As ruínas da mesquita aljama medieval islâmica de Lisboa, episódio de Janeiro
Entre o final do mês de Setembro e meados de Outubro passados, a Arqueologia portuguesa viveu mais um aceso e mediatizado processo de contestação pública pela defesa do Património arqueológico. Mau grado o parecer negativo de todos os técnicos envolvidos, a DGPC tinha decidido, por parecer de uma direcção de serviços e por despacho da Direcção, proceder a uma pesada afectação do complexo monumental de estruturas arqueológicas interpretadas como integrantes da mesquita aljama medieval islâmica de Lisboa. Segundo a DGPC, a preservação destas estruturas colocava em risco de ruína o claustro e a própria catedral.
O “acto administrativo”, o despacho, destinado a passar soturna e discretamente entre as pregas da burocracia, foi viva e amplamente denunciado por diversos profissionais do Património que dele tiveram conhecimento directa ou indirectamente, passando de seguida para o espaço público. Consequentemente, e em poucos dias, diversas associações representativas do sector e de defesa do Património, secundadas por numerosos arqueólogos, historiadores e outros investigadores, tomaram posição pública contra esta decisão, contestando-a e combatendo-a veementemente. Nessas semanas quentes, a DGPC foi recuando progressivamente na sua posição inicial: as estruturas seriam desmontadas e remontadas; iriam ser solicitados pareceres; iria ser colocada a questão à consideração da SPAA do CNC… Sem nunca abdicar do essencial: as estruturas iriam ser afectadas para garantir a estabilidade da Sé e do seu claustro. Mas em pouco tempo revelou-se o óbvio: as estruturas monumentais da mesquita aljama medieval islâmica de Lisboa tinham um valor patrimonial, cultural e simbólico elevadíssimo e a sua preservação não ameaçava de forma nenhuma a conservação do conjunto monumental da Sé de Lisboa.
De seguida, e numa iniciativa bastante rara, o Ministério da Cultura “decidiu, em diálogo com o Patriarcado de Lisboa, que os mesmos [achados arqueológicos] devem ser conservados, musealizados e integrados no projeto de recuperação e musealização da Sé Patriarcal de Lisboa”, obrigando a DGPC a reverter a sua posição e a promover a alteração do projecto de arquitectura. Entretanto foi apresentada à DGPC uma proposta de classificação do conjunto arqueológico urbano conservado no Claustro da Sé Catedral de Lisboa, incluindo as ruínas da Mesquita aljama de al-Ushbuna, numa tentativa de evitar futuras afectações destes bens. Quando a SPAA reúne no final de Outubro, são dadas ao arquitecto projectista instruções para proceder à alteração do projecto de forma a dar cumprimento à decisão ministerial.
O processo entrou em estado de hibernação (apenas) pública e mediática, mas era evidente que nada estava garantido relativamente à salvaguarda e valorização das ruínas islâmicas. No passado dia 13 à noite, “fonte oficial da DGPC” transmite a notícia “definitiva”: “Vestígios islâmicos na Sé de Lisboa não são da mesquita, dizem peritos”. No dia seguinte é publicado o comunicado da DGPC no seu site, seguindo-se outras notícias na impressa, com melhor contextualização da situação e, principalmente, com algum contraditório.
Estes desenvolvimentos merecem comentário da parte de quem tanto se empenhou e empenha na defesa, salvaguarda, valorização e adequada integração museológica das monumentais e excepcionais estruturas arqueológicas em causa.
Os pareceres sobre matéria arqueológica
A DGPC entendeu por bem solicitar pareceres a quatro especialistas em Arqueologia islâmica e ao LNEC sobre o projecto em curso na Sé de Lisboa. No que respeita aos arqueólogos, também se desconhece porque foram estes os especialistas escolhidos (de competência ou idoneidade inquestionável) e não outros, entre os muitos arqueólogos e historiadores, investigadores e académicos que visitaram a Sé naquelas conturbadas semanas. Mas não deixo de reparar que teria sido talvez avisado consultar também especialistas, arqueólogos ou historiadores com trabalho de investigação sobre Lisboa islâmica.
Não é do conhecimento público em que termos esses pareceres foram pedidos, ou seja, qual foi efectivamente a pergunta colocada aos peritos. Dela, evidentemente, decorreram as respostas. Por outro lado, a DGPC divulgou um resumo seu dos três pareceres, sem os publicitar na íntegra. Numa notícia de jornal, o Director-Geral afirmou que estes só serão publicitados após a conclusão do processo de decisão (leia-se: após os factos consumados). Este secretismo é incompreensível e muito suspeito, pois num processo tão escrutinado e onde não há qualquer matéria que mereça reserva ou sigilo, a divulgação pública dos pareceres seria um ganho.
No seu comunicado, a DGPC destacou três pareceres que solicitou, mas omitiu todos os outros (solicitados e espontâneos) que foram elaborados e levados à sua consideração, alguns dos quais sustentam opiniões distintas sobre a interpretação das estruturas islâmicas.
A DGPC ignorou também os pareceres da AAP e do ICOMOS. E ignorou também a proposta de classificação apresentada e que foi subscrita por dois historiadores especialistas em Lisboa islâmica, um sénior e prestigiadíssimo; e outro júnior e talentoso (bem como por mim própria).
É especialmente chocante o desrespeito com que a DGPC trata as suas funcionárias, as duas arqueólogas que dirigem os trabalhos arqueológicos (e não é a primeira vez que o faz), ignorando e desvalorizando a sua interpretação dos vestígios. Foi a DGPC que entregou a estas arqueólogas a direcção dos trabalhos, porque escavam na Sé há mais de duas décadas, porque trabalham na arqueologia de Lisboa desde sempre, sendo que uma delas (Alexandra Gaspar) está entre os pioneiros da Arqueologia urbana nacional e outra (Ana Gomes) se dedica especialmente à investigação sobre Arqueologia islâmica de Lisboa. Convém não esquecer que, neste momento, as duas arqueólogas directoras científicas dos trabalhos em curso são, naturalmente, as únicas investigadoras que têm acesso aos dados necessários à elaboração de fundamentadas hipóteses interpretativas e que são elas que, em primeiro lugar, têm o dever de os estudar e publicar. Será com base no trabalho delas que todos nós, a restante comunidade científica, poderemos então desenvolver a subsequente discussão e avaliação interpares.
A DGPC apregoa unanimidade. Mas, como demonstrado, do pouco que se sabe, não há qualquer unanimidade. Há opiniões distintas (aparentemente até entre os três pareceres), o que é perfeitamente normal se considerarmos que o processo de investigação sobre estes contextos está apenas no início (a escavação ainda decorre). As opiniões e interpretações elaboradas nesta fase têm necessariamente um carácter preliminar. Serão a investigação e o debate académico futuros a estabelecer a interpretação dos vestígios, consensual ou não, baseada estudo e na publicação dos dados produzidos durante a intervenção arqueológica. O espaço para esse debate é a academia, não está na esfera de acção DGPC, nem a DGPC intervém nele.
Mas mais importante ainda, a DGPC parece não compreender que não lhe compete, nem com apoio de quatro especialistas, nem sequer se fossem vinte, decidir se as ruínas conservadas no claustro da Sé da Lisboa estão ou não relacionadas com a mesquita aljama medieval islâmica de Lisboa. Não tem poder de despacho sobre esta matéria. Nem pode preferir que as ruínas sejam ou não vestígios da mesquita. Não pode comportar-se como se houvesse um concurso, em que toma partido por uma das “partes”, escolhe os jogadores (excluindo outros), arbitra, decide e anuncia o resultado no fim, que valida com carimbo e selo branco. Essa tarefa não é da DGPC, é da comunidade científica.
Os pareceres sobre matéria patrimonial
Segundo o comunicado da DGPC, os pareceres técnicos de arqueologia coincidem no reconhecimento da relevância dos vestígios arqueológicos em apreço (embora uma das peritas tenha afirmado ao Público que essa relevância é inferior à da Sé!).
Ao contrário do que se passa com a interpretação histórica e arqueológicas das ruínas islâmicas presentes no Claustro da Sé, a avaliação patrimonial é, de facto, competência da DGPC, que é aliás a entidade tutelar do Estado a este nível. Assim, impõe-se questionar, porque foi a DGPC incapaz de apreender o elevadíssimo valor patrimonial destes bens, estando disposta a sacrificar a sua integridade sob pretextos sem fundamento? Porque foi necessário tanto alarme social, tanto conflito, tanto desgaste? Porque não respeitou a DGPC os pareceres dos seus técnicos, porque não ouve a sociedade civil, porque não tem uma cultura de abertura e participação em matérias do claro interesse público?
E principalmente porque não tem a DGPC qualquer empenho na defesa do Património arqueológico e se comporta como qualquer dono de obra indistinto, cujo único interesse é “concluir o projecto”, seja ele bom ou mau, lesivo ou destrutivo?
O parecer do LNEC
O comunicado da DGPC relata também que o parecer elaborado pelo LNEC revelou que “a Sé de Lisboa e as ruínas” apresentam “vulnerabilidade sísmica excessiva”. Este aspecto só por si não constitui surpresa. Qualquer leigo que tenha visitado a obra da Sé facilmente percebe que a estabilidade actual não será a desejável, como aliás é normal suceder durante uma obra. Mas mais uma vez, são palavras da DGPC sem que haja acesso público ao parecer. Aparentemente, o LNEC, de forma correcta, defende a estabilidade de todo o conjunto, da Sé e das estruturas arqueológicas. Ao contrário da DGPC (e infelizmente de uma perita) que defende a teoria absurda de que que as ruínas islâmicas têm de ser sacrificadas para preservação do monumento arquitectónico.
Refere ainda o comunicado que o LNEC recomendou a finalização urgente da estrutura projectada, de forma a garantir a necessária estabilidade e integridade da Sé de Lisboa e das ruínas arqueológicas. Salienta-se, contudo, que não poderá ser exactamente assim. O projecto de estruturas está a ser alterado, de forma a garantir a preservação integral das estruturas da mesquita aljama medieval islâmica de Lisboa, bem como a sua adequada valorização e integração museológica.
Portanto, urge concluir a revisão do projecto, retirando qualquer corpo construído do subsolo do claustro, de forma a aligeirar as necessidades estruturais e a garantir a estabilidade global do conjunto patrimonial, sem qualquer afectação das estruturas da mesquita aljama medieval islâmica de Lisboa. Se há aspecto discutível neste projecto, tanto para especialistas como para leigos, são os excessivos volume e quantidade de betão armado, perfis metálicos, vigas, micro-estacas, etc, num espaço patrimonialmente tão sensível. Tudo isto menos para garantir a estabilidade dos bens patrimoniais e mais para suportar o que lá se pretende construir… Por isso, o que há a fazer é não construir e substituir soluções estruturais por outras mais compatíveis com o ambiente patrimonial, para que um dia seja possível ver qualquer coisa que não seja betão, sob o claustro da Sé….
Mas o que o comunicado da DGPC não refere (e logo o parecer seguramente também não) é que o LNEC tenha dado qualquer cobertura à tese inicial da DGPC, segundo a qual a preservação das estruturas islâmicas colocava em risco a estabilidade do claustro e da Sé. Aparentemente, neste aspecto, o parecer do LNEC não terá sido tão favorável à estratégia da DGPC.
O que quer a DGPC
Desacreditar os arqueólogos. Todos; até aqueles a quem pediu parecer; até aqueles a quem paga o ordenado. Porquê? Porque os arqueólogos contestam decisões lesivas para o Património. Porque os arqueólogos, neste, com o noutros casos, assumem o dever cívico de defender o interesse público e não cultivam atitudes bacocas de reverência ao poder. Convém portanto, passar para a opinião pública a ideia de que os arqueólogos não sabem o que dizem, que têm opiniões divergentes, que são alarmistas e exagerados. Também no Côa foi assim…
Por outro lado, convém à DGPC enfraquecer a capacidade reivindicativa dos arqueólogos, pois em breve haverá novo projecto reformulado para a Sé de Lisboa “com vista à integração das estruturas arqueológicas em causa, apontando [a DGPC] para o efeito linhas orientadoras que promovam a respetiva valorização e salvaguarda”. Mais uma vez não se conhecem as linhas orientadoras que a DGPC transmitiu ao projectista. Admite-se que se procure a salvaguarda física das estruturas islâmicas. Mas sobre a integração museológica das mesmas, subsistem sérias e muito legítimas dúvidas.
Por isso, este é o momento (e não após o processo de decisão) de se falar com total clareza. Não será aceitável nem admissível um projecto que garanta a salvaguarda física das estruturas da mesquita aljama medieval islâmica de Lisboa, mas que as cubra totalmente de betão. Sob a laje que cobre o pátio do claustro não deverá ser construído qualquer compartimento. Nessa cripta deverão ser apenas implantados o circuito de visita e as infra-estruturas museográficas necessárias à visita. O visitante deve poder visualizar, observar e contemplar as estruturas da mesquita aljama medieval islâmica de Lisboa em toda a sua altura e desnível e em toda a sua magnitude. O conjunto é monumental, extenso e denso, precisa de espaço e precisa de ambiente para ser adequadamente fruído. O que não precisa é de um corpo em betão suspenso sobre si, a pouca altura; nem de ser visível apenas em pequenas e esmagadas parcelas, qual puzzle restante após o projecto, com peças dispersas e outras em falta.
As ruínas são mais importantes que o projecto. O projecto deve respeitar as ruínas e não o contrário. Há muito e adequado espaço no claustro superior para instalar o núcleo museológico e todas as suas valências (área de exposições, loja, cafetaria, instalações sanitárias e outras estruturas de apoio). Não creio qua haja qualquer possibilidade de instalação na Sé de uma reserva para o espólio arqueológico ali recolhido, atendendo aos requisitos técnicos deste tipo de infra-estrutura e ao enorme volume de espólio em causa. Outros espaços haverá para a instalação desta importante componente museológica. A Sé é demasiado valiosa para se sacrificar espaço patrimonialmente relevante para esta função.
Concluindo (dentro do possível e com base na parca informação disponível)
· A estabilidade do claustro e da Sé de Lisboa não depende do sacrifício das estruturas do complexo da mesquita aljama de Lisboa, logro que esteve na base de toda esta polémica.
· Este processo começou mal, muito mal mesmo para a DGPC. Foram cometidos muitos erros (e não foram as duas arqueólogas que escavam na Sé que os cometeram), de entre os quais se destaca a forma e conteúdo da decisão de afectar consideravelmente as estruturas da mesquita aljama medieval islâmica de Lisboa, em Setembro passado. Até por essa razão, a DGPC deveria esforçar-se por assumir uma postura de Estado, compatível com o seu estatuto de organismo da administração central, com rigor, isenção e tratamento correcto de todos os envolvidos. Infelizmente, pelo contrário, a DGPC não tem qualquer pudor em recorrer a tácticas mediáticas-desinformativas como forma de alcançar o seu objectivo: concretizar um projecto que é lesivo para o Património arqueológico.
· A DGPC tem na sua posse diversos pareceres elaborados por especialistas. Mas escolhe para apoiar a sua decisão e para divulgar, aqueles que melhor servem o seu objectivo, descartando os que não lhe são adversos.
· A DGPC acha que pode decidir e apregoar a existência ou não de restos da mesquita aljama medieval islâmica de Lisboa sob o claustro da Sé; mas não pode. Nem nos regimes ditatoriais que o tentaram, o Estado e os órgãos do Estado tiveram o poder de escrever a História. Quem escreve a História são os historiadores, os arqueólogos e os outros cientistas históricos.
· Não distingo neste meu texto entre DGPC e SPAA do CNC porque, infelizmente, não há qualquer distinção: uma é reflexo da outra.
· Por fim, e muito especialmente, saliento que utilizei de forma deliberada neste texto a expressão “mesquita aljama medieval islâmica de Lisboa” pois, na minha opinião, no estado actual dos conhecimentos e de acordo com os dados disponíveis, históricos, arqueológicos e da evolução da topografia urbana da cidade, considero que é essa a interpretação mais plausível para as extraordinárias estruturas arqueológicas colocadas a descoberto sob a ala Sul do Claustro da Sé de Lisboa. Se antes o defendi foi porque, obviamente, estava técnica e cientificamente convicta da validade desta proposta interpretativa. Futuramente, a investigação e o debate académico mais ditarão. Pela minha parte, estou ansiosa por conhecer os novos dados agora exumados e por discutir este assunto com os meus colegas (peritos consultados pela DGPC incluídos), em sede própria, como, quando e onde todos quisermos.
Lisboa, 19 de Janeiro de 2021
Jacinta Bugalhão
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