Meus caros Recebi do Doutor J. A. Gonçalves Guimarães, Mesário-mor da Confraria Queirosiana (de V N de Gaia) o seguinte texto incluído na ultima “newsletter” da referida Confraria. Por ser um texto muito interessante e atual, divulgo-o nesta rede. “A escrita da História Mas então só os historiadores podem escrever sobre História? Numa sociedade livre e democrática não pode qualquer cidadão escrever sobre o que lhe dá na real gana? Há censuras, restrições corporativas? Depende. Experimentem fazer essas mesmas perguntas ou colocar essas mesmas questões mudando historiador para jurista sobre Direito, médico sobre Medicina, engenheiro sobre Engenharia, arquitecto sobre Arquitetura e terão logo metade da questão aclarada e a resposta dada. Mas sem esquecerem que existe a História do Direito, a História da Medicina, a História da Engenharia, a História da Arquitetura (ou, mais ampla, a da Arte). Aí responderia que talvez seja melhor os profissionais encontrarem- se e trabalharem em colaboração, unindo saberes e metodologias. Uma coisa é escrever sobre uma ciência humana, outra escrever versos, desabafos, opiniões, crónicas, memórias. Ou glosar ciência alheia em textos síntese. Mas isso é na estrita esfera dos saberes próprios de cada ciência. E na divulgação, na decomposição das grandes questões em explicações acessíveis aos não especialistas, aos alunos das escolas, ao público em gertida, achar-se que se podem alargar os furos do cinto do rigor quando se trata de divulgaral, podem outros, que não os historiadores, escrever sobre História? Direi que depende dos objetivos e da honestidade das metodologias a aplicar. Não é lícito, logo à pação e que se pode atrair o público misturando factos históricos com invenções ou delírios ficcionais. Quando tal acontece, se foi feito por historiadores profissionais, devem os mesmos ser corrigidos pelos seus pares; se tal for feito por outros profissionais, há que criticá-los na praça pública e se os seus relatos deliberadamente falaciosos estiverem ao serviço de entidades que com isso ganham dinheiro, há que denunciá-los às entidades de defesa do consumidor por estarem a vender um “ bacalhau podre” como se fora de boa qualidade. Se tal acontece num supermercado com os produtos alimentares, porque não pode acontecer com os “alimentos do espírito” que tão importantes são para a coesão das comunidades? Podem (ou devem) então outros profissionais, nomeadamente os jornalistas, escrever sobre História? Depende, e logo em primeiro lugar, se estão ou não a roubar o trabalho aos historiadores. Nesse caso não podem nem devem. Mas o melhor é analisar dois exemplos relativamente recentes, um aceitável e outro mau. Como se lembram, no ano 2000 voltaram à conversa as velhas superstições milenaristas, que antes de mais se esquecem que a “era cristã” nem sequer é universal. Dois jornalistas ingleses, Robert Lacey (formado também em História) e Danny Danziger, cavalgando a onda do interesse do público pelo assunto, escreveram o livro Ano 1000. Como se vivia na viragem do primeiro milénio, editado em Portugal pela Campo das Letras. Para tal serviram-se de um manuscrito, o Calendário Juliano de Trabalhos da Catedral da Cantuária, escrito por volta de 1020, no qual cada folha foi adornada com preciosos desenhos referentes às atividades próprias de cada mês. E a partir daí compuseram uma narrativa jornalística da época, mas muito bem fundamentada em excelente bibliografia historiográfica (que divulgam em notas e no final), tendo ainda o cuidado de consultarem muitos especialistas em Idade Média, arqueólogos e documentalistas, a quem pediram para lerem e corrigirem o seu texto antes de o publicarem, e cujos nomes constam nos agradecimentos finais. Eles próprios declaram que não escreveram um livro de História, mas sim um livro que incluísse as suas perguntas «a alguns dos mais eminentes historiadores e arqueólogos», criando assim uma obra tão agradável de ler quanto rigorosa nas múltiplas abordagens ao tema e remetendo quem quiser saber mais para as obras da especialidade consultadas. Agora o mau exemplo. Português, para meu desgosto. Publicou recentemente a Visão Biografia o seu número 5, referente a julho/ setembro, dedicado a Eça de Queiroz. O génio da escrita, edição dirigida por Mafalda Anjos, licenciada em Direitoe jornalista, com um numeroso grupo de colaboradores. Não obstante a Biografia ser um exercício da História, não há entre eles um único historiador. E no entanto há ali não só capítulos biográficos sobre Eça e outros contemporâneos, como sobre a sociedade oitocentista, mas tudo muito pesado e déjà lu, sem quaisquer referências bibliográficas, tudo aparentemente saído da cabecinha pensadora destes não-historiadores. Mesmo quando, quase no fim, a publicação nos quer apresentar uma bibliografia queirosiana, não só faltam nela obras fundamentais, como a terceira edição do Dicionário de A. Campos Matos (apresentam a 2.a do ano 2000!), como incluíram a hoje quase inútil Vida e Obra de Eça de Queiroz, de João Gaspar Simões, na versão de 1973. Sobre a Geração de 70 continuam a transmitir a ideia errada de que a mesma só era composta por literatos (ou pior ainda, de que no Portugal do tempo de Eça todo o conhecimento se reduzia ao dos literatos ou, vá lá, também a alguns artistas). Depois a repetição, pela enésima vez, de alguns erros biográficos, como o de que o escritor viajou «até ao Egito e Palestina com o futuro cunhado» (p. 11; o 5.o Conde de Resende nunca foi cunhado de Eça, pois morreu antes dele casar com sua irmã); que aquando dos jantares dos Vencidos da Vida o Marquês de Soveral era «diplomata em Roma» (p. 70), quando o era em Londres há muito tempo; segue-se a abundante, e também habitual, fantasia de confundir em leituras primárias a ficção queirosiana (metáforas literárias por excelência) com a realidade geográfica e factual da época, em várias páginas e artigos, e nenhuma alusão a factos determinantes, como a invenção em 1878 da telescopia elétrica, precursora da televisão, por Adriano de Paiva, seu condiscípulo em Coimbra (sabendo-se a militante curiosidade de Eça pelos inventos da sua época); ou mesmo a total omissão de factos fundamentais da sua vida e obra, como as duas namoradas que conheceu em Cuba, uma dos quais que com ele se irá cruzar mais tarde na Europa; a sua viagem aos EUA e ao Canadá «para ver o progresso»; a sua defesa intransigente dos direitos dos coolies, que deixou expressa num notável relatório só publicado em 1979, recentemente levada ao cinema por Francisco Manso, o que nem sequer é referido nesta publicação, embora lá se fale de outras versões cinematográficas. Para além de alguns testemunhos pessoais, que são o que são e valem o que valem, e de interpretações literárias de aspetos da obra por Carlos Reis e Isabel Pires de Lima, esta publicação não tem pois qualquer interesse como descrição e interpretação biográfica do escritor, pois, como já se disse, mesmo do ponto de vista iconográfico, é um déjà vu. Mas Eça continua a vender, mesmo o mais do mesmo. «As ciências históricas são a base fecunda das ciências sociais», escreveu Eça, quando jovem (Prosas Bárbaras). Obviamente que nada temos contra o bom jornalismo. Mas a História não é um diletantismo jornalístico mas sim o estudo profissional persistente, sistemático, descobridor e explicativo das acções humanas e dos diversos ramos do saber.” J. A. Gonçalves Guimarães Mesário-mor da Confraria Queirosiana (https://eca-e-outras.blogspot.com/) |
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