É de facto lamentável o que se passa com a arqueologia e o património, em geral no nosso país e em particular em Lisboa. Desde o doloroso processo do Claustro da Sé de Lisboa até à inércia das termas dos Cássios que, ruas abaixo permanecem à espera de um projeto
de musealização que as dignifique, passando pela Torre da Pela, junto ao Martim Moniz que, apesar do projeto de restauro e conservação feito há tanto tempo, permanece na gaveta … são tantos os casos que nem vale a pena mencionar.
Espanto meu, pois, que o caso do loft recentemente propagandeado em cima do teatro romano tenha insurgido tantas pessoas. O facto de o monumento romano se encontrar sobreposto por variadíssimos edifícios que são propriedade privada não é segredo, tal como não
é segredo que a missão do Museu de Lisboa é precisamente a de, pelo conhecimento arqueológico que tem do local, tentar assegurar a intervenção nos edifícios situados em sobreposição ao monumento cénico e na sua envolvente e que, por várias vezes, já mereceu
críticas. A título de exemplo, menciona-se a intervenção arqueológica coordenada pela equipa do Museu de Lisboa em imóvel privado efetuada no n. 6 da Rua da Saudade (2019/2020) com resultados surpreendentes
e de imediato estudados por equipa multidisciplinar, apresentados no próprio Museu de Lisboa – Teatro Romano através de uma exposição temporária e respetivo catálogo:
Arqueologia da Rua da Saudade: um Templo (?) Romano na Cidade (2020).
Infelizmente não ocorreu o mesmo tipo de intervenção no caso agora chamado à colação por razões que passo a explicitar. O edifício em causa – contíguo, pelo lado poente, ao atual Museu de Lisboa – Teatro Romano - teve obras de remodelação em julho de 2008,
sem que as mesmas se encontrassem
licenciadas e sem estar assegurada a salvaguarda arqueológica. Sublinhe-se que os trabalhos de escavação foram inicialmente realizados à porta fechada e os entulhos tirados ao final do dia, facto de que me dei conta pouco depois de os mesmos se terem iniciado.
Os trabalhos foram interrompidos quando denunciados por mim à Polícia Municipal na mesma data perante a ausência de cumprimento da legislação, situação igualmente comunicada
ao então IGESPAR, assim como ao
Diretor da Unidade de Projeto de Alfama da Câmara Municipal de Lisboa então em funções. Os trabalhos foram interrompidos e a obra embargada.
Antes de tudo isto ter lugar, alertei que a CML comprasse o R/C, sobre o qual tinha natural direito de preferência quando o imóvel foi colocado à venda. No entanto, desde há muito que as entidades públicas
não exercem tal direito em prol da salvaguarda arqueológica e patrimonial, como todos nós temos a prova com inúmeros exemplos bem próximos no tempo. Por coincidência, o exemplo mais feliz da aquisição de imóveis com o objetivo de salvaguarda património arqueológico
deu-se, precisamente, no teatro romano de Lisboa entre os anos de 1965 e 1971, quando vários edifícios foram expropriados graças à intervenção de Irisalva Moita e do Município de então.
Passados alguns meses os trabalhos no R/C foram reiniciados tendo como arqueólogo responsável Clementino Amaro, facto que me foi comunicado pelo próprio quando iniciou a intervenção arqueológica. Durante
vários anos a obra esteve parada e apenas em 2020 e 2021 os mesmos recomeçaram, desta vez sob a direção arqueológica da Empresa de Arqueologia “Cota 80 86”, naturalmente com as devidas autorizações dadas pela DGPC.
O que se conserva, afinal, no interior do imóvel? Conserva-se, a norte, parte da estrutura do
post scaenam, que corresponde, afinal, à continuação do troço da mesma colocada à vista, na sua totalidade, a nascente, num comprimento total de 21m (intervenção arqueológica realizada no interior do Museu de Lisboa – Teatro Romano nas campanhas de 2001,
2005 e 2006).
Conserva-se um arco de descarga do edifício, no lado nascente, composto por silhares que devem provir do teatro romano, ainda que o arco date dos finais do séc. XVIII/inícios do séc. XIX, quando o imóvel
foi construído. Por fim, conservava-se um troço de muro que permite confirmar a existência de uma abertura axial nas galerias que existiam a sul do teatro, funcionando como
porticus post scaenam. Cunhal idêntico encontra-se no interior do museu.
É lamentável, de facto, que uma imobiliária faça eco do que tem no seu imóvel, alardeando o património arqueológico e histórico que lhe calhou na rifa. Mas então não será igualmente de lamentar que um hotel
que deveria ter sido um museu permaneça como tal e tenha nas estruturas arqueológicas que colocou à vista o seu grande cartão de visita?
A liberdade de expressão é precisamente isso e o tal loft tem mesmo parte do teatro romano no seu interior, tal como o BCP possui umas magníficas ruínas subjacentes aos seus imóveis. Claro que não são a
mesma coisa, mas de repente, parece que nos insurgimos contra o que sempre soubemos. Em 1991 bem próximo houve uma galeria de arte que tinha o nome de
Galeria do Teatro Romano e em 2008 esse mesmo prédio foi vendido depois de remodelado com o nome
Terraços do Teatro Romano.
O tal projeto de conjunto para o teatro romano existe e o mesmo é público tendo saído várias notícias na imprensa … os logaritmos das redes sociais nem sempre funcionam. A realidade pandémica em que vivemos
fez cair por terra o que, por tanto tempo, o Museu de Lisboa e em particular os técnicos do teatro romano defenderam e para o qual sempre trabalharam. As conjunturas políticas obrigam a reiniciar o processo e levar ao novo executivo o que já havia sido aprovado
pelo anterior. É um processo terrível e cansativo, de facto, mas é para isso que cá estamos e, afinal, vivemos em regime democrático. Lídia Fernandes MUSEU DE LISBOA - Teatro Romano
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