A NOVA ORGÂNICA DO PATRIMÓNIO
CULTURAL E DOS
MUSEUS As Comissões Nacionais Portuguesas (CNP) do ICOM (Conselho Internacional
dos Museus) e ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios), na sua
condição de representantes de profissionais dos respetivos setores, que se
reúnem em organismos internacionais que têm como uma das suas missões mais
relevantes a produção de teoria e códigos de boas práticas, têm vindo a
acompanhar atentamente a profunda transformação em curso na orgânica do
Património Cultural e dos Museus, adentro da Presidência do Conselho de
Ministros. Após meses de incerteza, devido ao desconhecimento real das alterações
anunciadas, com a publicação dos Decretos-Lei nº 114 e 115/2012, que criam a
Direção Geral do Património Cultural (DGPC) e reconfiguram as Direções Regionais
de Cultura (DRCs), passou a ser possível apreciar, em bases objetivas, o novo
enquadramento orgânico, e conceptual, do Património Cultural e dos Museus.
Seguir-se-á a publicação de legislação complementar. E sendo assim, entenderam
as CNP do ICOM e do ICOMOS promover de forma construtiva a discussão pública
destes diplomas legais e manifestar a sua disponibilidade e interesse para
contribuir civicamente para os passos subsequentes, nomeadamente a elaboração
das respetivas Portarias e Despachos. Foi com este espírito que se organizou no passado dia 23, no Padrão dos
Descobrimentos, em Lisboa, o Debate sobre ?A nova orgânica da Cultura na área do
Património Cultural e dos Museus?, no qual participaram largas dezenas de
especialistas das diferentes áreas envolvidas. Às intervenções iniciais das
oradoras convidadas, Graça Filipe, Jacinta Bugalhão, Maria João Torres Silva e
Raquel Henriques da Silva, seguiu-se vivo debate em que intervieram muitos dos
presentes, dando globalmente lugar a um conjunto de observações que pode ser
sumariado do seguinte modo: 1º Registo da completa ausência em todo este processo de consulta
de órgãos consultivos institucionais (por exemplo as Secções relevantes do
Conselho Nacional de Cultura) e de associações representativas do Setor (caso
por exemplo das CNP do ICOM e ICOMOS), que devem ser consideradas como parceiros naturais
e privilegiados, na sua condição de representantes da chamada ?sociedade
civil?. Ambas as organizações estão disponíveis e interessadas em
poderem dar o seu contributo construtivo sempre que sejam chamadas a tal. As
políticas de património cultural e de museus requerem ciclos longos assegurados através de boas práticas democráticas em
matéria de formação de opinião governativa. 2º Considera-se também de todo o interesse e utilidade a
convocação dos melhores especialistas nas áreas respetivas de
incidência destes diplomas para que contribuam no processo de produção de
legislação tão significativamente transformadora e reformadora da situação até
agora existente, como é o caso 3º Nem a unificação num só organismo de toda a tutela nacional do
Património Cultural e dos Museus, regressando afinal a algo já experimentado em
décadas anteriores, nem a transferência de competências para uma rede de
Direções Regionais de Cultura constituem em si mesmas opções necessariamente
negativas; mas no caso concreto, que no essencial constitui uma continuação do
processo iniciado na anterior legislatura (o que se estranha, tendo em conta as
críticas feitas na altura pelas forças politicas constituintes do atual
Governo), verificadas atentamente as competências de cada um dos agentes,
o que mais ressalta à vista é a profunda centralização e, mais do que
isso, a iniludível governamentalização que ora se pretende instituir,
pese embora a declaração de intenções em sentido contrário.
Senão Vejamos: 4º Na área do património arquitetónico, constata-se a
manutenção da concorrência e sobreposição de atribuições relativamente ao
património arquitetónico, agora entre a DGPC e as DRCs. Todas as competências
relativamente ao património edificado estão agora concentradas na administração
direta do Estado, na dependência hierárquica do membro do Governo com a tutela
da Cultura. Verifica-se também não ter sido dado qualquer passo relativamente a
um problema crónico do nosso património arquitetónico: a insignificância do
número de imóveis classificados expressamente afetos aos serviços com a
atribuição da respetiva conservação e salvaguarda (atualmente a DGPC e as
DRCs). Por outro lado, a extinção da DRC de Lisboa e Vale do Tejo coloca,
relativamente à circunscrição territorial da NUT II Lisboa, problemas
específicos no que se refere ao património arquitetónico aí situado: condições
de gestão distintas do restante território nacional continental, cuja razão de
ser não se compreende, e um acentuar da confusão no tocante às competências no
âmbito dos procedimentos de elaboração dos instrumentos de gestão territorial e
às relativas à emissão de pareceres e autorizações no âmbito dos procedimentos
de licenciamento das intervenções em bens imóveis classificados, em vias de
classificação ou situados nas respetivas zonas de proteção - duas atribuições
cruciais para a efetiva salvaguarda do património
edificado. 5º Na área da arqueologia, importa antes de tudo
reconhecer o seu caráter sui generis, já que todos os bens arqueológicos
(imóveis ou móveis) são considerados ?património nacional?, independentemente de
processos casuísticos determinantes da sua valorização e proteção legal. Esta
amplitude conceptual, reconhecida em legislação nacional e internacional a que o
Estado português se vincula, inclui inventário, gestão de imóveis, apoio à
investigação, promoção da institucionalização, gestão de bens móveis (espólios e
coleções) e até o enquadramento da atividade profissional de arqueólogo (à falta
de desejável autorregulação). Ora, o DL instituidor da nova DGPC não assume
claramente este leque de competências, remetendo-as talvez em parte para as DRC,
da forma demasiado vaga adiante citada (?ações regionais e locais??), imprópria
da importância e necessidade de tratamento tipificado do que está
6º Na área dos museus, continua a não ser clara quer a
vantagem quer os termos exatos da repartição feita entre DGPC e DRCs. Teme-se
pela precarização do estatuto de diretor e da autonomia de projeto dos museus,
especialmente no caso das DRCs, onde estes serviços passam a integrar a
categoria de ?estruturas flexíveis?, sendo crucial que nas respetivas portarias
fique salvaguardada a sua perenidade; importa recordar que a criação, fusão e
extinção de museus, nos termos da Lei-Quadro dos Museus Portugueses (LQMP),
obriga a ato governativo, ou seja, político, e a audição do órgão consultivo
competente, não podendo por isso ficar à mercê de mero ato administrativo de
dirigente superior da Administração Publica, através de Despacho. Regista-se a
aparente perda de capacidade de gestão financeira dos museus, traduzida em
orçamento e arrecadação de algumas receitas próprias, no que constituirá um
passo grave, contrário às disposições da LQMP, desmotivador das equipas e da sua
responsabilização, algo de inédito desde que existem museus nacionais em
Portugal. A situação da Rede Portuguesa de Museus (RPM) merece especial
preocupação. Em vez de sistema não hierárquico interpares (reunindo aliás museus
de tutelas muito variadas), tal como definido na LQMP, ela passa a ser
basicamente concebida como unidade orgânica subordinada a vinculação
hierárquica, não com funções estritas de secretariado e facilitação (que seriam
de saudar), mas com competências de controlo e planeamento estratégico
reforçadas, visando a maior intervenção do Governo, através da DGPC e
especialmente das DRCs. Esta deriva
centralista é acentuada pela competência conferida ao Diretor Geral de ?dar
orientações e emitir diretivas vinculativas no âmbito das competências
instrutórias dos procedimentos de autorização e licenciamento, bem como dos
procedimentos de credenciação de museus? ? competência que conceitual e
legalmente deveria ter por base consensos técnicos alargados, escrutinados pelos
museus e profissionais de museus, e em última análise referendados pela Secção
relevante do Conselho Nacional de Cultura, a quem nos termos da LQMP cabe a
validação de todo o sistema de credenciação de museus.
7º Também a completa omissão de referência nos Decretos-Lei já publicados
ao Conselho Nacional de Cultura, nas suas Secções relevantes,
havendo mesmo uma aparente invasão da esfera própria de competência daquele
órgão em algumas das competências atribuídas aos dirigentes da DGPC e das DRCs,
constitui uma preocupação pela perda de legitimidade democrática e boas práticas
no funcionamento de todo o sistema, sendo importante clarificar esta disfuncionalidade. Tal pode ser feito em sede da nova regulamentação
do Conselho Nacional de Cultura, que decorre do seu atual enquadramento orgânico
(Lei Orgânica da Presidência do Conselho de Ministros (alínea b), do art. 6º, e
art. 31º do DL 126-A/2011), aproveitando para reforçar a independência,
qualificação técnica e representatividade social de todas as suas Secções e
especialmente da de Património Arquitetónico e Arqueológico, que está ainda
muito longe de corresponder aos requisitos enunciados e na qual se torna
imprescindível a representação da CNP do ICOMOS, a exemplo do que já acontece na
Secção de Museus e Conservação com a CNP do ICOM. Será de toda a importância que as Portarias e Despachos que irão
completar o enquadramento orgânico em apreço possam mitigar alguns dos aspetos
considerados mais negativos. No caso específico dos museus espera-se que sejam
clarificadas as relações com a LQMP, sendo certo que o desrespeito ou deficiente
aplicação desta justificará a intervenção do Poder Legislativo em sede de
verificação do cumprimento das leis da República. Finalmente, espera-se ainda
que o novo regulamento do Conselho Nacional de Cultura (CNC) reforce as
competências deste órgão essencial à formulação das políticas culturais,
mormente em domínios que deveriam requerer grande consensualidade. Este reforço
de competências apenas se justifica, porém, se for acompanhado da garantia da
independência e representatividade social do CNC no seu todo e de cada uma das
suas Secções. Destas, merece especial referência a de Património Arquitetónico a
Arqueológica, que não cumpre aqueles requisitos. Estando o processo legislativo ainda longe de ser concluído e havendo as
esperanças indicadas, as CNP do ICOM e do ICOMOS reafirmam a sua disponibilidade
para cooperarem construtivamente com o Governo na procura das melhores soluções
políticas e administrativas. Informam ainda que promoverão em tempo oportuno,
previsivelmente no próximo outono, novo debate público, porventura alargado a
outras associações atuantes nestas áreas, já que a matéria em causa não é apenas
profissional mas também cívica e até social e
identitária. As Direções das Comissões Nacionais Portuguesas do ICOM e do
ICOMOS, em 27 de junho
de 2012. |
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