Antropologia
- Ainda É Precisa ?
26 de junho | 17h30 | anfiteatro -120 do edifício FC3 da FCUP
Palestra Vítor Oliveira Jorge
A antropologia - essa imensa nebulosa de
disciplinas que se propõem estudar "o homem", tanto nos seus aspetos
ditos "físicos" como nos ditos "culturais" - nasceu e
desenvolveu-se intimamente ligada à "descoberta" do "outro"
no espaço, assim como a "pré-história" (e de uma maneira geral a
história e a arqueologia, evidentemente) visaria descobrir e explicar o
"outro" no tempo. Essa "descoberta" da antropologia não era
um conhecimento puramente "desinteressado" (mas haverá tal
conhecimento, apesar de todas as ciências muitas vezes se quererem apresentar
como sendo motivadas primeiro que tudo por uma pulsão de conhecimento, por uma
curiosidade "natural" ao ser humano... ?). Na verdade, está
intimamente ligada à expansão ocidental pelo mundo, ou seja, às primeiras
formas de colonização...e, de certo modo, depois, de
mundialização/globalização, na medida em que esta, ao produzir mestiçagens e
diversidades de todo o tipo, as tende a criar como "variantes" de um
sistema holístico, integrador. É certo que a antropologia, depois de ter
inventado o "selvagem", ou "primitivo", passou a tratá-lo
como subdesenvolvido, ou como "em vias de desenvolvimento", ou de
outras formas mais benévolas; mas tendeu sempre a criar diferenças (leia-se
hierarquias) pelo simples facto de olhar para o outro, de o tornar um objecto
de estudo: fosse ele um habitante da Papua, fosse ele um mediterrânico visto
como um representante de uma "Europa do Sul", fosse ele, mesmo, o
vizinho de bairro, desconhecido e, até certo ponto, imprevisível, sobretudo se
a sua imagem saísse de padrões mais habituais ou difundidos pelos média e pelos
ditames do consumo.
Numa sociedade pós-colonial, multicultural, e
onde os Estados têm um papel soberano relativamente reduzido (por estarem
integrados em formações supranacionais), mas onde recrudesce a xenofobia, o
racismo, o nacionalismo primário, qual o papel da antropologia? É certo que
muitos dos povos antigamente colonizados enviaram os seus quadros para
universidades ocidentais, e muitos deles se formaram em antropologia, lançando
sobre nós, qual boomerang, o tipo de olhar (entre o espantado, o curioso, e o
paternal) que dantes nós lhes tínhamos dirigido. É certo que enquanto a
antropologia perdeu a sua inocência (se é que alguma vez a teve), também alguns
dos formados no ocidente, ao voltarem às suas raízes, percebem o contraste
entre o que certas teses de doutoramento dos seus antecessores
"brancos" contavam, e o que era e é a realidade complexa e movente
dos seus países e povos. Porque nós, ocidentais, querendo contrastar as
sociedades frias, da história lenta, com as quentes, as nossas, as do progresso
(em que o século XIX tanto acreditou, e que tanto descambou com as atrocidades
do século XX...), as da história viva, no fundo desejámos fazer do outro um
"retrato fora do tempo". Não é casual que a fotografia e depois o
documentário tenham sido grandes aliados da antropologia.
E agora? Quando a própria Europa e o Ocidente se
veem a braços com novas crises estruturais (dependentes de um quadro global,
evidentemente), e se dá a emergência, a sul, de novos colossos, como a China,
qual o papel da antropologia, se é que ainda serve para alguma coisa?... O que
é certo é que continua a despertar bastante interesse por parte dos mais
jovens, e que os quatro As de um grande autor inglês como Tim Ingold -
Antropologia, Arqueologia, Arte e Arquitetura - ainda parece fazerem algum
sentido como áreas articuladas entre si. Mas nada está ao abrigo de
controvérsia nem há nenhum pensamento que escape à "pulsão crítica"
da contemporaneidade. Esse é, creio, o que tem de melhor um saber que nos faça
felizes: rever-se constantemente, e encarar o outro, a perspetiva do outro,
sempre com um sentido de hospitalidade, de fraternidade, de cosmopolitismo sem
hierarquias.
Nota biográfica:
Vítor Oliveira Jorge foi docente da Faculdade de Letras da Universidade do
Porto a partir de 1974 (professor catedrático desde 1990), e aí fez quase toda
a sua carreira universitária. Aposentou-se em 2011, sendo investigador do
CEAACP - Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património. A
sua área de especialização é a arqueologia e pré-história, mas promoveu muitas
realizações interdisciplinares sobre temas transversais.