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[Archport] Sítio arqueológico da criança do Lapedo foi vandalizado

To :   archport <archport@ci.uc.pt>
Subject :   [Archport] Sítio arqueológico da criança do Lapedo foi vandalizado
From :   Alexandre Monteiro <no.arame@gmail.com>
Date :   Sat, 19 Feb 2022 15:27:18 +0000


https://www.publico.pt/2022/02/19/culturaipsilon/noticia/sitio-arqueologico-crianca-lapedo-vandalizado-1996056?



ARQUEOLOGIA
Sítio arqueológico da criança do Lapedo foi vandalizado
Troço da parede rochosa do Abrigo do Lagar Velho, área que começou a ser usada pelos humanos há pelo menos 29 mil anos, foi destruído. O sítio, objecto de escavação e estudo desde 1998, é património nacional, mas, cientificamente, tem relevância mundial. Já foi feita queixa-crime às autoridades. Especialistas discutem agora o que fazer.

Lucinda Canelas (texto) e Rui Gaudêncio (fotografia)
19 de Fevereiro de 2022, 6:10

É um abrigo na rocha, na margem esquerda da Ribeira da Caranguejeira, no extremo oeste do vale do Lapedo: uma espécie de garganta estreita com cerca de 1,5 quilómetros de extensão marcada por penhascos que podem chegar aos 100 metros de altura, e por uma vegetação que, apesar da ameaça de espécies invasoras, ainda se compõe de amieiros, choupos, carvalhos, salgueiros e freixos.

Foi ali que há 29 mil anos um grupo de caçadores recolectores decidiu enterrar cuidadosamente uma das suas crianças, que terá morrido aos cinco anos. O esqueleto do chamado menino (ou criança) do Lapedo, descoberto em 1998, e o local adjacente onde comunidades nómadas do Paleolítico Superior viveriam por breves períodos, são hoje património nacional (o primeiro foi classificado em 2018, o segundo em 2013). Mas a sua importância científica não conhece fronteiras.

Laboratório ao ar livre em que a arqueologia e a geologia se cruzam com vários ramos da ciência, o Abrigo do Lagar Velho, em Santa Eufémia, Leiria, foi porém recentemente vandalizado. O alerta foi dado no dia 6 de Fevereiro, quando a arqueóloga Vânia Carvalho, que ali conduzia uma visita guiada, encontrou um troço da parede do abrigo remexido e centenas de fragmentos de osso e de instrumentos líticos (em pedra) no chão.

“Percebi que a parede estava alterada e que não podia ter sido erosão porque havia marcas de escavação, buracos feitos com um pau, muito provavelmente, e porque estavam ossos e lascas de pedra pousados numa saliência que há na rocha, o que seria impossível se tivesse sido uma derrocada natural – ficaria tudo no chão”, conta ao PÚBLICO esta técnica que coordena o Museu de Leiria e o Centro de Interpretação do Abrigo do Lagar Velho, inaugurado em 2008.

Foi a primeira vez, em quase 25 anos, que este sítio arqueológico devidamente assinalado e inserido numa propriedade privada a que se acede transpondo um portão foi devassado.

Vânia Carvalho comunicou de imediato o sucedido a uma das arqueólogas que dirigem o projecto de investigação em torno deste abrigo do Paleolítico que tem vindo a ser escavado desde a sua descoberta. Ana Cristina Araújo, que partilha a responsabilidade com a geoarqueóloga Ana Costa, ambas do Laboratório de Arqueociências (Larq) da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), e dois colegas da Universidade de Barcelona, Joan Daura e Montse Sanz, não tem dúvidas de que houve destruição intencional.

“Pode ter sido uma idiotice de miúdos, mas o dano está feito e é irreparável”, diz a arqueóloga, apontando para um troço de parede com 100 centímetros de comprimento, 30 de largura e 12 de profundidade de onde terão caído, “contas por alto”, 500 elementos identificáveis, entre fragmentos de osso, seixos do rio alterados pela acção do fogo, e instrumentos em pedra, provavelmente feitos para cortar e tratar a carne e as peles dos animais caçados.

“O que tínhamos aqui era um bocado da nossa história ancestral, um instrumento pedagógico que funcionava como uma vitrine e que nos ajudava a explicar o que aqui se passou há 26 e 24 mil anos [a sepultura e a área escavada no chão são anteriores, 29 mil anos]. Esta janela mostrava como o homem aproveitou a natureza sem dar cabo dela, que estratégias usou para sobreviver”, diz a arqueóloga. “Também por isso lhe chamamos ‘Testemunho Pendurado’, por estar suspenso no tempo e no espaço, por nos mostrar o que fomos naquele intervalo cronológico”, acrescenta Ana Costa.

Tanto as técnicas do Larq como a da autarquia ficaram absolutamente surpreendidas com o sucedido, já que a população local tem sido a primeira a defender e a promover aquele património nacional.

“Quem aqui veio talvez não tenha noção da destruição que provocou”, continua Ana Costa. “Não sabemos o que foi levado depois de picada a parede e perdeu-se a hipótese de voltar a recolher outras amostras para analisar. Daqui a 20 ou 30 anos os avanços da ciência e da tecnologia podiam dar-nos muito mais informação.”

Perdeu-se, também, a relação dos vestígios caídos com o seu contexto, sublinha a coordenadora do Museu de Leiria: “Não há nada aqui que tenha valor comercial, mas, cientificamente, um fragmento de osso, na relação com outros materiais ou com o local de onde saiu, pode ser importantíssimo. Custa-me a crer que tenha sido alguém próximo. As pessoas da região valorizam tanto este lugar na rocha por onde passaram homens há 30 mil anos como o Castelo de Leiria.”

Para receber formalmente a queixa-crime, apresentada pela autarquia e pela DGPC através de Vânia Carvalho e das duas técnicas superiores do Larq, estiveram na quinta-feira no local três elementos da GNR. No final da visita, confirmaram ao PÚBLICO que tudo aponta para um acto deliberado: “Tendo em conta o que foi mostrado e explicado, tudo parece indicar que houve vandalismo, um crime público. Agora a queixa vai ser encaminhada para o Ministério Público, que depois vai decidir da investigação. Neste momento é tudo o que se pode dizer. É preciso esperar.”

À hora em que escrevemos este artigo, Ana Cristina Araújo e Ana Costa estavam a concluir um relatório para anexar à queixa-crime. Em breve terão de decidir, com outros colegas, o que fazer para consolidar a parede e para dar continuidade aos trabalhos no sítio, cuja escavação recomeça a 16 de Julho. A área vandalizada será, naturalmente, uma prioridade.

As sequências estratigráficas que ali foram postas a descoberto, e que têm vindo a ser estudadas por uma equipa transdisciplinar composta por cientistas portugueses, espanhóis, australianos, ingleses, norte-americanos ou alemães, são um testemunho riquíssimo de boa parte das ocupações humanas da região no Paleolítico Superior, que terão ocorrido 30 a 20 mil anos antes de nós. Neste período as comunidades são ainda nómadas, movimentando-se e adaptando as actividades capazes de lhes garantir a sobrevivência de acordo com os recursos que a natureza tem para lhes oferecer.

O abrigo, identificado depois de a área ter sido praticamente arrasada por terraplanagens em 1994, começou a ganhar importância quando foi descoberto o esqueleto da criança do Lapedo, coincidente com os níveis de ocupação mais antigos até aqui identificados neste sítio arqueológico.

Com 29 mil anos, é a única sepultura de criança do Paleolítico Superior conhecida em toda a Península Ibérica e um testemunho das práticas rituais funerárias que neste período seriam partilhadas num vasto território que ia desta ponta da Europa até aos Urais, explica Ana Cristina Araújo, falando da mortalha de pele tingida a ocre que envolvia aquele corpo, das contas que lhe cobriam a testa ou do coelho ainda pequeno que foi deixado entre as suas pernas.

Como se estes elementos não fossem já suficientemente significativos para conceder importância a este enterramento e classificar a sua descoberta como rara, as características do esqueleto vieram conferir-lhe, não sem polémica, uma singularidade ainda maior, reforçando o seu valor. Anatomicamente moderna – Homo sapiens, a nossa espécie –, esta criança teria também atributos que a aproximam do Homem de Neandertal, sugerindo que houve hibridismo entre estas duas populações. Uma hipótese que a ciência veio a confirmar mais tarde com a sequenciação do genoma neandertal.

O Lapedo, defende João Zilhão, arqueólogo que com a antropóloga Cidália Duarte dirigiu as primeiras escavações no Abrigo do Lagar Velho entre Dezembro de 1998 e Janeiro de 1999, tem um lugar na história da história da evolução humana. “Este sítio veio provar, pela primeira vez com um esqueleto quase completo, uma ancestralidade partilhada na qual se incluem os neandertais; veio demonstrar que eles não são, como diziam muitos, um beco sem saída na história da humanidade”, volta a explicar ao PÚBLICO.

Este professor da Universidade de Barcelona, que estudou a criança do Lapedo com o antropólogo norte-americano Erik Trinkaus e que tem dedicado boa parte da sua investigação a “reabilitar” os neandertais, lembra que nos anos 1960-70 se entendia que estes nossos antepassados também eram Homo sapiens, mas de uma subespécie diferente da nossa. “A pólvora já tinha sido descoberta antes do Lapedo, mas nós passámos os últimos 25 anos a ressuscitar a ideia de um cruzamento, que o genoma já veio confirmar que existiu.”

Zilhão ainda não visitou o abrigo depois de vandalizado, mas confia na opinião de Ana Cristina Araújo, também ela membro da equipa que trabalhou no local em 1998-99, e de Ana Costa.

“Quando soube, antes mesmo de as colegas do Larq irem ao sítio, pus em causa que fosse vandalismo. Aquele corte [na rocha calcária] está exposto há quase 30 anos [desde as terraplanagens de 1994] e, num vale com aquelas características geológicas, com muita água, não podia pôr de parte uma derrocada natural, decorrente da erosão. Mas se, tendo visto, elas dizem que foi vandalizado, elas saberão”, assegura.

Ao contrário de Ana Costa e de Ana Cristina Araújo, Zilhão acredita que, em termos informativos, a área afectada está esgotada: “A informação que ali podíamos recolher está recolhida, tratada, estudada. Há amostras, desenhos, fotografias, vídeos. Mas a janela pedagógica que este corte representava perdeu-se”, continua, defendendo que há muito se devia ter pensado na consolidação do sítio, que continua a ser posta em causa pela erosão natural: “Jazidas deste tipo são arquivos de terra, carregados de informação, mas difíceis de ler pelos não-especialistas. Não há no abrigo colunas nem mosaicos como nos sítios romanos, mas isso não quer dizer que seja menos importante.”

Três anos sem resposta da DGPC
Ana Cristina Araújo começou em 2019 a pedir ao Departamento de Estudos, Projectos, Obras e Fiscalização (DEPOF), divisão da DGPC a que o Laboratório de Arqueociências estranhamente pertence (a arqueologia está no de Bens Culturais), que encontrasse uma solução para proteger, sem tornar invisível, o troço de parede que agora terá sido vandalizado.

A arqueóloga fez duas informações oficiais alertando para a necessidade de consolidar aquele corte tão ilustrativo da acumulação de sedimentos e das mudanças ambientais ao longo do tempo, conversou informalmente com arquitectos e engenheiros do DEPOF na tentativa de encontrar uma solução que sabia não ser fácil e enviou vários emails procurando convencer os responsáveis deste departamento que é hoje dirigido pela arquitecta Elisabete Moura Barreiros Ferreira a intervirem. Sem sucesso.

“Foram três anos a insistir na importância de garantir a integridade deste sítio património nacional, de onde saiu um tesouro nacional, uma coisa que devia ser evidente para toda gente dentro da DGPC, e agora isto acontece. Durante três anos não tive sequer uma resposta. E os meus pedidos de ajuda chegaram a duas direcções do DEPOF. Quem se responsabiliza agora?”, pergunta a arqueóloga do Larq, não poupando elogios à câmara de Leiria, que tem feito o que está ao seu alcance para salvaguardar, e dar a conhecer, o Abrigo do Lagar Velho. “A hierarquia de procedimentos está a dar cabo da DGPC. E, enquanto a burocracia cresce, as coisas caem. Até quando?”

O PÚBLICO procurou saber junto da DGPC por que razão não tinha havido qualquer intervenção, ou sequer uma reacção, aos reiterados pedidos de ajuda da técnica responsável. Em vão. Por email chegou a frase: “Não nos foi possível, em tempo útil, reunir a informação necessária para dar resposta às questões colocadas.”

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