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Re: [Archport] [Museum] Restos humanos em museus

To :   Vitor Oliveira Jorge <vitor.oliveirajorge@gmail.com>
Subject :   Re: [Archport] [Museum] Restos humanos em museus
From :   Luís Raposo <3raposos@sapo.pt>
Date :   Mon, 04 Sep 2023 11:46:26 +0100

Caros,
Agradeço a vossa atenção. Também eu não gosto de acessos restritos a assinantes nos jornais. Mas tenho de convir que é a única forma de eles sobreviverem - e se queremos ter imprensa de qualidade, há que o aceitar.
Depois, é como diz o Vítor: fica assim chamada a atenção.
Também quando referimos artigos, mesmo em bibliografias, não esperamos que os livros ou revistas em que se encontrem sejam todas de acesso livre...
Seja como for, na minha condição de autor, eu considero ter o direito de possibilitar o acesso aos meus textos, como originais não editados, nem publicados. Por isso, reproduzo-o abaixo.
Luís Raposo


Restos humanos em museus: um tema complexo em que importa reflectir

Luís Raposo

Arqueólogo. Membro do Conselho Executivo do ICOM

 

Há anos, utilizei o título em epígrafe, no seguimento de mais uma das muitas reuniões internacionais sobre este cadente tema em que participei, citando algumas das epígrafes intencionalmente provocatórias então usadas com a finalidade de fazer pensar os participantes: “restos humanos: objectos de estudo ou antepassados para enterrar?”, “restos humanos: respeito pela morte, respeito pela vida” ou “restos humanos: nem uma pessoa, nem uma coisa”.

Mantêm toda a actualidade estes motes. E se algo aconteceu no entretanto, foi que eles se alargaram de tal modo que, como sempre sucede a temas complexos, passaram a ser cada vez mais capturados por consignas derivadas de posturas porventura bem-intencionadas, mas confrangedoramente simplistas. Já no texto acima citado eu dava três exemplos muito díspares entre si: Saartjie Baartman (originalmente no Museu do Homem, de Paris, entretanto devolvida, e muito bem, à África do Sul, para ser enterrada), Giuseppe Villella (o chamado “Homem de Lombroso”, cujo crânio foi reclamado pela família, por incitamento da extrema-direita italiana, sendo todavia mantido por decisão judicial no Museu Universitário de Turim, onde ainda se encontra – o que se deve considerar no mínimo duvidoso) e o “Homem de Kennewick”, devolvido pelo Museu Burke, de Seatle, por ordem do Supremo Tribunal, aos seus supostos descendentes, para reenterramento e assim destruição, não obstante ser um dos raros testemunhos da primeira ocupação humana da América, datado de há 9 a 10 mil anos.

Os exemplos, então como agora, poderiam multiplicar-se ad infinitum. E o que causava maior estranheza era que os grandes centros de investigação em antropologia biológica (universidades, laboratórios e… museus, claro), possuidores de colecções imensas de restos humanos de todas as origens e cronologias, pareciam não ter consequências a retirar de toda esta problemática. A averiguação feita pelo Washington Post sobre uma pequena parte (255 cérebros, principalmente de afro-americanos, asiáticos e europeus), de uma colecção de mais de 30 mil restos humanos do acervo da Smithsonian, aqui noticiada, vem demonstrar que já não é assim.

Lida a informação obtida, não podemos deixar de concordar com o qualificativo de “abominável e desumanizador” das práticas científicas que, há pouco mais de um século, levaram a reunir a referida colecção de cérebros. E podemos ainda desejar que este reconhecimento seja acompanhado dos actos de reparação que forem possíveis. Fazê-lo, todavia, debaixo do princípio de “desmantelar o racismo na origem destas colecções” já se afigura muito mais discutível. E isto, em primeiro lugar, porque as ditas colecções de restos humanos não constituem “apenas” (em muitos casos nem principalmente) manifestações de racismo dirigido para os chamados “racializados” (curiosa tautologia), como de resto prova a existência neste caso de dezenas de cérebros de alemães, presumivelmente brancos de olhos azuis – antes decorrem da aplicação de paradigmas científicos totalmente ultrapassados e certamente politicamente subordinados (como tudo o que é humano, incluindo a ciência). Em segundo lugar, porque a história se não “desmantela”: estuda-se, dela conservando as memórias que a tornam palpável – por isso lutamos por conservar os locais e colecções que documentam horrores do passado, reclamando que “por favor não apaguem a memória”.

Acresce que nestes domínios sensíveis do acesso ao estudo do humano se tende muito facilmente a ficar prisioneiro de posturas obscurantistas, aquelas que até ao século XIII na Europa interditavam totalmente a dissecação de cadáveres (ou até ao século XVI, no sentido total da experimentação da medicina moderna) e impedem ainda hoje as escavações de necrópoles de época islâmica nos países árabes (autorizando em todo caso as de época romana e promovendo até grandes paradas de múmias de faraós) – uma deriva reacionária que se encontra em franca expansão noutras latitudes, como por exemplo recorda Crispin Paine, no seu já clássico ensaio sobre "Objectos religiosos em museus", referindo-se à Índia: “a religião – geralmente nas suas formas mais triunfalistas e intolerantes – está em ascensão e é o secularismo que se sente cercado; o ethos secularista sobre o qual a nação foi construída parece ameaçado pelo fundamentalismo religioso... Como resultado, alguns secularistas passaram a ver os museus como bastiões da razão contra as forças da irracionalidade”.

Nada é simples nesta problemática. E disso se dão conta todos os documentos, textos legais, regulamentos internos e cartas de boa-prática profissional que conformam a actuação dos investigadores,  especialmente nos museus. Quanto a estas, o ICOM possui um Código Deontológico que dá especial atenção ao assunto. Nele se estabelece que a conservação, estudo e exposição de restos humanos e materiais de significado sagrado deve ser feita com “cuidado e respeito” (ponto 2.5) ou “grande tacto e respeito pelos sentimentos de dignidade humana tidos por todos os povos” (4.5), devendo actuar-se “de acordo com padrões profissionais e, quando conhecido, tendo em conta os interesses e crenças dos membros da comunidade, grupo étnico ou religioso do qual os objectos tenham origem” (4.3.; cf. também 3.7 e 4.4, neste caso para efeitos de retirada de exposição e/ou devolução “às origens”).

Já no plano legal e regulamentar cumpre assinalar, entre muito outros possíveis, o exemplo do Reino Unido, onde existem diversos museus com colecções de restos humanos, algumas muito vastas, a maior parte de origem universitária, como é o caso do Pitt-Rivers, da Universidade de Oxford, ou dos dois Hunterianos, o da Universidade de Glasgow e o do Real Colégio dos Cirurgiões, em Londres (este recentemente reaberto), museus que nos últimos anos promoveram reflexões aprofundadas acerca destas colecções, dando origem a declarações de princípios (veja-se a do Hunteriano de Glasgow), todas sujeitas ao já antigo (2004) “Human Tissue Act” e às disposições entretanto emanadas da Autoridade que o promove e aprofunda (ver por exemplo, as orientações para exposição de restos humanos). Em todos, é determinado um tratamento diferenciado para restos humanos recolhidos ou datados de há mais ou há menos de em 100 anos, uma fronteira arbitrária, por certo, mas indeclinável. Os mais antigos, todos eles, caiem no domínio do científico, independentemente da maior ou menor validade dos paradigmas que lhes deram origem: podem ser objecto de estudo e exposição, dentro das condições de respeito e dignidade que os códigos deontológicos recomendam. Os mais recentes carecem de consentimento dos próprios, em vida, ou dos seus familiares, após a morte.

Consentimento pessoal, mais do que subjugação a práticas mágicas ou religiosas e normativos culturais, é o conceito-chave essencial, porque aquilo que numa região é saudado como respeito indigenista, noutra é considerado fundamentalismo religioso. E o mais burlesco, é que esta dupla avaliação é assumida com frequência pelas mesmas pessoas, normalmente “activistas” ávidos da procura de causas justas.



----- Mensagem de Vitor Oliveira Jorge <vitor.oliveirajorge@gmail.com> ---------
Data: Mon, 4 Sep 2023 10:37:43 +0100
De: Vitor Oliveira Jorge <vitor.oliveirajorge@gmail.com>
Assunto: Re: [Archport] [Museum] Restos humanos em museus
Para: ADIM MONSARAZ <encontrosdemonsarazadim@gmail.com>
Cc: Luís Raposo <3raposos@sapo.pt>, museum <museum@ci.uc.pt>, histport@uc.pt, archport <archport@ci.uc.pt>

Bom dia, a vantagem é esta: ficámos alertados para o artigo. De outra forma, e com a quantidade de mails e de informação que recebemos todos os dias, tudo se pode perder na "espuma" dos ditos dias.
É impossível ler e refletir sobre tanta coisa que hoje está ao nosso dispor, mas potencialmente apenas. Tenpus fugit.
Cordiais cumprimentos
Vítor Oliveira Jorge


Em dom., 3 de set. de 2023 às 22:52, ADIM MONSARAZ <encontrosdemonsarazadim@gmail.com> escreveu:
Concordo, mas nem todos poderão, ou quererão assinar o jornal público. Eu compro todos os dias, não preciso do link, referia-me apenas ao facto de o acesso ao link não servir de grande coisa dado que nem todos são assinantes. E se o são, não precisam do link. 
JC

Vitor Oliveira Jorge <vitor.oliveirajorge@gmail.com> escreveu no dia domingo, 3/09/2023 à(s) 22:47:
Vale a pena assinar o Público, o melhor diário português.
Cordiais saudações e um abraço para o meu amigo Luís Raposo.
Vítor Oliveira Jorge

Em dom., 3 de set. de 2023 às 22:34, ADIM MONSARAZ <encontrosdemonsarazadim@gmail.com> escreveu:
Estes links não servem para grande coisa, senão para publicitar a angariação de clientes para o publico, dado que só os pagantes é que têm acesso ao conteúdo.
Obrigado na mesma...
JCV



Luís Raposo <3raposos@sapo.pt> escreveu no dia sábado, 2/09/2023 à(s) 10:27:
PÚblicO

OPINIÃO


Restos humanos em museus: um tema complexo em que importa reflectir

A averiguação feita pelo Washington Post sobre uma pequena parte da colecção de mais de 30 mil restos humanos da Smithsonian recoloca este assunto na agenda.


2 de Setembro de 2023



....

A história se não “desmantela”: estuda-se, dela conservando as memórias que a tornam palpável – por isso lutamos por conservar os locais e colecções que documentam horrores do passado, reclamando que “por favor não apaguem a memória”.


Acresce que nestes domínios sensíveis do acesso ao estudo do humano se tende muito facilmente a ficar prisioneiro de posturas obscurantistas, aquelas que até ao século XVI na Europa interditavam a dissecação de cadáveres e impedem ainda hoje as escavações de necrópoles de época islâmica nos países árabes (autorizando em todo caso as de época romana e promovendo até grandes paradas de múmias de faraós) – uma deriva reacionária que se encontra em franca expansão noutras latitudes, como por exemplo recorda Crispin Paine, no seu já clássico ensaio sobre "Objectos religiosos em museus", referindo-se à Índia: “a religião – geralmente nas suas formas mais triunfalistas e intolerantes – está em ascensão e é o secularismo que se sente cercado; o ethos secularista sobre o qual a nação foi construída parece ameaçado pelo fundamentalismo religioso... Como resultado, alguns secularistas passaram a ver os museus como bastiões da razão contra as forças da irracionalidade”.

Nada é simples nesta problemática. E disso se dão conta todos os documentos, textos legais, regulamentos internos e cartas de boa-prática profissional que conformam a actuação dos investigadores,  especialmente nos museus. Quanto a estas, o ICOM possui um Código Deontológico que dá especial atenção ao assunto. Nele se estabelece que a conservação, estudo e exposição de restos humanos e materiais de significado sagrado deve ser feita com “cuidado e respeito” (ponto 2.5) ou “grande tacto e respeito pelos sentimentos de dignidade humana tidos por todos os povos” (4.5), devendo actuar-se “de acordo com padrões profissionais e, quando conhecido, tendo em conta os interesses e crenças dos membros da comunidade, grupo étnico ou religioso do qual os objectos tenham origem” (4.3.; cf. também 3.7 e 4.4, neste caso para efeitos de retirada de exposição e/ou devolução “às origens”).

Já no plano legal e regulamentar cumpre assinalar, entre muito outros possíveis, o exemplo inglês, onde existem diversos museus com colecções de restos humanos, algumas muito vastas, a maior parte de origem universitária, como é o caso do Pitt-Rivers, da Universidade de Oxford, ou dos dois Hunterianos, o da Universidade de Glasgow e o do Real Colégio dos Cirurgiões, em Londres (este recentemente reaberto), museus que nos últimos anos promoveram reflexões aprofundadas acerca destas colecções, dando origem a declarações de princípios (veja-se a do Hunteriano de Glasgow), todas sujeitas ao já antigo (2004) “Human Tissue Act” e às disposições entretanto emanadas da Autoridade que o promove e aprofunda (ver por exemplo, as orientações para exposição de restos humanos). Em todos, é determinado um tratamento diferenciado para restos humanos recolhidos ou datados de há mais ou há menos de em 100 anos, uma fronteira arbitrária, por certo, mas indeclinável. Os mais antigos, todos eles, caiem no domínio do científico, independentemente da maior ou menor validade dos paradigmas que lhes deram origem: podem ser objecto de estudo e exposição, dentro das condições de respeito e dignidade que os códigos deontológicos recomendam. Os mais recentes carecem de consentimento dos próprios, em vida, ou dos seus familiares, após a morte.

Consentimento pessoal, mais do que subjugação a práticas mágicas ou religiosas e normativos culturais, é o conceito-chave essencial, porque aquilo que numa região é saudado como respeito indigenista, noutra é considerado fundamentalismo religioso. E o mais burlesco, é que esta dupla avaliação é assumida com frequência pelas mesmas pessoas, normalmente “activistas” grávidos da procura de causas justas.

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----- Fim da mensagem de Vitor Oliveira Jorge <vitor.oliveirajorge@gmail.com> -----


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