O futuro dos museus em face dos males do nosso tempo
Luís Raposo
Público, 18.5.2025
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Criado em 1977, o DIM apenas começou a ter um tema anual desde 1992 [vervabaixo a lista,comoleta de temas]. Pretendeu-se por esta via focar as celebrações de modo a delas tirar maior proveito reflexivo sobre matérias especialmente candentes, em que se possam juntar as preocupações de todos os que se declaram interessados nos museus: os seus utilizadores, os seus amigos, os seus estudiosos e, enfim, os seus profissionais.
Nenhum destes segmentos é monolítico, bem pelo contrário. Os utilizadores incluem obviamente os visitantes, mas estão muito para além deles, abarcando investigadores das colecções, estudantes, educadores, editores e autores, divulgadores, etc., etc. quaisquer deles individualmente ou em grupos de natureza muito variável, desde associações recreativas e excursionistas, clubes de estudo ou centros culturais até… até comunidades de vizinhança ou de partilha identitária, povos e países inteiros. Os amigos, podem ser simples “amantes de museus” ou associações formalmente constituídas e mesmo reunidas em federações nacionais (como a FAMP, Federação de Amigos dos Museus de Portugal) ou internacionais (Federação Mundial dos Amigos dos Museus). Os estudiosos, podem ser investigadores que olham os museus “de fora”, frequentemente na esfera universitária e no âmbito daquilo que se podem designar por “estudos sobre museus” (chamando-se a si mesmos de “museólogos”), ou podem ser historiadores, sociólogos, antropólogos, geólogos, etc., etc., enfim, especialistas de quaisquer domínios que forneçam colecções ou que, nas suas competências próprias, se interessem pelo funcionamento e missão social dos museus. Os profissionais de museus, finalmente, são aqueles que vivem “por dentro” os museus, neles passando grande parte de suas vidas, dia após dia, ano após ano, de manhã ao sol pôr. Segundo o ICOM e para além dos professores e investigadores de “museologia”, podem ainda ser profissionais os que trabalham para museus em regimes de aquisições de serviços, desde que consigam demonstrar, curricular ou documentalmente, que deles retiram a maior parte do seu rendimento anual.
Como se compreende, uma tal diversidade de interesses torna por vezes difícil escolher o tema do DIM. E tanto neste caso como noutros (a definição de museu ou o Código Deontológico, actualmente em revisão) ocorrem tensões entre os mais seduzidos pelas agendas, por vezes obsessões, de cada tempo e os que entendem privilegiar aquilo que os públicos comuns querem dos museus e o que a sociedade e os povos deles esperam no longo prazo. A lista dos temas dos DIM constitui por si mesmo testemunho destas tensões e destas tentativas de equilíbrios. E as votações ocorridas para os temas dos dois anos próximos, que já estão fixados, confirmam-no eloquentemente. Assim, para 2026, os três temas alternativos propostos e as respectivas votações foram as seguintes: Museus unem um mundo dividido (59%, tema adoptado), Amplificando o património indígena (17%), O poder da juventude na ‘década da acção’ (20%). Para 2027: Desbloqueando os terceiros espaços (8%), Comunidades e co-criação (38%), Museus como fonte de inovação e mudança (50%, tema adoptado).
Como se vê os temas mais “activistas” foram preteridos. Não porque não tivessem mérito em si mesmos (alguns já foram de certo modo adoptados muito antes, por exemplo, "Museus e povos indígenas", em 1993). Mas por duas razões muito simples, que por serem simples são por vezes difíceis de entender por gente complicada, dita intelectual amiúde – alguns desenvolvendo a tese patusca de se dizerem “anti-poder” e “anti-museus” para afinal aceitarem ser capturados por programas de financiamento do poder e insistirem em usar o termo museu. A primeira porque aquilo que verdadeiramente constitui a plataforma de agregação de todo o universo de pessoas que olham os museus ou neles trabalham são as suas funções sociais mais básicas, desde logo a da conservação das colecções: daqui a 50 ou 100 anos, os nossos vindouros irão sobretudo avaliar o nosso desempenho pela capacidade que tenhamos de lhes permitir desfrutar daquilo que também hoje usufruímos e que, pelo nosso lado, recebemos de nossos avoengos.
A segunda e mais decisiva tem a ver com a confiança nos museus. Um inquérito feito pela Aliança Americana de Museus (AAM) há quatro anos revela o elevado apreço pelos museus, antes dos actuais desmandos cripto-fascistas do trumpismo (sobre estes demandos veja-se a tomada de posição conjunta dos presidentes da AAM, da EveryLibrary e da Liga dos Mulheres Votantes dos EUA, na Newsweek de 18 de Abril passado). Eles constituem, a seguir à família, a instituição social que merece maior confiança. Seguem-se os cientistas, as ONG em geral, os órgãos de informação locais, depois os nacionais e só no fim da tabela o governo federal, as empresas e as redes sociais. Mas quando perguntados pela razão de tal confiança as respostas podem a alguns parecer desconcertantes: “orientados por factos”, “baseados em objectos reais”, “guiados pela investigação”, “transmissores de informação objectiva”, “neutros, não partidários” são as qualidades mais apreciadas. Partilharem “pontos de vista múltiplos”, por exemplo, surge no fim da tabela. Mais: a “neutralidade” é apreciada por todos os segmentos de público, sejam conservadores ou “liberais”, jovens ou velhos, homens ou mulheres – o que nos deve fazer reflectir sobre como chegámos onde chegámos.
O “onde chegámos” é a proliferação de populismos tão primários que julgaríamos definitivamente enterrados, mas redivivem talvez em parte como reacção a desligamentos da realidade como tipicamente são a maior parte das agendas do “estar acordado”, ou “wokismo”, à maneira americana. Ora, o combate ao populismo reaccionário tem de ser feito a partir da realidade e não contra ela. No caso dos museus, tal significa defender a manutenção, e até reforço, das suas funções de guardiões de memórias, através de colecções, promovendo visões racionais do mundo, que tenderão a ser tão “neutrais” ou “objectivas” quanto a ciência e a informação factual o podem ser. Não tem aqui cabimento repetir em assomos pueris que a “neutralidade” não existe, porque não vivemos de absolutos e ela de facto não existe (assim nos construímos em Portugal, por exemplo, clamando que “tudo é político”, mesmo quando se afirma o contrário)… como, veja-se lá a “contradição”, existe também, porque entre “verdadeiro” e “falso” nem tudo são “pontos de vista”: a chuva molha, mesmo os tolos, a pedra cai e magoa, mesmo os néscios, e o bom-senso filtrado pela racionalidade cartesiana existe e dá sentido prático à vida, mesmo aos mais “acordados”.
Esta postura simples e anti-dogmática afasta-nos, e afasta os museus, tanto dos populismos reaccionários como dos “activismos” epidérmicos. Pois. Mas vai ao encontro das pessoas comuns, povos e comunidades, que são quem afinal garantirá o futuro desses pontos de encontro em que confiamos, porque neles objectos, ideias e espaço público convergem, aprendemos “factos” e tudo isso nos faz ficarmos verdadeiramente mais acordados e sobretudo nos dá maior qualidade de vida.
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Temas do Dia Internacional dos Museus
1992 "Museus e ambiente"
1993 "Museus e povos indígenas"
1994 "Nos Bastidores dos Museus"
1995 "Resposta e responsabilidade"
1996 "Recolher hoje para amanhã"
1998-1997 "A luta contra o tráfico ilícito de bens culturais"
1999 "Prazeres da descoberta"
2000 "Museus para a paz e a harmonia na sociedade"
2001 "Museus: construir comunidade"
2002 "Museus e globalização"
2003 "Museus e amigos"
2004 "Museus e património imaterial"
2005 "Museus unindo culturas"
2006 "Museus e jovens"
2007 "Museus e património universal"
2008 "Os museus como agentes de mudança e desenvolvimento social"
2009 "Museus e turismo"
2010 “Museus e harmonia social”
2011 “Museus e memória”
2012 “Museus num mundo em mudança. Novos desafios, novas inspirações”
2013 “Museus (Memória + Criatividade) = Mudança Social
2014 “Coleções de museus criam ligações”
2915 “Museus para uma sociedade sustentável”
2016 “Museus e paisagens culturais”
2017 “Museus e histórias contestadas: dizer o indizível nos museus”
2018 “Museus hiper-conectados: novas abordagens, novos públicos”
2019 “Museus como centros culturais: o futuro da tradição”
2020 “Museus para a igualdade: diversidade e inclusão”
2021 “O futuro dos museus: recuperar e re-imaginar”
2022 “O poder dos museus”
2023 “Museus, sustentabilidade e bem-estar”
2024: “Museus para a educação e investigação”
2025: “O futuro dos museus nas comunidades em rápida mudança”
2026: “Os museus unem um mundo dividido”
2027: “Os museus como fonte de inovação e mudança”
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