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[Histport] "A escrita da História" texto de J. A. Gonçalves Guimarães

To :   <histport@uc.pt>
Subject :   [Histport] "A escrita da História" texto de J. A. Gonçalves Guimarães
Date :   Tue, 29 Sep 2020 13:35:58 +0100

Meus caros

Recebi do Doutor J. A. Gonçalves Guimarães, Mesário-mor da Confraria Queirosiana (de V N de Gaia) o seguinte texto incluído na ultima “newsletter” da referida Confraria. Por ser um texto muito interessante e atual, divulgo-o nesta rede.

 

 

 

“A escrita da História

Mas então só os historiadores podem escrever sobre História? Numa

sociedade livre e democrática não pode qualquer cidadão escrever sobre o

que lhe dá na real gana? Há censuras, restrições corporativas? Depende.

Experimentem fazer essas mesmas perguntas ou colocar essas mesmas

questões mudando historiador para jurista sobre Direito, médico sobre

Medicina, engenheiro sobre Engenharia, arquitecto sobre Arquitetura e

terão logo metade da questão aclarada e a resposta dada. Mas sem

esquecerem que existe a História do Direito, a História da Medicina, a

História da Engenharia, a História da Arquitetura (ou, mais ampla, a da

 

Arte). Aí responderia que talvez seja melhor os profissionais encontrarem-

se e trabalharem em colaboração, unindo saberes e metodologias. Uma

 

coisa é escrever sobre uma ciência humana, outra escrever versos,

desabafos, opiniões, crónicas, memórias. Ou glosar ciência alheia em textos

síntese.

Mas isso é na estrita esfera dos saberes próprios de cada ciência. E na

divulgação, na decomposição das grandes questões em explicações

acessíveis aos não especialistas, aos alunos das escolas, ao público em

gertida, achar-se que se podem alargar os furos do cinto do rigor quando se

trata de divulgaral, podem outros, que não os historiadores, escrever sobre História? Direi

que depende dos objetivos e da honestidade das metodologias a aplicar. Não é lícito, logo à

pação e que se pode atrair o público misturando factos históricos com

invenções ou delírios ficcionais. Quando tal acontece, se foi feito por

historiadores profissionais, devem os mesmos ser corrigidos pelos seus

pares; se tal for feito por outros profissionais, há que criticá-los na praça

pública e se os seus relatos deliberadamente falaciosos estiverem ao serviço

de entidades que com isso ganham dinheiro, há que denunciá-los às

entidades de defesa do consumidor por estarem a vender um “ bacalhau

podre” como se fora de boa qualidade. Se tal acontece num supermercado

com os produtos alimentares, porque não pode acontecer com os

“alimentos do espírito” que tão importantes são para a coesão das

comunidades?

 

Podem (ou devem) então outros profissionais, nomeadamente os

jornalistas, escrever sobre História? Depende, e logo em primeiro lugar, se

estão ou não a roubar o trabalho aos historiadores. Nesse caso não podem

nem devem. Mas o melhor é analisar dois exemplos relativamente recentes,

um aceitável e outro mau.

Como se lembram, no ano 2000 voltaram à conversa as velhas

superstições milenaristas, que antes de mais se esquecem que a “era cristã”

nem sequer é universal. Dois jornalistas ingleses, Robert Lacey (formado

também em História) e Danny Danziger, cavalgando a onda do interesse do

público pelo assunto, escreveram o livro Ano 1000. Como se vivia na

viragem do primeiro milénio, editado em Portugal pela Campo das Letras.

Para tal serviram-se de um manuscrito, o Calendário Juliano de Trabalhos

da Catedral da Cantuária, escrito por volta de 1020, no qual cada folha foi

adornada com preciosos desenhos referentes às atividades próprias de cada

mês. E a partir daí compuseram uma narrativa jornalística da época, mas

muito bem fundamentada em excelente bibliografia historiográfica (que

divulgam em notas e no final), tendo ainda o cuidado de consultarem

muitos especialistas em Idade Média, arqueólogos e documentalistas, a

quem pediram para lerem e corrigirem o seu texto antes de o publicarem, e

cujos nomes constam nos agradecimentos finais. Eles próprios declaram

que não escreveram um livro de História, mas sim um livro que incluísse as

suas perguntas «a alguns dos mais eminentes historiadores e arqueólogos»,

criando assim uma obra tão agradável de ler quanto rigorosa nas múltiplas

abordagens ao tema e remetendo quem quiser saber mais para as obras da

especialidade consultadas.

Agora o mau exemplo. Português, para meu desgosto. Publicou

recentemente a Visão Biografia o seu número 5, referente a julho/

setembro, dedicado a Eça de Queiroz. O génio da escrita, edição dirigida

por Mafalda Anjos, licenciada em Direitoe jornalista, com um numeroso

grupo de colaboradores. Não obstante a Biografia ser um exercício da

História, não há entre eles um único historiador. E no entanto há ali não só

capítulos biográficos sobre Eça e outros contemporâneos, como sobre a

sociedade oitocentista, mas tudo muito pesado e déjà lu, sem quaisquer

referências bibliográficas, tudo aparentemente saído da cabecinha

pensadora destes não-historiadores. Mesmo quando, quase no fim, a

publicação nos quer apresentar uma bibliografia queirosiana, não só faltam

nela obras fundamentais, como a terceira edição do Dicionário de A.

Campos Matos (apresentam a 2.a do ano 2000!), como incluíram a hoje

quase inútil Vida e Obra de Eça de Queiroz, de João Gaspar Simões, na

versão de 1973. Sobre a Geração de 70 continuam a transmitir a ideia

errada de que a mesma só era composta por literatos (ou pior ainda, de que

 

no Portugal do tempo de Eça todo o conhecimento se reduzia ao dos

literatos ou, vá lá, também a alguns artistas). Depois a repetição, pela

enésima vez, de alguns erros biográficos, como o de que o escritor viajou

«até ao Egito e Palestina com o futuro cunhado» (p. 11; o 5.o Conde de

Resende nunca foi cunhado de Eça, pois morreu antes dele casar com sua

irmã); que aquando dos jantares dos Vencidos da Vida o Marquês de

Soveral era «diplomata em Roma» (p. 70), quando o era em Londres há

muito tempo; segue-se a abundante, e também habitual, fantasia de

confundir em leituras primárias a ficção queirosiana (metáforas literárias

por excelência) com a realidade geográfica e factual da época, em várias

páginas e artigos, e nenhuma alusão a factos determinantes, como a

invenção em 1878 da telescopia elétrica, precursora da televisão, por

Adriano de Paiva, seu condiscípulo em Coimbra (sabendo-se a militante

curiosidade de Eça pelos inventos da sua época); ou mesmo a total omissão

de factos fundamentais da sua vida e obra, como as duas namoradas que

conheceu em Cuba, uma dos quais que com ele se irá cruzar mais tarde na

Europa; a sua viagem aos EUA e ao Canadá «para ver o progresso»; a sua

defesa intransigente dos direitos dos coolies, que deixou expressa num

notável relatório só publicado em 1979, recentemente levada ao cinema por

Francisco Manso, o que nem sequer é referido nesta publicação, embora lá

se fale de outras versões cinematográficas. Para além de alguns

testemunhos pessoais, que são o que são e valem o que valem, e de

interpretações literárias de aspetos da obra por Carlos Reis e Isabel Pires de

Lima, esta publicação não tem pois qualquer interesse como descrição e

interpretação biográfica do escritor, pois, como já se disse, mesmo do

ponto de vista iconográfico, é um déjà vu. Mas Eça continua a vender,

mesmo o mais do mesmo.

«As ciências históricas são a base fecunda das ciências sociais»,

escreveu Eça, quando jovem (Prosas Bárbaras). Obviamente que nada

temos contra o bom jornalismo. Mas a História não é um diletantismo

jornalístico mas sim o estudo profissional persistente, sistemático,

descobridor e explicativo das acções humanas e dos diversos ramos do

saber.”

J. A. Gonçalves Guimarães

Mesário-mor da Confraria Queirosiana

(https://eca-e-outras.blogspot.com/)

 





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