A “idade adulta do património”
Uma espécie de declaração (ou “statement”, dirão alguns). Aqui: https://www.publico.pt/2021/09/06/culturaipsilon/opiniao/idade-adulta-patrimonio-1976165 … E no texto abaixo
A “idade adulta do património”
Há momentos que impelem a fazer balanços, questionando-nos sobre percursos de vida. A passagem à reforma encontra-se tipicamente nesse caso e faço-o tomando emprestado o título de um livro de Patrice Béghain, com mais de duas décadas, onde enumerava a liberdade e a fraternidade como condições da adultícia patrimonial. Ambas fazem todo o sentido, mas requerem quem as cultive. Quatro condições ocorrem para o efeito. Vejamo-las. 1ª condição: Uma “sociedade civil” forte, exercendo activamente os seus direitos de cidadania.
Sou e sempre fui um defensor de um Estado forte, regulador do bem comum, combatendo o engano do chamado ‘liberalismo’ político, herdeiro do sistema oitocentista de baronetes. Porém, dito isto, considero também que a verdadeira democracia só existe quando as pessoas, individualmente consideradas e em grupo de interesses comuns, ou seja, as pessoas feitas cidadãos e as associações que constituam, tomam em mãos as suas causas, actuando de forma totalmente independente do Estado e sobretudo do seu aparelho, controlado pelos Governos e pelas lógicas da subserviência para garantia de lugares. Por isso, também na área do património cultural, entendo que a “idade adulta” só existirá quando tivermos pessoas livres no pensamento, na palavra e na acção, e um movimento associativo forte, exercendo energicamente os seus direitos de protesto e resistência cívica. Às vezes, a condição de cidadão militante da causa patrimonial, máxime de dirigente associativo, conduz a ter de prescindir, ou simplesmente retirar do expectável como projecto de vida, o desempenho de cargos oficiais, a frequência de salões sociais e o benefício das mordomais que de ambos decorrem. Paciência. É a vida. E a vida é tanto mais bela quanto mais livremente vivida. 2ª condição: Legislação de enquadramento e regulamentar, nacional e internacional
Não chega, todavia, para vivermos adultamente o património, ter cidadãos livres e associações fortes: precisamente porque atribuo importância ao papel regulador e potenciador do Estado, entendo que é crucial dispor de regras do jogo claras e respeitadas, tanto no plano internacional como no plano nacional. No plano nacional, temos um corpo legislativo superior magnífico. A Lei de Bases do Património Cultural Português, seja a de 1985, seja a actual, de 2001, dignificam-nos e dão conta da democracia avançada que construímos depois do 25 de Abril de 1074. Nenhuma outra equivalente, noutro país europeu ou fora da Europa, estabelece por exemplo o direito de “acção popular” em prol do património cultural, disposição que desenvolve princípio constitucional. Neste, como noutros casos, se alguma coisa nos falta não é, pois, legislação, mas algo mais básico: falta-nos vivência cidadã. As cartas, tratados e convenções do sistema da ONU, designadamente as da UNESCO, também existem e deveriam ser subscritas e eficazmente controladas na sua aplicação. Recorde-se por exemplo que a “velhinha” (1954) Convenção de Haia apenas foi subscrita por Portugal em 2000 e pelos EUA em 2009 (depois do escândalo do saque ao Museu Nacional do Iraque, feito sob controlo das tropas de ocupação americanas em Bagdade). Possa a mais recente Convenção de Faro (que tanto deve a Guilherme d’Oliveira Martins) desenvolver-se plenamente nos termos cidadãos que postula, criando nomeadamente as comunidades do património: uma verdadeira “idade adulta do património” poderia daqui emergir. Até lá, as leis, tanto as nacionais como as internacionais, aparecem aos olhos de muitos como um intrincado labirinto, piedoso às vezes, castigador dos fracos noutras, mas em grande medida inútil. E quem pode levar a mal que assim pensem os mais cáusticos (nos quais não me incluo, devo esclarecer)? 3ª condição: Políticas de Estado democráticas e “amigas” da memória e do património
Se temos boa legislação geral de enquadramento (ainda que apenas piedosa muitas vezes e depois mal servida por legislação de desenvolvimento), já o mesmo não podemos dizer das políticas de Estado, nomeadamente dos governos centrais. Seja qual for o indicador, estas revelam-se despontadoras. No plano do relacionamento com a chamada “sociedade civil” do sector existe quase sempre o sentimento de fortaleza ameaçada. Passadas as décadas imediatas ao 25 de Abril de 1974, acabaram-se com os órgãos de consulta do poder político e dos organismos da Cultura independentes e representativos. Para quem viveu a Revolução dos Cravos, os recuos verificados são quase ofensivos: políticos e altos dirigentes administrativos ouvem-se a si mesmos, em circuito fechado. Apenas têm medo da comunicação social, sendo que esta se entrega cada vez mais aos escândalos e faits divers. E assim se acrescentam pregos ao que os carentes de sidonismo e os saudosos de salazarismo desejariam ser “o caixão da democracia”. No plano das políticas activas de promoção patrimonial, e dos meios financeiros postos ao seu serviço, aí então, nunca verdadeiramente passámos da quase indigência. Não existe paralelo na Europa para a verdadeira e injuriosa miséria que os Governos investem em Património Cultural. Uma indecência, que nos envergonha. 4ª condição: Intelligentzia: capacidade de reflectir com seriedade e espírito crítico, sem concessões nem ao obscurantismo dos interesses instalados nem ao populismo
Não iludamos, porém, as responsabilidades que nos cabem a nós também, cidadãos e movimento associativo. Falta-nos com demasiada frequência a adultícia própria de quem estuda seriamente os assuntos, reflecte e exerce plenamente o seu espírito crítico. É tão fácil, mas afinal tão infantil, reclamar por tudo e contra todos, como se estivéssemos permanente em conversa de café… e é tão fácil também aceitar alegremente participar em encenações de suposta democracia, como são actualmente os conselhos consultivos do Governo na área do património cultural, onde os “bons espíritos” se encontram e cavaqueiam, sem cuidarem de saber que verdadeiramente não se representam senão a si próprios, aos amigos que encontram em vernissages ou aos poderes políticos que os nomearam – e que sempre souberam e saberão escolher dentro da esfera do que entendam ser tolerável. Não que os cidadãos ou o movimento associativo tenham de ter sempre na manga soluções técnicas para tudo o que acham estar mal. Não que tenham de ser façanhudos, irascíveis ou descorteses no convívio social. Nada disso: o problema é que temos de filtrar o sentimento do ”estar mal” com a reflexão profunda sobre o que está mal e porque está mal. E temos também de ser consequentes na nossa afirmação cidadã, recusando pactuar com encenações em que cada poder de turno lava as mãos com o seguinte. Espírito crítico e independência, pois, exigem-se de todos. Sem concessões nem ao obscurantismo dos interesses instalado, nem ao populismo do “bota abaixo” e das soluções fáceis. E exige-se sobremaneira aos dirigentes associativos, porque só assim seremos plenamente adultos. |
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