Caros amigos, “ (...) E assim, Lídia, à lareira, como estando/deuses lares, ali na eternidade/Como quem compõe roupas/O outrora componhamos/Nesse desassossego que o descanso/Nos traz às vidas quando só pensamos/Naquilo que já fomos/E há só noite lá fora”. O poema de Ricardo Reis, impresso no enunciado do exame nacional de Português do 12.ºano, fez a vida negra aos estudantes; foi-lhes pedido para explicitarem os valores simbólicos do espaço e do tempo em que ocorrem as recordações do passado, mas alguns dos alunos, em vez de se referirem à lareira como símbolo de tranquilidade e de segurança e à noite como tempo de eleição em Ricardo Reis para representar a velhice e a aproximação da morte, preferiram explorar uma interpretação mais livre. Alguns responderam que Ricardo Reis “pôs-se à lareira porque tinha vindo do trabalho e estava cansado”. Outros optaram por argumentar que o heterónimo de Fernando Pessoa “esteve a compor a roupa” e foi para a lareira para “descansar das lides domésticas”. Houve quem dissesse que “tinha acabado de passar a ferro”. E ainda: “O tempo em que ocorreram as recordações estava mau e por isso ele foi para a lareira”. A má prestação generalizada nesta resposta, que valia quatro pontos e meio, contribuiu para que a média do exame de Português igualasse o pior resultado de sempre: 8,9 valores. “Acho que as provas tinham duas ou três perguntas dúbias, que davam azo a respostas disparatadas. Essa, por exemplo, requeria um conhecimento simbólico que muitos dos alunos não possuem”, diz Ediviges Ferreira, da Associação de Professores de Português. A docente constata, porém, que apesar de as avaliações nos exames serem mais baixas, os estudantes não cometem tantas calinadas como no período de aulas. “Num teste já li que o sermão do Padre António Vieira não era actual porque hoje os peixes vivem em aquários e, durante a exibição do filme do Frei Luís de Sousa, quando o romeiro fala do Dia do Juízo Final, chegaram a perguntaram-me a que dia da semana calhava esse Dia do Juízo”, conta. Mas nem só a língua portuguesa foi maltratada nos exames nacionais. A média de 12 das 19 disciplinas do secundário que contemplam exames nacionais foi negativa. O resultado da prova de Matemática foi o pior dos últimas sete anos: média de 8,2 com uma taxa de reprovações de 20%. Já num exame do ensino profissional, na cadeira de História da Cultura e das Artes, um estudante, questionado sobre o papel das universidades na Idade Média, disse servirem para “conviver e socializar”. Outro, numa tirada para maiores de 18, confundiu a corrente artística do “pontilhismo” com “pintelhismo”. Contudo, foi nas disciplinas científicas que se registaram os resultados mais fracos. Física e Química A, com uma média de 7,8, continua a ser o exame mais aziago no universo do ensino secundário. Carlos Caldeira, da Sociedade Portuguesa de Física, diz que a cadeira é extremamente exigente, pois condensa a matéria das ciências experimentais com conhecimentos de cálculo matemático e de português. “No exame deste ano, muitos alunos falharam numa questão que lhes pedia para explicar a taxa de transferência de energia de uma cafeteira de água quente para o meio ambiente. Muitos deles sabiam a resposta mas careciam de capacidade argumentativa para invocar e desenvolver as leis, baseando-se em demasia no senso-comum”. Irene Mota, professora de Física em Lisboa, não esquece o teste em que um aluno, a quem foi pedido para escrever sobre a gravidade lunar, respondeu: “Na Lua não há gravidade, mas sim ‘lunidade’”. A maior sumidade na recolha dos disparates dos estudantes portugueses é Luís Mascarenhas Gaivão, 64 anos, que compilou em três livros – História de Portugal em Disparates, Nova e Inédita História de Portugal em Disparates e História Desatinada de Portugal – as alarvidades redigidas pelos seus pupilos durante os seus 26 anos de carreira. “Há gafes que são muito frequentes. Uma delas está relacionada com o poder dos media e com o que os miúdos ouvem a toda a hora. Se hoje perguntasse num exame quem é Jesus, muitos responderiam que é treinador do Benfica”, diz Gaivão. “No início dos anos 80, o treinador do Benfica era o Lajos Baróti e cheguei a ler respostas como ‘Portugal expulsou os espanhóis na Batalha de Lajos Baróti’, quando queriam dizer ‘batalha de Aljubarrota’”. “Também era conhecida como Batalha de Alves Barrota”, conta o professor. Gaivão leu as coisas mais inacreditáveis; que os maiores monumentos manuelinos são “a Sé da Catedral, o Mosteiro do São Jerónimo e a Janela do Ventre do Cristo”, que “Marcello Caetano foi o Rei que sucedeu ao Rei Salazar” e que Humberto Delgado “foi o soldado português que se revoltou contra a República”. A este último, ouviu chamarem-lhe tudo: Alberto Delgado, Humberto Delegado e até Humberto Coelho. Tal como Zeca Afonso, que um rapaz chamou de “Seca Afonso” ou Otelo Saraiva de Carvalho, apelidado de “Otovelo” e “Hotelo”. “A História é uma das disciplinas mais propícias às respostas disparatadas”, diz Gaivão. “Há uma grande confusão de tempos históricos, há muita dificuldade na análise do tempo recuado e muita tentativa de memorização sem compreesão dos factos”. O professor levou centenas de vezes as mãos à cabeça, mas também se lembra de algumas gargalhadas. Leu que os primeiros colonizadores dos Açores tinham sido os “flamingos” e os “almaricanos” e que a Cabo Verde chegaram os “finlandésios”, que a União Nacional “era o livro do Salazar com as ideias dele” e que a PIDE “prendia os que estavam contra o Estado Novo e triturava-os”. Mas a lista de imprecisões históricas é muito extensa. Dos quatro professores desta disciplina com que o SOL falou, todos tinham memória de disparates épicos: “Os escravos dos romanos eram fabricados em África, mas não eram de boa qualidade”; “Ao princípio os índios eram muito atrasados mas com o tempo foram-se sifilizando”; “Os utensílios usados no neolítico eram tachos e panelas”; “Os antigos egípcios desenvolveram a arte funerária para que os mortos vivessem melhor”; “Na II guerra mundial toda a Europa foi vítima de barbie (barbárie)” ou “Lenini e Stalone eram comunistas na Rússia”. Estela Gaspar, professora de Lisboa, jamais esquecerá a resposta de uma aluna à pergunta: “Qual o ideal do homem do Renascimento?”. “O homem ideal do Renascimento é o João, do 10.ºA, porque renasceu para mim”. Também em Geografia se cometem erros crassos. Este ano a média desceu de uma fasquia positiva (10,3) para a zona de chumbo (9,4). “O principal problema é não haver hábitos de leitura. Há alunos inteligentes que sabem a matéria mas perdem tudo por não terem capacidade de escrita”, diz Emília Lemos, presidente da Associação de Professores de Geografia. “Têm mais dificuldade com conceitos abstractos. Confundem o aquecimento global com o buraco do ozono. E as matérias em que erram mais são o estado do tempo e a circulação geral da atmosfera e a Política Agrícola Comum”. No entanto, há gafes em temas mais simples. Emília Lemos já leu num teste que “os climas temperados não têm continentes a sul do Equador”. E, no passado, outros professores de Geografia embasbacaram-se com frases como: “A Latitude é um circo que passa por o Equador, dos zero aos 90º” e “o caudal de um rio, é quando um rio vai andando e deixa um bocadinho para trás”. No ano passado, uma aluna da região norte do país teimou durante uma apresentação que Miami ficava na Alemanha. Em alguns fóruns dedicados ao ensino, também há registos das respostas mais estapafúrdias nas matérias ligadas à Biologia e às Ciências Naturais. Frases como: “A Terra vira-se nela mesmo e a esse difícil movimento chama-se arrotação”, “as aves têm um dente na boca que se chama bico” ou “O coração é o único órgão que funciona 24 horas por dia”. Mais do que as bacoradas, que a generalidade dos docentes atribui a lacunas de concentração, nervosismo, falta de bases de estudo e leitura e enunciados dúbios, os professores mostram-se preocupados com problemas mais estruturais, como a actualidade do sistema de ensino ou os erros derivados das transformações sociais. Emília Lemos, por exemplo, considera que as empresas já não procuram as mesmas valências que as escolas privilegiam: “A nova geração está habituada a uma sociedade em que tudo se faz a uma grande velocidade e às consolas, em que se passa de nível num instante, num processo completamente diferente do da acumulação de saber, que é lento. Temos um sistema de ensino Fordista. Já não faz sentido ter os alunos sentados a ouvir o professor até às 17h. Isso já era!”, diz. Por sua vez, Paulo Guinote, professor de Português e autor do blogue A Educação do Meu Umbigo, constata a emergência de alguns erros derivados das novas tecnologias da informação: “Em pequenos exercícios de produção escrita, como seja o pedido para escrever um convite ou uma pequena carta, foi-se tornando comum a escrita típica dos sms ou das mensagens de chat, incluindo abreviaturas como pk (porque), ou termos de origem inglesa, mais ou menos adulterados, como luv (love-amor)”. |
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