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Re: [Archport] Na Guiné-Bissau, na casa de um comerciante de escravos negro que foi governador

To :   Archport <archport@ci.uc.pt>
Subject :   Re: [Archport] Na Guiné-Bissau, na casa de um comerciante de escravos negro que foi governador
From :   Rui Gomes Coelho <ruigomescoelho@gmail.com>
Date :   Wed, 23 Apr 2025 14:06:57 +0000

Caro Vasco Gil Mantas,

Muito obrigado pela sua mensagem e pelo interesse.

Não estou certo se entendi o seu comentário. Quem, ao certo, podia ter substituído o nome da estátua do Honório Barreto?

Atenciosamente,
Rui Gomes Coelho

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On 23 Apr 2025, at 13:33, vasco gil mantas <vsmantas@gmail.com> wrote:


Boa tarde!  
Ao menos podiam ter substituído o nome na base da estátua, obviamente dilapidada, do Honório Barreto...
Cordialmente, num mundo cada vez menos cordial e mais absurdo

Vasco Gil Mantas


Rui Gomes Coelho <ruigomescoelho@gmail.com> escreveu (quarta, 23/04/2025 à(s) 09:11):

https://www.publico.pt/2025/04/22/culturaipsilon/noticia/guinebissau-casa-comerciante-escravos-negro-governador-2130532


Na Guiné-Bissau, na casa de um comerciante de escravos negro que foi governador

Equipa internacional de arqueólogos está a trabalhar na casa que pertenceu a Honório Pereira Barreto na cidade de Cacheu. A desenterrar a história da colonização - e da escravatura - camada a camada. 

22 de Abril de 2025, 7:00

Os dias começam muito cedo. É preciso ir buscar pão, ligar o gerador para cozinhar e preparar todo o material que hão-de levar para campo, onde o trabalho começa às 7h e termina às 19h, com um intervalo entre as 12h e 16h, período em que o calor aperta e andar de picareta ou de colherim na mão é particularmente desafiante.

A escavação decorre no pátio do complexo onde se ergue a casa que pertenceu a Honório Pereira Barreto, militar que na primeira metade do século XIX ocupou vários postos na administração colonial da chamada Guiné Portuguesa (actual Guiné-Bissau) e foi um comerciante de sucesso, sobretudo de escravizados.

O arqueólogo português Rui Gomes Coelho lidera os trabalhos no âmbito do projecto “Ecologias da liberdade, materialidades da escravidão e pós-emancipação no mundo Atlântico”, que já em 2022 o levou à cidade de Cacheu, onde está agora e até dia 28 de Abril a escavar, e no ano seguinte a um monte alentejano, perto do Sado, cujo vale foi ocupado e desbravado em grande parte graças à mão de obra de africanos escravizados e dos seus descendentes, logo a partir do século XV.

“É quase certo que, até ao século XVIII, os escravizados que trabalharam no vale do Sado e no Alentejo em geral saíram de Cacheu e da Senegâmbia [região geográfica da África Ocidental situada entre o rio Senegal, a norte, e o rio Gâmbia, a sul]. É muito importante estarmos a escavar no ponto de partida do tráfico, depois de termos escavado no Monte do Lachique, o ponto de chegada”, diz este professor da Universidade de Durham (Reino Unido), que em estreita colaboração com Sara Simões, da Universidade de Lisboa, lidera uma equipa que inclui outros arqueólogos e estudantes de Portugal, do Reino Unido, da Colômbia, do Senegal e da própria Guiné-Bissau.

“Sabemos que a cidade de Cacheu foi durante séculos um entreposto comercial muito importante para os colonizadores portugueses e para os comerciantes de escravos, que vinham abastecer-se na costa ocidental africana. Honório Pereira Barreto está nos dois lados – no dos comerciantes e no da administração portuguesa na primeira metade do século XIX. Escavar na sua casa dá-nos oportunidade de contribuir para que a história se conte melhor”, diz Gomes Coelho.

Nascido em Cacheu, filho de João Pereira Barreto Jr., um sargento-mor cabo-verdiano, e de Rosa de Carvalho Alvarenga, uma guineense filha de comerciantes, Pereira Barreto foi educado em Lisboa com o objectivo de vir a seguir a carreira militar, o que fez. Morreria com o posto de tenente-coronel, mas tendo também ocupado importantes postos na administração colonial, incluindo o de governador da Guiné (foi ainda provedor e capitão-mor de Cacheu, assim como capitão-mor de Bissau).

“É verdade que ele se envolve muito no projecto de modernização da Guiné, numa altura de conflito aberto entre portugueses e ingleses, e que a ele se deve parte da integridade do território da antiga colónia, mas o que ele faz não é apenas para benefício da coroa portuguesa. Ele quer manter o controlo sobre o território porque isso beneficia também os negócios dele e da mãe, Dona Rosa, sobretudo os dos escravizados”, acrescenta o arqueólogo, identificando-os como membros de uma elite africana que durante séculos foi próxima do colonizador.

Os trabalhos começaram no dia 2 de Abril e, depois de retirarem muita da vegetação que crescera junto às ruínas da velha casa senhorial que podia ter sido erguida numa qualquer vila portuguesa, os arqueólogos identificaram já várias fases de construção, pondo a descoberto muretes de materiais e períodos muito diferentes.

“Temos quatro épocas sobrepostas. Nas duas mais antigas, provavelmente do século XVI, já que encontrámos cerâmica dessa época, os muros são ainda de terra, adobe, o que corresponde às descrições que conhecemos de Cacheu. A primeira casa de pedra será do XVII, quando a Cacheu chegam navios com telha e pedra do reino, que depois seria usada nas soleiras e lintéis.”

A ruína que lá está, com algumas paredes ainda de pé, deverá ser da primeira metade do século XIX, com melhoramentos já do século XX.

Enquanto escavavam para mapear estas fases de construção, os arqueólogos foram desenterrando contas de vidro e de pedra, fragmentos de cerâmica italiana e do norte da Europa, uma rara conta de búzio das que eram usadas como moeda e até um elaborado cachimbo em barro branco com um rosto de mulher – “provavelmente feito em França por volta de 1840, na época de Honório Barreto e da mãe” – e outros de fabrico africano, com motivos geométricos.

Os muros que a escavação tem vindo a revelar poderão ter pertencido a armazéns, telheiros, lojas, prisões ou cozinhas, “estruturas típicas de um complexo escravista até ao século XIX”.

Em determinados momentos, sublinha Gomes Coelho, viveria neste complexo comercial gerido por Pereira Barreto e Rosa de Cacheu muita gente, contando com os que trabalhavam no entreposto e com os que seriam enfiados no porão dos navios negreiros e vendidos como qualquer outra mercadoria, mesmo depois de o tráfico ter sido proibido.

“Também encontrámos cerâmica chinesa dos finais do século XVIII, o que reforça a ideia de que Cacheu era muito cosmopolita, o que é natural para um sítio que vive do comércio”, continua o arqueólogo, falando de “achados modestos”, mas “carregados de informação”, que irão enriquecer a história desta cidade guineense.

Tema "abandonado"

Integrado no mesmo projecto, Rui Gomes Coelho tinha feito sondagens e escavado em Cacheu há três anos, junto ao Memorial da Escravatura, de que é responsável Jorge Camilo Handem, também director executivo da ONG Acção para o Desenvolvimento.

Desses trabalhos de 2022 saíram materiais que ajudam a documentar a cidade de finais do século XVI - inícios do XVII. Fragmentos de barros africanos, de loiças portuguesas comuns e de porcelanas chinesas, contas de vidro e de minerais vários, pedaços de carvão e de ossos de animais, uns datados estilisticamente, outros por radiocarbono, começaram, assim, a compor um retrato material desta que foi a primeira capital da chamada Guiné Portuguesa.

“A escavação é muito importante porque ali vão surgindo provas que permitem dissipar dúvidas históricas”, diz Jorge Camilo Handem, que se associou ao projecto desde a primeira hora. Para este guineense, os trabalhos da equipa de Gomes Coelho trazem “compreensão” e “conhecimento” sobre o papel de Cacheu no tráfico de seres humanos, algo que é decisivo, já que o tema está, de certa forma, “abandonado” nos liceus do país: “Fala-se muito pouco de escravatura na Guiné-Bissau. (…) Estas escavações vão ajudar a comprovar historicamente o que aconteceu na cidade de Cacheu”, valorizando a cultura local, enriquecendo o discurso do Memorial da Escravatura e, se possível, trazendo mais turistas.

Na mesma rua do complexo de Pereira Barreto ficava a Casa Gouveia, um empório comercial ligado à CUF, na fase final do império colonial português, lembra Gomes Coelho. “A Casa Gouveia também está muito presente na memória das pessoas daqui porque está muito associada ao trabalho forçado que se seguiu ao fim da escravatura e que, na realidade, não era muito diferente”, explica o arqueólogo. “Essa Casa foi nacionalizada pós-independência e são já poucos os sobreviventes dos tempos dos trabalhos forçados, mas as histórias vão passando de geração em geração.”

Numa sociedade ainda muito marcada pela tradição oral, figuras como a de Honório Pereira Barreto (1813-1859) e da sua mãe, Rosa de Carvalho Alvarenga (c.1780-c. 1865) – localmente conhecida como Dona Rosa de Cacheu ou Nhá Rosa – saltam facilmente dos livros e documentos históricos, para as conversas de pais e filhos, de avós e netos.

A Casa Gouveia e a do Honório Barreto e da mãe são dois dos edifícios coloniais mais antigos de Cacheu, que em vida do antigo administrador colonial era uma praça com duas ruas, ambas paralelas ao rio.

É também junto ao rio Cacheu que os cientistas ligados à arqueobotânica e à geoarqueologia do projecto vão recolher algumas amostras de solos, como já antes o tinham feito no Monte de Vale do Lachique.

A ideia, acrescenta Rui Gomes Coelho, é extrair amostras de sedimentos e de matéria orgânica que permitam reflectir sobre as transformações a nível ambiental vividas em ambos os locais, o guineense e o português, de há oito mil anos para cá, embora o principal foco da investigação comece em finais do século XV, já que é a partir daí e durante centenas de anos que pelo Cacheu e pelo Lachique passaram populações escravizadas.

“No projecto são analisadas amostras de sedimentos e de matéria orgânica que nos dão indicações do que ali crescia naturalmente ou era plantado, do que comiam as populações, dos padrões vegetais… Isto ajuda-nos, aqui em Cacheu, a reconstruir as vivências das pessoas comuns num porto esclavagista”, diz o arqueólogo. “A história de Honório Barreto é contada, conhecida, mas há aqui muitas vidas que foram esquecidas, sobretudo as das pessoas que aqui foram tratadas e vendidas como mercadoria de armazém.”

Figura controversa

luso-tropicalismo que tanto agradava ao regime de Salazar usa Honório Barreto e outras figuras como ele como prova da miscigenação, da convivência pacífica nos territórios colonizados, ao passo que a luta de libertação, em parte, o apresenta como um comerciante que beneficia da escravização do seu próprio povo e como peça importante na consolidação do projecto colonial português.

“A figura de Honório Pereira Barreto é importante para quem se interesse, como eu, pela história do discurso lusotropicalista, visto que foi apropriada, durante o período do Estado Novo (a biografia de Jaime Walter, uma das poucas disponíveis, é de 1947), para fazer passar a falsa ideia de um colonialismo não-racista, que permitia a ascensão de um negro ao cargo de governador”, precisa Pedro Schacht Pereira, professor do departamento de Espanhol e Português da Universidade de Ohio (Estados Unidos), que há anos se dedica ao estudo das subjectividades negras na literatura portuguesa, projecto no âmbito do qual se cruzou com referências à ligação do antigo funcionário da administração portuguesa ao comércio de escravizados.

Schacht Pereira, que tem partilhado as suas descobertas com Rui Gomes Coelho, é descendente de Honório Pereira Barreto – a sua mãe é tetraneta do antigo governador, por via materna – mas garante que são praticamente inexistentes os seus vestígios na história familiar, cuja ligação à Guiné é já muito ténue. Conhecia-lhe apenas o nome quando com ele se cruzou em 2014, no Arquivo Histórico Ultramarino, numa notícia que o dava como proprietário de dois navios negreiros oriundos de Cacheu que tinham sido apresados quando se dirigiam ao Maranhão e a Belém do Pará, no Brasil, numa altura em que os ingleses patrulhavam o Atlântico norte para interceptar embarcações que transportassem escravizados, cujo tráfico era já proibido.

“A colonização da Guiné é tardia e precária, em termos de consolidação territorial, e Honório Pereira Barreto desempenhou um papel de destaque nesse processo. Por outro lado, Cacheu foi um território cujo controle permitiu a consolidação da presença portuguesa naquela região da Senegâmbia, contra os interesses franceses e ingleses. O tráfico negreiro (legal e ilegal) é, até pelo menos os anos 50 do século XIX, a principal actividade comercial da região, e, portanto, é muito relevante que a arqueologia investigue essa região e, em particular, os vestígios remanescentes da presença da família de Pereira Barreto, com um forte ascendente nas comunidades indígenas locais”, acrescenta o professor da Universidade do Ohio, defendendo que as circunstâncias históricas da região e da colonização portuguesa fizeram do antigo governador da Guiné Portuguesa uma figura contraditória.

Apreciado pela administração colonial, sem surpresas, viria mais tarde a ser referido por Amílcar Cabral, fervoroso independentista e fundador do PAIGC, como “um homem de valor”, cujo trabalho para a coroa portuguesa deve ser visto como sendo produto do seu tempo, do seu contexto, continua Pedro Schacht Pereira. "No entanto, é importante sublinhar que, para Cabral, o prazo de validade do enaltecimento da figura de Honório Pereira Barreto terminava com a luta pela independência nacional."

Jorge Camilo Handem prefere chamar-lhe “controverso”, embora reconheça que há em Cacheu quem o admire: “Posicionou-se fortemente na defesa dos interesses da Guiné Portuguesa face às intenções da Inglaterra”, mas também “participou na comercialização de pessoas, uma parte muito má da história”. Seja como for, acrescenta Rui Gomes Coelho, faz parte dela e do imaginário local.

“Bom será que a escavação contribua para a investigação sobre o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas e que seja importante para a comunidade local”, acrescenta. Schacht Pereira gostaria que contribuísse, também, para um debate mais sereno e distanciado, possível apenas quando um tema deixa de ser tabu: “Uma escavação arqueológica tem algo de exorcismo, por vezes, na medida em que traz ao de cima o que muitos quiseram que permanecesse enterrado.”

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