Um morrião filipino Rainer Daehnhardt, Presidente da Academia Portuguesa de Armas Antigas, especializou-se, ao longo de toda uma vida, no estudo da armaria de outrora. Daí que tenha recebido agora, vindo das Filipinas, o pedido para se pronunciar acerca das características do capacete que se mostra na figura. Transcrevemos, com sua expressa autorização, o que teve a gentileza de nos transmitir, assim como, a abrir, tópicos acerca do que, no século XVI, se passou entre as Filipinas e o Japão e o papel que, indirectamente, Portugal teve nisso. O Japão, Portugal e as Filipinas 1º) Filipe II de Espanha, que foi quem deu o seu nome a este arquipélago no Extremo Oriente, foi o Filipe I de Portugal. 2º) Houve muitos contactos de navegadores lusos com o arquipélago filipino; às escondidas, até tivemos aí portos de recurso! 3º) Também devemos ter em conta que o plano de Filipe II era tomar o Japão de assalto vindo das Filipinas. Por isso aí criou a cidade de Manila. Também criou um exército de desembarque, de perto de 15 000 homens para, das Filipinas, poderem tomar o Japão, por causa da sua grande riqueza de prata. 4º) O Japão, porém, já recebera, em 1543, as primeiras armas de mecha oferecidas por portugueses em Tanegashima, que logo foram copiadas em massa por fabricantes japoneses. 5º) Mesmo assim, os Espanhóis tentaram invadir o Japão! Mas os Japoneses deram-lhes batalha valente. Em terminologia militar, “deram-lhes uma grande coça”! 6º) De seguida, foi a vez de os Japoneses invadirem as Filipinas. O morrião filipino dos séculos XVI/XVII Trata-se de uma peça francamente rara, por ser um modelo que não voltou a ser fabricado. O canelado servia para amortecer os golpes dos adversários, que, ao atingirem a peça, batiam contra rebordos metálicos, que impediam o acesso à chapa protectora da cabeça do portador. Isto apenas se fez na 1ª metade do século XVI na Europa, sobretudo na Alemanha e na Itália, que eram, então, os principais fornecedores de armaduras. Porém, apenas os faziam de ferro. No Mundo Português e no Mundo Espanhol de então já se faziam de cobre e de latão. Em Goa, apenas de cobre, por vezes dourado e muito trabalhado, mas sempre em forma de capacete, nunca em forma de morrião. A diferença entre um capacete e um morrião é simples de ver: o capacete, colocado em cima da mesa, tem toda a sua borda assente na mesma, enquanto o morrião tem um feitio muito arredondado e faz lembrar uma meia lua e parece que “dança”, tanto para a frente como para trás. Ambos têm vantagens e desvantagens. Este exemplar é nitidamente um morrião, de um modelo que se designa por “morrião de pera”. Existem dois tipos de morriões. Este é de pera, assim chamado por ter um pequeno reforço no seu ponto mais alto, para melhor proteger o crânio do seu portador contra um golpe de machado ou de grande moca. O outro tipo de morrião é chamado de “morrião de crista”: porta em cima uma enorme meia lua, de lado a lado, e com ela protege o crânio com uma grande chapa especialmente criada contra fortes golpes de espada do adversário. De certa forma, faz lembrar a crista de um galo e por esse motivo obteve esta designação. O presente exemplar é precisamente um morrião filipino de pera e, o que é muito importante, um morrião CANELADO. Isto apenas acontece nos exemplares mais antigos, porque, por a sua produção ser mais dispendiosa e exigir a mão de grande mestre para bater tais ranhuras, mais tarde deixaram de se fabricar. Na Europa, apenas se produziram durante a 1ª metade do século XVI; na Ásia e nas Américas, usou-se esta técnica até um pouco mais tarde, mas, na 1ª metade do século XVII, desapareceu, por não haver mestres com capacidade para realizar l trabalho tão exímio. A palavra portuguesa “canelado” tem origem na palavra “cana”, a matéria-prima utilizada para o fabrico das flechas, a arma com que se faziam as guerras em todo o mundo de então. Chegaram-se a produzir flechas com pequenos furos, que pareciam fazer as flechas “cantar” ao serem disparadas, resultado do som do vento que nelas entrava. Os relatos destas guerras falavam do susto e medo de muitos povos, que ouviam as flechas a assobiar. Nos Andes, ainda hoje se usam as flautas feitas de cana para fazerem as suas músicas. A guerra psicológica com sons para aterrorizar o adversário é usada desde a pré-história e até se usavam flechas que usavam mais de um furo e assim produziam sons duplos. Eram as flechas de comunicação e com estas podiam-se transmitir mensagens de uma canoa à outra, do lado de um vale ao outro e ainda para mais longe. Em poucos minutos, archeiros devidamente colocados conseguiam enviar mensagens codificadas, a grandes distâncias. Em inglês, estes capacetes canelados eram chamados “fluted”, o que nitidamente remete para a palavra portuguesa “flauta”. A diferença entre o morrião de cobre e o morrião de latão é apenas a diferença da matéria-prima utilizada no fabrico. O de cobre é apenas o 1º a ser utilizado. Logo de seguida surgiu a utilização do latão, que resultava da mistura de cobre com uma pequena inclusão de outro metal, o zinco. Este tornava a matéria-prima um pouco mais resistente e dava-lhe uma cor mais amarelada. Esta era mais apreciada do que o tom avermelhado do cobre, porque, quando bem limpa, parecia ser de ouro. Tal encantava o portador e seus admiradores e preocupava o adversário que já ao longe se apercebia da aproximação de “gente graúda”! Tais pormenores são importantes e explicam o porquê do aparecimento dos mesmos e em que circunstâncias. O triplo canudo deste morrião é posterior à data do seu fabrico inicial. Tais objectos de defesa eram usados gerações após gerações, sempre com pleno reconhecimento da importância dos seus antepassados. Assim sendo, do século XVI até ao século XVII, existiu apenas o uso de um canudo na parte de trás do morrião. Porém, um “chapéu protector da cabeça” pode sofrer mudanças de estilo em épocas diferentes, posteriores à sua origem. Assim, neste caso especifico, do século XVII até ao século XIX, foi “moda” usar tais canudos ao lado e não mais na parte central por detrás do morrião. Ainda no século XIX, possivelmente para fazer um “brilharete” com as armas dos antepassados nalgum evento festivo, alguém se lembrou de substituir o canudo simples por um canudo triplo, para ali colocar penas em todos os três lados. Esta alteração faz parte da história da peça e demonstra o respeito que os descendentes pretendiam prestar ao morrião dos seus antepassados, com séculos. Ao incauto observador a presença do triplo canudo pode levar a classificá-lo como sendo um morrião do século XIX. Tal não é, porém, o caso porque, no século XIX, não se faziam morriões canelados, algo que apenas existiu no século XVI e até ao início do século XVII. Note-se, ainda, que há, na parte inferior do morrião, do lado esquerdo, surge um pequeno furo, a que ali falta o pino que normalmente existe, mas sempre ou com cabeça de tremoço ou de flor; aqui, porém, vê-se nitidamente a miniatura da cabeça de uma lança de combate. Como tais pinos de ataque existem a toda a volta do morrião, este possui, afinal, uma espécie de coroa de espinhos, tornando assim uma arma de defesa também numa arma de ataque. O morrião em análise tem de altura 24 cm e 38 de largura; pesa 2,450 kg! Na verdade, se esta cobertura de guerra e de cerimónia nos pudesse “falar” um pouco de tudo o que viu e de tudo em que participou, certamente poderia contar histórias bastante interessantes! Rainer Daehnhardt Belas, 10-01-2023 |
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