A propósito da mensagem da Maria Ramalho, reencaminho um interessante entrevista do jornal "i" a Ana Paula Amendoeira, presidente do comité nacional do ICOMOS.
Do que acertadamente é dito, permito-me salientar duas coisas:
1) a evidência assinalada no título ("Duvido que um super arquitecto resolva os problemas da barragem Foz Tua"); 2) a seguinte consequente resposta à questão do jornalista:
“Como se convence um presidente de câmara que não construir uma barragem será melhor do que construí-la? Eu gostaria de perceber é como é que se convence um presidente de câmara ou de freguesia de que construir uma barragem é melhor do que não construir.” !!!
“Duvido que um super arquitecto resolva os problemas da barragem Foz Tua”
Ainda na escola secundária [Ana Paula Amendoeira] deixou-se deslumbrar pela História e pelo património do seu concelho, “em particular Monsaraz e o seu fantástico território”, hoje é uma das mais importantes especialistas de património em Portugal, presidente nacional do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), entidade a quem cabe fazer avaliação do estado dos monumentos de Évora e do Alto Douro Vinhateiro, que este ano cumprem 25 anos desde a sua classificação como património mundial.
Já há alguma avaliação preliminar do estado dos monumentos em Évora? Não posso responder porque não tenho ainda a certeza se será possível fazer a avaliação devido a dificuldades internas do ICOMOS – poucas pessoas para muita coisa.
Qual é o património classificado, português, que se encontra em maior risco? Em rigor, Portugal não possui nenhum dos seus bens constantes na lista do património mundial inscritos na lista do património em perigo. Outra coisa diferente é o estado de conservação do nosso património mundial e aí claro que há problemas, como de resto em muito do património português, muito para além dos 13 bens que contamos no património mundial – o recente caso da barragem do Tua é exemplar no tipo de dificuldades que podem começar a surgir neste domínio.
Há recomendações da UNESCO? O caso mais recente de recomendação sobre um sítio português foi o relatório sobre a Barragem do Tua, no contexto da paisagem cultural do Douro, inscrita na lista do património mundial em 2001. Essas recomendações são do conhecimento público e as recomendações são muito claras e questionam seriamente o processo, o método, os fins e os meios deste projecto.
O que pensa da barragem? O que penso coincide exactamente com o conteúdo do relatório do ICOMOS. É fruto de um trabalho e de uma investigação longa, muitas vezes de décadas para chegar a conclusões sérias, técnicas e científicas, ancoradas em ideais e princípios construídos ao longo do tempo e não das conjunturas efémeras dos ciclos políticos. Por isso, não se trata aqui de opiniões ou de gosto, mas de conhecimento e de respeito pelo trabalho, estudo e reflexão.
Que impacto teria a desclassificação dessa zona? Os impactos seriam desde logo a má imagem do incumprimento a que o Estado Português está obrigado a partir da altura em que ratificou a Convenção do Património Mundial, no início dos anos 80. Esse seria, claro, um dos impactos imediatos e bastante penalizadores, sobretudo na vigência de um governo que preza tanto o cumprimento dos compromissos internacionais. Não é, repito uma questão de gosto ou de acordo, é uma questão de dever, de cumprimento de regras que se aceitaram livremente. Outro impacto seria obviamente para a paisagem do Douro vinhateiro e esse seria ainda o mais grave porque se trata de facto de uma “jóia da coroa” e já não temos muitas.
As autoridades locais estão a fazer muita pressão para construir a barragem. Acha que normalmente o poder local está preparado para ver a importância da preservação do património? Eu penso que estão preparados. Quando se trata de apresentar as candidaturas para obter os títulos e as classificações, vemos claramente que todas as pessoas atribuem um grande valor à preservação e salvaguarda do património, às vezes até com uma atitude de culto, como se o património pudesse resolver todos os problemas do momento. O caso do Douro não foi excepção.
Como se convence um presidente de câmara que não construir uma barragem será melhor do que construí-la? Eu gostaria de perceber é como é que se convence um presidente de câmara ou de freguesia de que construir uma barragem é melhor do que não construir. Sobretudo, quando a sua utilidade é questionada abertamente por muitos especialistas.
O secretário de Estado já afirmou que o projecto terá de ser equacionado. Acha que a cultura neste governo e com a conjuntura actual de crise tem peso suficiente para impedir o projecto? Não sei, mas a cultura nunca tem muito peso, não é só agora – houve muito poucas excepções na nossa História recente. Temos que aguardar para ver o que vai ser decidido e respondido à UNESCO e ao relatório do ICOMOS. Mas tenho dúvidas de que a contratação de um super-arquitecto de prestígio mundial (Souto Moura), consiga, como que por magia, resolver os graves problemas apontados no relatório do ICOMOS. Mais uma vez elege-se como solução, o projectista, em vez da adequação do programa!
O que pensa do desempenho deste governo e de Francisco José Viegas no que diz respeito ao património? Não conheço o suficiente para me pronunciar. Acho que o caso do Douro foi muito mal gerido pelo governo anterior apostando na política do facto consumado e este governo não inflectiu a atitude e o comportamento errados do anterior.
Qual foi o melhor ministro/secretário de Estado em relação ao património em Portugal?
É difícil, porque se trata de uma área onde verdadeiramente nunca estivemos em alta, mas creio que é consensual a nota positiva para o desempenho de Manuel Maria Carrilho e das suas equipas (Rui Vieira Nery, Catarina Vaz Pinto). Lembro alguns institutos coordenados por Luís Calado, Raquel Henriques da Silva, João Zilhão, o papel fundamental de Paulo Pereira e de muitos outros. Apesar de podermos discordar de muitas coisas que fizeram, trabalharam de forma séria para dar à cultura um lugar enraizado e estrutural para a progressiva evolução inteira e livre dos indivíduos e da sociedade portuguesa.
Tendo em atenção o exemplo das gravuras rupestres de Vila Nova de Foz Côa. Visto à distância, valeu a pena impedir a construção da barragem? Se medirmos tudo por dinheiro, penso que talvez sim, porque estão por demonstrar os lucros efectivos para a região se a barragem tivesse sido construída. Teria havido certamente muitos benefícios mas talvez não para o bem comum. Aliás a convicção de que o desenvolvimento e a qualidade de vida se conseguem com construção, é claramente uma ideia em contra ciclo. Se não medirmos tudo por dinheiro e se pensarmos, como penso, que nem tudo o que tem valor tem um preço, como bem diz o professor Adriano Moreira, então a minha resposta é claramente afirmativa. Sim, valeu a pena a decisão política de impedir a construção da barragem porque temos um dos sítios de arte rupestre mais importantes do mundo que prestigia o nome de Portugal nos meios culturais e científicos internacionais. E depois, os alegados prejuízos desta decisão comparados com o prejuízo do caso BPN são, como se costuma dizer “uns trocos” e não estamos perante um crime público, apenas perante uma decisão política a favor da cultura, uma das poucas da nossa História recente. Além disso, Foz Côa não pode ser vista de forma isolada, pois integra um dos eixos (Porto, Douro, Côa, Salamanca) de maior densidade e valor patrimonial mundial, tenho a certeza de que se houver bom trabalho nesse sentido a região poderá beneficiar desse enorme potencial e por muito mais tempo do que o tempo de vida de uma barragem!
Acha que os políticos se preocupam a sério com o património ou é apenas retórica? Acho que para uma grande maioria é retórica, mas não são só os políticos. Eles também têm muitas vezes as costas largas.
Estamos numa época de crise económica, normalmente, nestas alturas, o património sofre por dois motivos, por falta de verbas e por falta de capacidade argumentativa face a necessidades consideradas mais importantes. Teme pelo que vai acontecer ao património em Portugal nos próximos anos? Já está a acontecer, não começou agora. Apenas vai continuar e agravar-se. Eu não temo só pelo património mas pela nossa terra, que é muito mais do que património, e pela forma como a entendemos e como a queremos ou não cuidar.
Quais são neste momento as áreas mais problemáticas em termos de preservação do património? É difícil dizer porque há tantos problemas, talvez as nossas cidades históricas sejam as que neste momento estão mais ameaçadas, sobretudo se a nova Lei da Reabilitação não regular consistentemente os tipos de intervenção adequados aos centros históricos de maior valor.
Tem uma posição crítica em relação à classificação do património, porquê? A minha posição é crítica porque a classificação do património neste momento tem cada vez menos sentido, a lei não é cumprida em muitos e importantes casos, quer se trate de património mundial ou de monumentos nacionais. Dou-lhe o exemplo do Douro, como património mundial, e do jardim botânico de Lisboa, como monumento nacional, em que a lei do património não é pura e simplesmente aplicada. Hoje foge-se do acompanhamento e do controlo activo dos monumentos classificados, tal como a lei obriga, porque outros valores mais baixos se levantam.
Há coisas que não deviam ter sido classificadas? Duvido, a classificação informa-se numa teoria de valor, se a coisa tem valor classifica-se, o contrário não é verdadeiro. A nossa Lei quadro é uma das mais esclarecidas do mundo e a teoria do valor do património português está muito precisamente estruturada, a sua aplicação é que tem sido medíocre!
Usemos um exemplo estrangeiro: a classificação de Machu Picchu é má para a preservação do seu património, tendo em atenção a quantidade de turistas que atrai todos os anos? O caso de Machu Picchu vai muito para além dos problemas criados pela quantidade de turistas. Trata-se de uma exploração muito questionável do território e das populações que apenas ali vivem para se dedicarem ao pequeno e miserável comércio turístico. A população autóctone há muito que foi abandonando o sítio. As grandes companhias internacionais, aéreas, hoteleiras e financeiras são as que verdadeiramente controlam a exploração do sítio, chegando ao ponto de conseguirem ver aprovadas formas de exploração em regime de monopólio que configuram autêntica privatização do sítio, impondo preços absurdos no transporte, por exemplo, o que impede os locais de viajarem no seu próprio lugar. O Comité do Património Mundial aprovou finalmente a sua inclusão na lista do património mundial em perigo – e ainda bem face ao desastre social que encerra!
A massificação do turismo nos últimos anos vai ter um impacto negativo na conservação do património? Como é que se pode impedir as pessoas de ver? E se impedimos as pessoas de ver para conseguir preservar esse património, para que serve tê-lo conservado? O problema do nosso património mundial ou nacional não é necessariamente, na minha opinião, o número de visitantes mas a forma como tudo isso é gerido, as decisões tomadas sobre o seu uso, a sua função ou ausência dela, as intervenções realizadas, a ausência de práticas de conservação e restauro ou a realização de intervenções que não cumprem a lei e as normas doutrinais aplicadas a monumentos e sítios classificados.
E coisa mal classificadas, há? O quê? Se forem classificadas de acordo com o valor que representam para as pessoas que com elas se relacionam e que as vivem, acho que estão sempre bem classificadas. Sobre as questões do património mundial a reflexão é mais complexa, porque aí estamos a falar da verdadeira globalização do património e é suposto que o que é muito importante para nós, o seja também para a toda a humanidade, a partir do momento em que é classificado património mundial. Esta ambição da Convenção do Património Mundial é verdadeiramente paradoxal e pode conduzir com o tempo a uma perda de diversidade cultural, como tão bem explicou Claude Lévi-Strauss, nos anos 70, em conferência proferida na UNESCO. Ele sofreu aliás por causa disso a crítica da intelligentsia politicamente correcta da altura. O que pensa da escolha do fado como património imaterial da humanidade? A minha área de estudo é o património mundial cultural, não o imaterial. Mas tenho uma discordância de fundo com a divisão entre património cultural e imaterial, feita mais por razões geopolíticas do que culturais, e que na minha opinião não favorece nada o entendimento da dimensão cultural, a qual não pode ser espartilhada por imperativos artificiais de convenções. Pessoalmente, gosto muito de fado e, como portuguesa, fiquei muito contente.
Fale-me um pouco da sua tese de doutoramento. Estou a preparar, com uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia, sob direcção da professora Françoise Choay na Universidade de Paris IV Sorbonne, uma investigação sobre a evolução da noção de património mundial e da lista desde a aprovação da Convenção do Património Mundial em 1972. O objectivo é fazer uma análise crítica e contribuir para uma avaliação para o futuro. Vou defender este ano, se tudo correr bem, quando passam 40 anos da aprovação da Convenção e se estão a debater as mais importantes questões para o futuro do Património Mundial. |
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