Hoje, no jornal Publico, um texto conjunto de Luís Raposo, Raquel Henriques da
Silva e Vítor Serrão sobre “Património Cultural Móvel: da falta de ética à demissão do Estado”.
Um grito geracional, talvez. Uma declaração feita no presente, com vista ao
futuro.
Património Cultural Móvel: da falta de ética à demissão do Estado
Por Luís Raposo, Raquel Henriques da Silva, Vítor
Serrão
28/06/2013 O
episódio da exportação, aparentemente autorizada, de uma pintura quatrocentista
da autoria do mestre veneziano Carlo Crivelli que representa Nossa Senhora com
o Menino e Santos constituiu justificado momento de profunda inquietação cívica
e leva-nos a suscitar reflexão mais aprofundada acerca do estatuto e destino do
património cultural português. Pintada em 1487 para a igreja franciscana da
Annunziata em Ascoli Piceno, a tábua foi adquirida em Itália após a dispersão
dos acervos dessa casa e entrou na posse da família açoriana de António Borges
da Câmara e Medeiros, tendo sido mais tarde examinada, intervencionada no
Instituto José de Figueiredo com abundante uso de meios públicos, exposta
publicamente e depois protegida pelo estatuto do inventário, que mesmo num
regime fortemente defensor da propriedade privada tinha como condição a
impossibilidade de alienação para o estrangeiro.
Ainda assim, houve quem agora, em regime democrático, a aceitasse expatriar!
Primeira questão: será o "nosso" património apenas o que foi
produzido por portugueses, em solo português? Claro que não. É consensual que o
património artístico de um país se constrói na base dos acervos que, época a
época, se reúnem, à luz do coleccionismo, da encomenda interior e exterior ou
do mecenato mais ousado. A nossa lei confirma-o ao estabelecer que constituem
património cultural os "testemunhos com valor de civilização ou de cultura
portadores de interesse cultural relevante" e que por isso "devam ser
objecto de especial protecção e valorização". Em Itália, o obelisco que
César Augusto trouxe do Egipto em 10
a.C. constitui património italiano, tanto quanto a
"Mona Lisa" do italiano Leonardo da Vinci,
hoje integrada nas colecções do Museu do Louvre, constitui património francês.
Em Portugal, o Tiepolo adquirido pelo MNAA há pouco tempo é tão património
português como os olifantes afro-portugueses, as obras do flamengo Quentin
Metsys ou a custódia de Belém.
Segunda questão: será "nosso" património apenas aquele que o Estado
mandou executar ou pôde adquirir ao longo dos tempos? E só esse pode ser
objecto de protecção legal? Também não, obviamente. Em Portugal, a esmagadora
maioria (cerca de 4/5) dos (apenas) pouco mais de dois milhares de bens
culturais móveis protegidos legalmente (cerca de 2/3 antes de 1974) pertencem a
privados, incluindo aqui a Igreja Católica (e nem se consideram aqui as listas
muitíssimo mais vastas que as dioceses fizeram do seu património, por meritória
iniciativa própria). E pergunta-se, só para dar alguns exemplos avulsos: acaso
passa pela cabeça de algum português legitimar que uma diocese venda um altar
de talha, um painel de azulejos ou uma imagem barroca, que o Museu da Fundação
Medeiros e Almeida aliene para o estrangeiro as suas peças de mobiliário
indo-português, ou que o Museu do Caramulo se desfaça da sua excepcional
colecção de porcelana chinesa?
Terceira questão: têm os direitos de propriedade, pública ou privada, limites
sobre a posse de bens patrimoniais protegidos legalmente? Certamente que sim,
aqui e em todo o mundo. Só assim se compreende que possamos condenar a
destruição dos Budas no Afeganistão e das mesquitas seculares da Síria, ou a
espoliação dos museus de Bagdad em consequência da invasão americana...
Quarta questão: constitui o processo de inventário ou classificação um prejuízo
financeiro para os proprietários? Nuns casos sim, na maioria dos casos não.
Para obras de autores sem grande mercado internacional o reconhecimento na lei
do estatuto patrimonial conduz frequentemente à sua valorização. Quando exista
mercado internacional, pode suceder o contrário, mas o Estado deve actuar imune
a esse tipo de consequências, altamente aleatórias, de resto.
Quinta questão: obriga-se o Estado a adquirir as obras que inventaria ou
classifica? A resposta varia muito de país para país e de época para época. Em
geral, não existe obrigação de compra, salvo no caso de exportação, mas esta é
pura e simplesmente proibida, de forma liminar, na maior parte dos países (e
sempre foi assim também em Portugal no passado, onde mesmo a Constituição de
1933 estipulava que "estão sob protecção do Estado os monumentos
artísticos, históricos e naturais, e os objectos artísticos oficialmente
reconhecidos como tais, sendo proibida a sua alienação em favor de
estrangeiros"). Hoje, nos casos em que a exportação pode ser autorizada,
ela abrange apenas, normalmente, os níveis mais baixos de protecção legal (em
Portugal, o inventário). Na Alemanha, por exemplo, a obrigação de compra pelo
Estado apenas existe se o proprietário puder demonstrar flagrante carência
económica. Em França, depois de várias vicissitudes, a doutrina acabou por
instituir a obrigatoriedade da aquisição de obras inventariadas, podendo na
falta de acordo entre as partes subir-se o nível de protecção legal e assim
prolongar o impedimento de exportação, indefinidamente na prática.
Sexta questão: em caso de compra pelo Estado, como se calcula o preço? Nuns
casos existe apenas direito a "compensação", noutros a compra é feita
mediante os padrões dos mercados nacionais, noutros ainda segundo os valores
praticados nos mercados internacionais, podendo quase sempre recorrer-se a
harmonizações estabelecidas por especialistas ou comissões mistas. Em alguns
casos, finalmente, a "compensação" é processada no todo ou em parte
sob a forma de benefícios fiscais.
Como se vê, a problemática do inventário ou classificação de bens patrimoniais
móveis, sendo complexa, envolve sempre e necessariamente serventias que limitam
o direito de propriedade, a começar na obrigação da sua conservação e não
descaracterização. O mesmo se poderia dizer, aliás, dos bens imóveis,
porventura em maior grau, dada sua própria condição. É isto anormal ou
usurpador do direito privado? De modo nenhum. A instituição de limites à
propriedade é algo de adquirido em qualquer sociedade civilizada, seja qual for
o tempo, seja qual for o regime político. Ninguém pode usar o seu automóvel
como entender; nem construir na sua propriedade o que lhe apetecer. Ainda hoje,
ninguém pode dispor das riquezas minerais que se encontrem em profundidade nas
suas terras, as quais pertencem ao colectivo nacional.
Esclarecida a questão filosófica, o que verdadeiramente importa é saber se a
aplicação do direito que dela deriva é feita pelo Estado de forma equilibrada.
Ora, pensamos que sim, de toda a evidência. Se de alguma coisa pode ser acusado
o Estado português, e os governos lhe executam as competências, não é de actuar
em abuso dos direitos privados, mas precisamente o contrário, ou seja de, vezes
de mais, demitir-se da defesa dos direitos colectivos. No plano dos bens
patrimoniais móveis, então, tememos bem que estejamos a passar, quase sem
darmos por isso, por uma fase delapidadora porventura tão grande como as das
grandes conturbações políticas dos dois últimos séculos. Os números do INE
sobre o comércio de antiguidades na última meia década são muito alarmantes:
passámos de importadores para exportadores em larga escala, numa autêntica
sangria, direccionada principalmente para fora da UE. E se assim é no plano
legal, imagine-se o que não ocorrerá no submundo das redes de tráfico e
comércio ilícito. O caso recente (Maio de 2013) de um magnífico bracelete
proto-histórico com expressa (diríamos despudorada) indicação de ter sido
encontrado em Portalegre, vendido em leilão da Christie"s em Londres por
cerca de 600 mil euros, sem que o nosso Governo tivesse dado um sinal da sua
existência, procurando pelo menos indagar da legalidade de tal transacção, diz
tudo quanto ao papel que o Estado português tem nestas matérias. Quem sabe até
se, por se tratar de exportações, numa época em a coisa pública foi em grande
parte capturada por interesses privados, não existirá quem, com
responsabilidades, entenda ser de saudar este movimento, como se de mercadorias
comuns se tratasse.
Sem dúvida que alguma legislação de enquadramento e sobretudo as listas de bens
móveis inventariados e classificados carecem de revisão. Um dos aspectos que
importaria aprofundar seria o dos benefícios fiscais tanto para os proprietários
desses bens, compensando-os das serventias inerentes aos mesmos, como para os
agentes económicos que entendessem dar resposta a cada apelo do Estado no
sentido da aquisição de alguns deles, sempre muito criteriosamente
seleccionados. Mas, no essencial, podemos afirmar que Portugal possui
legislação que segue as filosofias, parâmetros e operacionalizações
internacionais das últimas décadas, especialmente articuladas com a União
Europeia.
Quando um particular pretende vender um bem classificado, o Estado possui
direito de opção de compra e algumas vezes o exerceu, como aconteceu em 2007
com a já citada pintura de Tiepolo. Mas esta intervenção é rara. Mesmo em casos
muito controversos, como foi a gravosa exportação e venda em Paris, em 2011, de
mais de vinte pinturas de Vieira da Silva, da colecção Jorge de Brito, que
deveriam ter sido adquiridas para os museus nacionais e para a Fundação Arpad
Szénes-Vieira da Silva, a autorização de exportação definitiva foi dada, depois
de ouvida a secção relevante do Conselho Nacional de Cultura, que entendeu dar
parecer positivo, pesados todos os argumentos substantivos sobre a relevância
patrimonial nacional das referidas obras.
Há, nesta matéria, como noutras, uma espécie de invasiva podridão. À manifesta
desmemória dos envolvidos junta-se uma postura anticultural, de menorização da
coisa pública e, dentro dela, dos valores patrimoniais. Os particulares sabem
que os museus não têm um cêntimo de orçamento para aquisições, ao contrário do
que aconteceu pelo menos até à década de 1980. O organismo da tutela, hoje
Direcção-Geral do Património Cultural, tem idêntico orçamento zero. A instância
política manifesta nível crescentemente preocupante de incúria, incapacidade,
senão dolosa irresponsabilidade. Aproveitando a maré, os especuladores
insinuam-se nos interstícios da lei e até se poderá admitir que, aqui ou ali,
possam conduzir a chicana judiciária da forma mais conveniente às suas causas.
Neste caldo de opacidades, o património móvel português junta-se ao vasto campo
das vítimas mais frágeis e desguarnecidas de protecção: está em risco
crescente, à disposição de interesses mercantis escandalosíssimos, de
negociantes sem escrúpulos, que ofendem eles próprios os verdadeiros
coleccionadores em quem o Estado encontra aliados, porque neles prevalece o
gosto do Belo e o brio patriótico que está na base do contrato nacional.
Sabemos por isso que o nosso sobressalto cívico a propósito da tábua de
Crivelli é amplamente partilhado por todos os que não se revêem na actuação amoral
e anticultural de quem entende que o dinheiro compra tudo. Dinheiro, dinheiro,
dinheiro! Mas não houve dinheiro, dezenas de milhões, para construir um novo
Museu dos Coches? Não nos falem, pois em dinheiro, porque não somente nem tudo
se lhe reduz, como dinheiro existe. Basta administrá-lo bem, estabelecendo as
prioridades que melhor sirvam a perenidade da pátria. Ética e sentido de
compromisso cívico, eis o que acima de tudo faz falta neste Portugal de aqui e
agora.
Presidente da Comissão Nacional Portuguesa
do Conselho Internacional dos Museus; directora do Instituto de História da
Arte da Faculdade de Ciência Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa;
director do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa.