Estimado Amigo Professor José d’Encarnação.
Tentei por todos os meios escrever-lhe esta.
Em verdade, ao dirigi-la ao Estimado Amigo, fico com a amarga sensação, ou talvez certeza de estar a incorrer numa injustiça. O Estimado Amigo é visivelmente o administrador das três listas ARCHPORT, MUSEUM e HISTPORT, mas creio e estou convicto de que muitos dos critérios de exclusão e de inclusão lhe serão alheios.
Sinto a exclusão, difamatória e insultuosa, de que tenho sido alvo com alguma amargura. Mas sobretudo com muito orgulho. Deverá entender que a manifestação do orgulho que sinto é a razão da manifestação da minha indignação.
Chegou o momento, Estimado Amigo, de interpretar eu as razões sempre omissas da minha exclusão.
Tornou-se norma, sempre que eu intervenho sobre os temas e assuntos que me mobilizam, porque são incómodos e silenciados por pacto de sobrevivência dos modelos que se instituíram na relação de arqueólogos, museólogos e historiadores de arte com os seus objectos, responderem-me trazendo a colacção o assunto de uma tal ‘’colecção egípcia’’ do BPN. Como se, por remoto acaso, nesse particular eu tivesse incorrido em erro, mesmo não deliberado, perdesse a razão relativamente a tudo.
Imagine, Estimado Amigo, que eu, que acompanhei sempre em silêncio o currículo e os episódios curriculares da maioria dos arqueólogos, museólogos e historiadores de arte consagrados no sacrossanto templo das vaidades, ganhava por hábito recorrer a episódios curriculares, muitas vezes mesquinhos mas circunstanciais, para questionar estruturalmente a sua validade humana e profissional?
Mas deixe-me, desde já, dissecar esta questão de forma a desmantelá-la de vez. Deixe-me expor, de vez e mais uma vez, o que foi e continua a ser silenciado quando, para servir interesses que ainda é difícil avaliar, se traz, para silenciar o Manuel de Castro Nunes, à colacção a ‘’colecção egípcia’’.
E começo por levantar uma questão crucial e lançar um desafio.
Durante os anos de 2003 e 2004, sendo eu colaborador de uma fundação que, para lá de administrar a posse de uma valiosa colecção de arte e arqueologia se envolvera num programa de apoio e incentivo à investigação e actividade arqueológica, foi-me pedido, no âmbito de um convénio informal, que estudasse e me pronunciasse sobre um espólio de artefactos de superior qualidade que se encontrava em posse privada.
O propósito da minha intervenção era, com o apoio e incentivo da fundação com que colaborava, não apenas estudar os artefactos, procedendo à sua caracterização, mas também apoiar o seu proprietário, na impossibilidade financeira e técnica de os conservar, a procurar uma instituição que os pudesse adquirir com a garantia e compromisso de promover a sua divulgação, estudo e conservação.
Foi nesse contexto e para garantir que os procedimentos seriam acompanhados pelas instituições formalmente responsáveis pela tutela do património cultural, que desde logo expus o assunto ao IGESPAR e ao Instituto Português de Museus, fornecendo toda a documentação que fora e ia sendo produzida.
Ora, excluindo algumas diligências da iniciativa do proprietário, que em vários contextos terá mostrado pessoalmente pelo menos alguns dos artefactos mais significativos, na sua óptica, a várias sujeitos institucionalmente responsáveis no meio da arqueologia e da museologia, eu posso garantir que, embora tivesse insistido com várias entidades para verem, pelo menos, a colecção em causa, ela só fora vista, até 2008, pelo Amílcar Guerra, na sede do BPN, por minha diligência. A quem, de resto, agradeço a disponibilidade, pois se assim não fora ninguém a teria visto.
Posso hoje garantir que ninguém depois da nacionalização do BPN a viu de novo e que se encontra sem paradeiro. Os jornais, que chegaram a declarar que revelavam imagens originais e em primeira mão, revelaram simplesmente as imagens de minha autoria, que terão recolhido em alguma das instituições a que a documentação fora por mim entregue, provavelmente o IGESPAR, o IPMC ou a Polícia Judiciária.
De modo que eu lanço aqui o desafio a todos os arqueólogos para que um só deles me mostre uma foto que tenha recolhido no âmbito de qualquer contexto em que tenha materialmente observado a colecção ou algum dos artefactos que a compõem. E que, com base nessa observação produza um juízo fundamentado, com a solidez dos já produzidos, sobre se é genuíno, ou genuínos, ou não.
E assim ficamos para já. Apenas com uma breve referência à obscenidade, obscenidades a bem dizer, que se têm passado em torno da colecção da Fundação Ernesto Lourenço Estrada, do já famigerado Museu Ibérico de Arte e Arqueologia de Abrantes, das mesquinhas torpezas que se têm sucedido em torno da mesquinha gula pela liderança das várias componentes do projecto e da hipocrisia com que certos arqueólogos omitem que foram apoiados e incentivados pela Fundação Ernesto Lourenço Estrada. Mas essa será tinta que correrá na devida altura.
Mas o que lhe quero de facto transmitir é que o assunto da ‘’colecção egípcia’’ é chamado sempre à colacção quando eu ‘’toco’’ em pontos sensíveis, como sejam o modelo obsceno de sustentabilidade da prática arqueológica que todos os arqueólogos parecem agora legitimar, fazendo tábua raza do que apregoaram durante décadas. A hipocrisia com que arqueólogos e museólogos vão fingindo que tudo está bem na arqueolândia. As relações que, com a cumplicidade pelo menos silenciosa dos arqueólogos consagrados, se instalaram entre o novo e pujante patronato da arqueologia e os assalariados da base da pirâmide, que são avaliados mais pelo estatuto das suas mãos do que dos seus créditos académicos, mas que também sendo filhos de deus deviam partilhar a prosperidade de uma actividade económica com tamanho peso no PIB.
A forma como os arqueólogos disputam uns com os outros para cavalgarem oportunidades e ‘’furos’’. O despudor nas relações humanas.
O Estimado Amigo sente-se bem quando observa fotos de arqueólogos a procederem a registos de escombros arqueológicos nos rastos das escavadoras? Sente-se bem quando ouve arqueólogos responsáveis, funcionários da tutela, discorrerem despudoradamente sobe ‘’salvamento por registo’’ e reconhecerem, com orgulho, que os arqueólogos sepultaram mil e quinhentos ‘’registos’’ no fundo do Alqueva e que prosseguem triunfalmente na devastação, procedendo a uma média de quarenta registos por mês? Sente-se bem quando constata que os arqueólogos continuam a acompanhar os trabalhos no Tua e no Sabor, depois de todas as instâncias que acompanharam os estudos de impacto ambiental terem denunciado o atentado patrimonial?
O Estimado Amigo sente-se bem ao constatar que, mau grado todos os alertas em tempo oportuno, para que a actividade arqueológica pudesse parecer próspera e sustentável, milhares de jovens foram injectados na formação profissional ou académica e hoje são menosprezados e vilipendiados pelo mercado de trabalho?
Pois, Estimado Amigo, é em razão desta denúncia, que prossigo há décadas, que sou silenciado. E não por qualquer outro motivo.
Ora, durante os últimos meses do ano passado de 2013 veio à visibilidade mais um assunto que vai reforçar, com certeza, a minha exclusão, não apenas destes fóruns, mas do círculo restrito dos silêncios litúrgicos do sacrossanto templo.
Ninguém esperava, talvez, porque era cómodo, que meu pai, com noventa e três anos, lúcido ainda e voluntarioso, estivesse determinado a acompanhar de forma determinante o destino não apenas dos espólios que recolheu no âmbito da sua actividade de décadas, mas do próprio campo arqueológico da Lomba do Canho. Tudo faz crer que estava já constituído o ‘’governo no exílio’’. E eu não sou culpado de que o ‘’governo no exílio’’ estivesse alojado na Universidade de Coimbra, com a cumplicidade silenciosa ou diligente, talvez, de alguns que em tempos acompanharam o meu pai e protagonizaram os trabalhos, com todo o mérito, ressalve-se desde já.
Mas sobretudo na pessoa de uma distinta arqueóloga que, como se tornou hábito no meio, aderiu à moda das ‘’oportunidades’’ e do ‘’empreendorismo’’, impelida pelos terrores que o horizonte trágico da crise vai disseminando. E que, de acordo com o Pedro Manuel Cardoso é muito positivo e talvez o mais poderoso incentivo para que os arqueólogos deixem de sentir inibições éticas e morais e sigam para a frente, garantindo, a todo o custo a sustentabilidade das suas carreiras.
Vai então daí e a Universidade de Coimbra assina um protocolo com a Câmara Municipal de Arganil, mediado pela Conceição Lopes, com o fim de instalar em museu os espólios do projectado Museu Regional de Arganil e reiniciar as actividades no campo arqueológico.
Conceição Lopes esqueceu-se de que, no mínimo, poderia ter comunicado a sua intenção a meu pai e aguardado pela sua adesão, ou não, à súbita ideia. Mas o meu pai tomou conhecimento do protocolo por acaso, porque, ao contrário do que a Conceição Lopes esperava, ainda lê o jornal.
Estimado Amigo. No que a mim respeita, esperavam que eu não tocasse no assunto nos três fóruns dedicados à matéria pela Universidade de Coimbra.
O Manuel de Castro Nunes e as suas irreverências, sempre a desenterrar polémicas impertinentes.
Ontem, denunciei o sentido da resposta que Pedro Manuel Cardoso entendeu dar a um artigo de Diogo Ramada Curto no PUBLICO.
Hipocrisias. Muito palavroso, recorrendo a muitas citações e replicando doutrinas e teses que um certo meio da museologia internacional tem difundido desde há duas décadas, sem qualquer perspectiva ou crivagem crítica, Pedro Manuel Cardoso, usa entre pategos um discurso artificioso, desde há quatro anos, para promover a ideia nuclear do programa museológico do regime, que, no essencial, consiste em desarticular a rede nacional de museus, retirando-lhe todos os recursos, para os polarizar num programa que faria inveja ao Estado Novo. Proceder a uma rigorosa selecção de objectos, tópicos e espaços para congregar a representação da nação, do seu desígnio e do papel das elites na sua história. E fazer recolher tudo o resto.
Se da selecção restritiva ainda sobrarem alguns objectos materiais, teremos o museu da viagem. Se nada restar reduziremos a nação à ideia e teremos o museu da gestualidade.
E em Portugal não há ninguém que desmantele, doutrinariamente, o palavreado de Pedro Manuel Cardoso?
É mais fácil silenciar o Manuel de Castro Nunes.
Mas que raio de cumplicidades institucionais, a coberto da crise, se desenham?
O Museu Nacional de Arte Antiga transformou-se num templo de culto do despotismo iluminado e da aristocracia iluminante. Os seus técnicos recebem dos antiquários e das leiloeiras o impulso para renovarem a mensagem museográfica, renovarem espólios e difundirem, pelas restantes unidades moribundas da rede nacional a sua orientação doutrinária. Trata-se sem dúvida de gestualidade, do fetiche e do encanto do objecto, de uma carícia e de um afago. O talismã.
Tudo vai bem, Estimado Amigo. As indústrias culturais e do património prosperam, o turismo exulta e se o património não conseguir evitar um segundo resgate da dívida soberana, quem o poderá fazer?
Calem o Manuel de Castro Nunes que isto vai.
É caso para gritar a plenos pulmões e com todo o ânimo:
Viva Zapata! O desígnio da nação cumprir-se-á!
Um Abraço.
Manuel.
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