e 
dou-lhe os parabéns.
Ela apenas deu conta da experiência americana e anglo-saxónica em 
geral que lhe é familiar e pode ser reflectida nos restritos e exactos 
termos em que tem sido concebida e executada em alguns museus de 
referência, privados, mas altamente controlados pela chamada 
"sociedade civil" (coisa que pelas nossas bandas não passa de figura 
de retórica).
A mesma Inês Brandão deu a conhecer casos extraordinários de 
aviltamento dos princípios anglo-saxónicos teoricamente merecedores de 
reflexão.
Por exemplo, a venda ao desbarato em Itália de estações arqueológicas: 
uma villa romana por 40 mil euros !
Quer dizer, por um lado esta matéria não é exclusiva das colecções em 
museus; abarca todo o património.
Por outro lado, bem sabemos qual a leitura que o espírito latino do 
desenrascanço e da corrupção fará desta porta, quando a aceitarmos 
abrir...
Mais ainda: mesmo na óptica anglo-saxónica, este tipo de actuação 
coloca grandes objecções. Dando de barato que a venda de peças é posta 
exclusivamente ao serviço da aquisições de outras, tudo transparente e 
sufragado por quem o deve fazer (publico ou privado), a questão é que 
deste modo o museu passa a ser um agente de mercado, valorizando as 
"obras de arte" e os "artistas" muito melhor do que galerias comerciais.
Ora, também isto já foi entendido por agentes empresariais mais 
"espertos", que criam os seus museus para assim valorizarem activos 
que renderão muito mais do que depósitos em bancos, para depois os 
alienaram, em fracções ou por atacado, quando lhes for mais conveniente.
Enfim... o admirável Mundo Novo em que vivemos e nos espera, no qual 
alguns de nós nos sentimos cada vez mais como quixotes.
Luís Raposo

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