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[Archport] A serviço de quem está a Arqueologia?

To :   "archport" <archport@ci.uc.pt>
Subject :   [Archport] A serviço de quem está a Arqueologia?
From :   José d'Encarnação <jde@fl.uc.pt>
Date :   Wed, 18 Sep 2013 10:39:11 +0100


De: Ana Maria [mailto:anamaria@alumni.com]
Enviada em: terça-feira, 17 de Setembro de 2013 18:51
Para: archport@ci.uc.pt
Assunto: A serviço de quem está a Arqueologia?

 

O assunto que se segue é da autoria do Matheus Blach [Licenciado em História pelo Centro Universitário UNA (MG) e autor do livro "Patrimônio Natural, Sentido Histórico e Valor Cultural"]

A serviço de quem está a Arqueologia?

Assim como as demais ciências sociais e humanas, a arqueologia constituiu-se como uma complexa disciplina acadêmica que se desdobra sobre diversas áreas do saber para a construção de seus objetos de interesse, métodos de pesquisa e teorias interpretativas. Com o objetivo de encontrar e analisar vestígios passados a fim de revelar dados sobre sociedades humanas que existiram, a Arqueologia torna-se uma ciência transdisciplinar que dialoga, por exemplo, com a Antropologia, História, Geografia e mesmo a com a Química e a Geologia. Isto, dentre tantas outras que prolongariam demasiadamente este levantamento. É notório que disciplinas como a História e Antropologia também recorram à Arqueologia para construção de seus saberes.

Diante de tamanha complexidade e, sobretudo por se tratar de um campo que “pensa sobre si”, com seus teóricos e técnicos analisando, interpretando e ressignificando o sentido e a função da disciplina, existem dissenções internas que levam a debates de profunda intensidade. O arqueólogo Charles E. Orser Jr exemplifica bem esta questão ao tratar da dita arqueologia histórica.

Na medida em que existe um campo chamado “arqueologia histórica”, poderia-se pensar que seria fácil encontrar uma definição aceitável por todos. Infelizmente, este não é o caso, pois há diferentes abordagens sobre o que ela seja. (ORSER JR., 1992, p.17 ).[1]

De modo geral a arqueologia histórica seria um subcampo autônomo da arqueologia ou figurar-se-ia mesmo como uma divisão do campo entre arqueologia histórica e arqueologia pré-histórica. A própria nomenclatura já tem sua carga própria de polêmica. Afinal o que é pré-história e o que é história? Quando começa a história? Quem tem o poder decisório sobre essa questão aparentemente simples, mas de profunda significação?

 Historiadores e antropólogos de modo geral, procuram não mais criar esta distinção entre história e pré-história, sobretudo porque tradicionalmente a diferença é marcada por sociedades com e sem o desenvolvimento de uma linguagem escrita. A historiografia contemporânea, mediante uma grande reformulação de seus olhares, ampliou significativamente seu espectro de fontes de pesquisa não limitando a interpretação histórica somente aos documentos escritos, principalmente com as contribuições da própria arqueologia, de seus vestígios e métodos interpretativos. A partir de então, sociedades humanas que não desenvolveram a escrita puderam ser consideradas dotadas de história e cultura tanto quanto qualquer outra sem incorrer em interpretações mais ortodoxas que comparavam sociedades em termos de “mais evoluídas” ou “menos evoluídas”.

Este quadro de complexidade do campo se agrava amplamente a partir do momento em que se passa a considerar a relação da Arqueologia com as políticas públicas ligadas à preservação do patrimônio cultural e à preservação do meio ambiente, ainda mais se confrontadas com os ideais de progresso e desenvolvimento econômico.

Mediante esforços de se obter “princípios comuns”, norteadores da ciência arqueológica, sobretudo frente às políticas públicas ligadas ao patrimônio histórico da humanidade, a comunidade internacional representada na figura da UNESCO, elaborou em 1956, Nova Delhi, uma carta com diversas recomendações.[2]

 A carta de Nova Delhi apresenta em seu discurso o objetivo do desenvolvimento universal da ciência, cultura e educação por meio de ampla colaboração internacional. A carta prevê um sentido para a disciplina atribuindo ao seu significado a preservação dos vestígios arqueológicos que apresentem “interesses públicos do ponto de vista da história ou da arte”, em torno dos quais as pesquisas deverão ser desenvolvidas.  Os critérios adotados para a decisão do que representam estes interesses são colocados de forma muito vaga na carta, mas atribuindo esta função a partir de um olhar mais específico das culturas locais. Cada nação deve legislar de forma mais ou menos autônoma sobre seu patrimônio arqueológico, porém se mantendo atendo àqueles princípios comuns. A decisão do que deve ou não ser preservado estará submetida ao jogo político do poder e os diversos interesses que orbitam o campo do patrimônio em cada nação.

 Sem se aprofundar muito na questão do direito à propriedade material e intelectual, a carta elabora algumas recomendações quanto aos direitos e deveres de pesquisadores locais e estrangeiros. Estabelece alguns critérios ligados a noção de direito autoral sobre descobertas e exclusividade temporária de acesso a fontes recém-escavadas. A carta também trata da importância destas pesquisas, da necessidade de sua ampla divulgação internacionalmente e da constituição em acervos e museus dos inventários de vestígios arqueológicos com acesso público garantido.

Questões ligadas à preservação ambiental e a noção da prática arqueológica como uma ação destrutiva e de grande impacto, não são abordadas nesta carta. Entretanto, cabe ressaltar que os ideais ligados a certa “consciência ecológica”, como se conhece atualmente, difundem-se e ganham maior complexidade num período posterior à elaboração da carta. Este fato se tornará emblemático quando tratar-se aqui da Carta de Lausanne (1990).

 Por fim, uma das recomendações mais significativas da carta de Nova Delhi é de que os Estados Membros procurem constituir leis, órgãos e institutos dedicados à pesquisa e preservação do patrimônio arqueológico. No Brasil, é possível ver como e em que medida tais recomendações foram acatadas ou não pelo Estado, por meio da lei número 3.924 de 1961 que, de modo geral, atribui ao DPHAN a responsabilidade de gerir o patrimônio arqueológico do país.[3] Esta lei coloca sob a tutela do poder público o patrimônio arqueológico em território nacional; define a categoria de monumento arqueológico ou pré-histórico; impõe restrições aos usos e intervenções nos sítios arqueológicos, como por exemplo, a exploração econômica de sambaquis antes de serem pesquisados; prevê a criminalização e punições de atos de destruição ou mutilação dos monumentos; dentre variadas outras medidas.

 O texto de 1961 é uma ferramenta poderosa e funcional que ajuda a regulamentar a atuação dos arqueólogos e garante direitos de proteção do patrimônio. Acaba sendo utilizado com forma de oferecer garantias indiretas a respeito da preservação do meio ambiente e do patrimônio imaterial na falta de legislações específicas mais eficazes.  Entretanto, avalia-se aqui que diante da atual conjuntura, o texto da lei pode parecer vago, insuficiente ou pelo menos desatualizado, uma vez que, em muitos casos, não tem sido amplamente eficaz em garantir a preservação do patrimônio arqueológico. Principalmente quando grandes empreendimentos econômicos têm intenções que vão de encontro com as da preservação. Todavia, cabe a pergunta: esta ineficácia do texto da lei ocorre pelo mesmo conter brechas, ou devido a não aplicação efetiva da lei pelo poder público?

No campo das políticas públicas de preservação do Patrimônio Cultural a ciência arqueológica torna-se ainda mais controversa mediante aos interesses diversos e conflitantes ligados ao poder político, poder econômico e poder simbólico. A partir desta perspectiva, o exemplo em que estas variáveis do poder ficam mais evidenciadas é o do licenciamento ambiental. Quando uma empresa, seja de qual ramo for, inicia um novo empreendimento, deve apresentar aos órgãos do poder público, relatórios, pesquisas e avaliações de impacto ambiental, arqueológico e, na história mais recente do IPHAN, de impacto cultural.

No decorrer dos anos, diversos foram os casos de grandes empreendimentos que solaparam os discursos de preservação, subjugando leis e destruindo amplamente o patrimônio arqueológico e ambiental nacional. Técnicos e cientistas atuam em meio a esta rede de poder, uns defendendo os interesses dos empreendedores e outros defendendo os interesses dos órgãos públicos. Isto sem aprofundar aqui, em casos escusos ligados à corrupção ou à transvaloração de princípios éticos das próprias profissões destes cientistas.  Sob o discurso de uma dita arqueologia preventiva e do licenciamento cultural, sítios são escavados e inventariados somente com o objetivo de possibilitar a instalação de novos empreendimentos, quadro que já poderia ter sido alterado mediante as recomendações da Carta de Lausanne.[4]

Diante de tal contexto, somado da grande difusão dos ideais ecológicos e de sustentabilidade que se desenvolveram e se institucionalizaram a partir da década de 1960, tem-se a Carta de Lausanne, em 1990, em que os pressupostos ambientalistas aparecem de forma objetiva e o debate entre preservação e desenvolvimento no campo da arqueologia é abordado.

A carta para a proteção e a gestão do patrimônio arqueológico do ICOMOS/ICAHM de 1990, Lausanne, apresenta novos pressupostos e recomendações em sintonia com as perspectivas e demandas do campo do patrimônio cultural vigentes em sua época. Ela destaca a complexidade do campo atentando para a necessidade de que a preservação do patrimônio arqueológico seja entendia sob um viés transdisciplinar e por meio da colaboração de múltiplas instâncias do poder público e entre as diferentes nações.

 Sendo assim, a proposta é que se desenvolva uma política de conservação integrada que tenha como base a noção de que o patrimônio arqueológico é um recurso cultural não renovável e frágil que deve ser protegido, pesquisado e divulgado por meio de projetos educacionais.

A partir da premissa da fragilidade do patrimônio arqueológico, algumas recomendações mais pontuais, ligadas ao embate entre preservação e desenvolvimento, podem ser destacadas: a) o reconhecimento dos projetos desenvolvimentistas como ameaça ao patrimônio arqueológico b) o reconhecimento das próprias escavações como um ato de impacto ambiental e destruição do sítio arqueológico c) as pesquisas arqueológicas devem priorizar métodos não destrutivos de investigação em detrimento das escavações d) preservação e educação patrimonial in situ. d) a escavação deve ocorrer somente em casos de sítios já condenados à destruição.

Portanto, apesar de todas as controvérsias e de ser um campo de intensas disputas, seja internamente ou frente às politicas públicas, é possível perceber por meio da análise destes documentos que a preservação do patrimônio arqueológico no Brasil tem se espelhado e se orientado pelos princípios e recomendações internacionais. No entanto, é notório que grande parte das recomendações da Carta de Lausanne ainda não se vêem na prática. Em muitos casos, os instrumentos disponíveis e sua aplicação efetiva não tem sido suficientes para fazer frente ao poder econômico dos grandes empreendimentos como mineradoras, hidrelétricas, parques eólicos, dentre outros.

Infere-se aqui que apesar dos textos das cartas ou mesmo da lei destacarem a importância desse patrimônio e da própria arqueologia, nenhum deles trata de forma objetiva qual a função social dessa disciplina na contemporaneidade. Afinal a serviço de que ou quem está a arqueologia?

 

 


[1] OSER JR, Charles E. Introdução à Arqueologia Histórica. Oficina de Livros, Belo Horizonte, 1992.

[4] http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=262








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