Acessibilidade
Começamos a
pensar em cidades para todos
Problemas de mobilidade afectam 60 por cento da população e há
várias empresas portuguesas a desenvolver produtos para facilitar a vida urbana.
Por Samuel Silva
Um dado para início de conversa: estima-se que 60
por cento da população dos países da OCDE tem mobilidade reduzida. "A
acessibilidade não é apenas um problema das pessoas com deficiência", explica a
engenheira civil Paula Teles, que tem dedicado os últimos anos da sua vida a
desenvolver projectos de mobilidade para cidades. A questão está a ganhar força
no país. Nas universidades criaram-se cursos especializados e há várias empresas
a desenvolver produtos que vão facilitar a vida de todos.
"Dentro de dez
anos este já não será um problema", acredita Paula Teles, que também administra
a empresa de estudos m.pt. Esta é a projecção da especialista para a próxima
década. E hoje, como são as coisas? "Noventa por cento do que se está a fazer
nos territórios é a negação da mobilidade. Há cidades que estão a construir
passeios que são autênticas montanhas-russas", responde.
A análise de
Jorge Leite, da direcção nacional da Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal
(Acapo), aponta no mesmo sentido: "Em Portugal não há nenhuma cidade que se
destaque em termos de mobilidade dos peões. É lamentável porque, em 1997, saiu
legislação neste campo e o prazo para tornar Portugal acessível era 2004",
avalia. Em 2006, a legislação foi corrigida e o novo prazo para resolver os
problemas de acessibilidade foi alargado para 2012 ou 2017, conforme o ano de
construção do local a adaptar.
Há por isso muito trabalho pela frente
para tornar as cidades nacionais mais inclusivas e acessíveis a todos. A solução
preconizada por Paula Teles passa pela criação de corredores livres de
obstáculos, acessíveis a todos. Os percursos desenhados têm um metro e vinte de
largura por dois metros e vinte de altura e permitem às pessoas circular de
forma segura. "É como se estendêssemos grandes rolos de carpetes sobre as
cidades", ilustra Paula Teles. Foi isso que propôs a Portimão, nos oito
quilómetros de intervenção concluídos há poucos meses na cidade.
O
desafio é agora criar sistemas de continuidade que permitam a uma pessoa com
mobilidade reduzida movimentar-se por exemplo ao longo de todo um quarteirão.
"Para os idosos, os cegos ou os deficientes, as cidades ideais não são Nova
Iorque ou Londres, são aquelas onde podem chegar de casa ao café", aponta a
especialista.
Mudança de mentalidades
Apesar das
dificuldades, nota-se já uma alteração de mentalidades motivada pelos últimos
anos de intervenção nos espaços urbanos, com a eliminação de barreiras
arquitectónicas e a sinalização deste género de problemas. "Já existe uma maior
consciencialização das pessoas relativamente à acessibilidade. Perante este
facto, o poder autárquico já realiza algum trabalho através da implementação de
planos de acessibilidade", reconhece Jorge Leite, da Acapo. "Os últimos anos
foram uma revolução. Há 15 anos ninguém sabia o que era acessibilidade",
concorda Paula Teles.
Essa mudança de mentalidade vê-se também no meio
académico. A Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro abriu em 2007 uma
licenciatura em Engenharia da Reabilitação e Acessibilidade, que foi a primeira
da Europa com estas características. No ano passado, o exemplo português foi
seguido pela Universidade de Coventry, no Reino Unido.
Também o Instituto
Português da Qualidade tem em marcha um projecto de certificação de qualidade da
acessibilidade. No âmbito desse trabalho, foi criada uma comissão técnica que
reúne engenheiros civis, projectistas, empresas de transportes como a Carris, a
STCP e os metros de Lisboa, Porto e Mondego, e organismos públicos como o
Instituto Nacional para a Reabilitação, que têm discutido soluções para este
problema.
A esse debate juntaram-se também várias empresas que nos
últimos anos têm estado a desenvolver produtos com o objectivo de facilitar a
vida nas cidades. É o caso da Thyssen, que está a criar elevadores que facilitam
o acesso a pessoas com mobilidade reduzida, e da Soltráfego, que tem
praticamente prontos a entrar no mercado novos semáforos, parquímetros e
máquinas de bilhetes para transportes públicos pensadas para pessoas com
mobilidade reduzida. Outra das soluções desenvolvidas por empresas portuguesas é
o pavimento podotáctil Kerabraille, da Aleluia cerâmicas (ver texto ao
lado).
Um mercado com futuro
Estas empresas responderam ao
desafio de pensar cidades para todos e agora começam a tirar proveitos disso.
"Os objectivos iniciais do projecto não foram económicos, mas este pode vir a
tornar-se num negócio interessante", destaca Alexandre Lopes, director de
prospecção da Aleluia. Os pavimentos podotácteis ainda não são rentáveis, mas a
realidade pode mudar a médio prazo. "A sociedade está hoje mais disponível para
a problemática da mobilidade e isso pode ter alguns resultados", acredita o
mesmo responsável.
"A acessibilidade é um factor de desenvolvimento
económico e neste momento há um conjunto enorme de empresas a surgir nesta
área", conta Paula Teles. A gestora da m.pt. não tem dúvidas que a
acessibilidade para todos "será um mercado de futuro". "Hoje não é ainda
interessante do ponto de visto económico, mas vai abrir-se um nicho de mercado",
antecipa. Desde logo porque, nesta matéria, há ainda muito que fazer nas cidades
e há uma tendência para que cada vez mais pessoas tenham mobilidade reduzida.
Além disso, num cenário de crise económica, onde poucas obras são
lançadas, as verbas que o QREN prevê para financiar projectos nas áreas das
acessibilidades podem ser um chamariz para que algumas empresas apostem no
sector. Actualmente há 90 municípios a desenvolver planos de acessibilidades e
17 milhões de euros de fundos comunitários destinados a esses projectos. É esta
a realidade que leva Paula Teles a apostar em dez anos de mudança em matéria de
acessibilidade. "A eliminação das barreiras arquitectónicas vai ser o principal
factor de desenvolvimento dos territórios durante a próxima década", conclui a
especialista.
Fonte: http://jornal.publico.pt/noticia/20-02-2011/comecamos-a-pensar--em-cidades-para-todos-21329065.htm