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[Archport] Arqueologia, museus e buraco negro

To :   archport <archport@ci.uc.pt>
Subject :   [Archport] Arqueologia, museus e buraco negro
From :   Luís Raposo <3raposos@sapo.pt>
Date :   Thu, 23 Jan 2025 10:09:19 +0000

Arqueologia, museus e "buraco negro"
Luís Raposo 
Arqueólogo

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Mercê da aplicação extensiva da legislação de impactes ambientais, assistiu-se nas últimas décadas a uma verdadeira explosão da actividade arqueológica de campo. Jacinta Bugalhão, que reuniu a mais completa base de dados sobre a matéria (ver a sua tese de doutoramento: A Arqueologia em Portugal entre o final do século XX e o início do século XXI), apresenta-nos números eloquentes, mesmo esmagadores: em finais dos anos de 1970 existiam menos de 200 arqueólogos em Portugal, quase metade amadores; nas últimas décadas serão cerca de 1400 (menos de 20% de mulheres antes, para mais de 50% agora), quase todos profissionais. Antes, menos de 100 trabalhos de campo por ano, mais de três quartos dos quais de investigação programada e financiada por entidades públicas; hoje, 2000 ou mais intervenções de terreno, sendo mais de 90% de prevenção, salvaguarda ou valorização, financiadas em mais de 80% por contratação comercial. Enfim, todo um mundo novo, que tem obviamente vastíssimas consequências, algumas sociológicas, outras científicas, outras ainda patrimoniais.

Entre estas últimas consequências, a da verdadeira avalanche de colecções provenientes de trabalhos de campo e especialmente de dois domínios que colocam maiores dificuldades de gestão: o da arqueologia urbana, pelas quantidades imensas de materiais que produz; e o da arqueologia em meio húmido ou subaquática, pelas condições muito particulares de preservação a que obriga.

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Perguntar-se-á, todavia, se será assim tão importante conservar coisas, para mais cacos e pedras, na maioria. Num mundo da imagem e da representação numérica, um mundo empanzinado de digital, haverá muitos que tenderão a relativizar a importância dos bens materiais. Deslumbrados da tecnologia, uns, tolhidos de filosofia barata, outros, dirão que os “objectos” dos arqueólogos representam somente constructos intelectuais, sem efectiva correspondência nas coisas que realmente existiram, tal como percebidas por quem as criou e usou. E, sendo assim, tanto faz ter vestígios materiais como bases de dados artificiais – estas poderão mesmo ter a vantagem da acessibilidade (de todo o mundo para todo o mundo) e dos menores custos de conservação.

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Primeiro, recordando que a arqueologia é por definição o terreno do material em história e os museus são os guardiões do mesmo, importa sublinhar o carácter irredutível das coisas e o quanto elas são necessárias e satisfazem a nossa mediação com o mundo. Pessoa, sob heterónimo de Alberto Caeiro, dizia-o de forma magistral para arqueólogos: “A espantosa realidade das coisas, É a minha descoberta de todos os dias. Cada coisa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta”.

Depois, repetiríamos o texto que serviu de mote a um dos primeiros programas televisivos do “Ephemera”, de José Pacheco Pereira: “os objectos são contentores únicos do tempo e de estórias. Eles contam quem somos e quem já fomos. O passado também vive em forma de coisas. E porque o passado não deve ser apagado é nossa obrigação preservá-lo através dos objectos que o contam. Com eles as memórias são mais eternas”. Assim é. E não é preciso recuar ao tempo da história sem escrita para o demonstrar: basta recordar como Leite de Vasconcelos andou afanosamente a recolher, no 5 de Outubro de 1910, caixas de fósforos, latas de pomadas ou xailes bordados artesanalmente, dando origem a uma rara fonte de conhecimento acerca de como o povo comum viveu a revolução republicana, no seu quotidiano.

No fundo, o que está em causa quando falamos de coisas e da sua preservação é o reconhecimento de como vivemos imersos nelas. Nada que outros, há bastante tempo, não tenham já dito, é claro. Michel Foucault, por exemplo, há mais de meio século, afirmava na sua Arqueologia do Saber, dando a “monumento” o sentido amplo de objecto material: “nos nossos dias a história é o que transforma os documentos em monumentos… a história tende para a arqueologia, para descrição intrínseca do monumento”. Assim é e assim será, desde que saibamos preencher os “buracos negros” que a falta de meios, aliada à falta de visão, vai insidiosamente instalando em nosso presente.


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