Daqui a 5 dias, no próximo dia 24 de setembro, farão 29 anos, que foi fundado o
Museu da Gestualidade. Foi aí que tudo começou.
As Colegas, com toda a razão, obrigaram-me a referi-lo em “Património, Cognição, e Evolução Humana”.
Partilho novamente o texto, no
Anexo PDF a esta mensagem, já com a devida menção.
Aproveitando, no pedaço de texto adiante, para prestar homenagem ao
saudoso Amigo, Professor Carlos de Jesus. Esperando que ele, lá do além, esteja a ver aonde a investigação acabou por chegar, no que se refere à hipótese para a “origem da linguagem e da escrita” que propus em 2004.
Pedro Manuel-Cardoso
…
[“Património, Cognição, e Evolução Humana”, 2022, pp.16-19]:
(....)
“Seja como for, volta a ser um caso (fenómeno) que coincide com as passagens entre os cinco níveis de complexidade formuladas no «modelo de compreensão do comportamento humano» –
Variáveis 1 a 5, mais o retorno-reinvestimento da variável 5 na
variável 1. E acrescenta, ao conhecimento vigente sobre a origem da linguagem e da escrita, as duas fases anteriores ao «aparecimento do Signo» – concretamente, a «deteção da Diferença», e a passagem «da Diferença
às Formas» (objetos, factos). Permitindo estabelecer um nexo de continuidade e causalidade entre os níveis biológico, social e cultural.
Em 1987 escrevemos o texto adiante, que posteriormente serviu para fundarmos em 24 de setembro de 1993 – fará daqui a cinco dias 29 anos – o
Museu da Gestualidade:
Museu da Gestualidade®
O Museu da Gestualidade é um projeto antropológico, museológico e patrimonial fundado por Isabel Maria Pereira, Maria Isabel Tristany e Pedro Manuel-Cardoso, tendo sido lavrada escritura notarial
em 24/09/1993 (RNPC em 26/07/1993), e publicado no Diário da República, III.ª série, n.º 68, de 22/03/1994.
O Museu da Gestualidade é um projeto antropológico (i.e., visa contribuir para conhecer a especificidade do ser humano, o modo como surgiu, e há-de evoluir) e museológico (i.e., visa contribuir
para estudar, preservar, e gerir o património gestual humano, de modo a poder ser transmitido às gerações vindouras prolongando a estratégia de vida eucariote).
A Gestualidade (isto é, os comportamentos e ações em que o uso do
corpo serve para comunicar) ainda que vivida e apresentada como sendo natural, constitui um produto bio-socio-cultural, um resultado epigenético, talvez mesmo um artefacto, em que convergem não apenas uma dimensão histórica e sociocultural transmitida
de geração em geração pela aprendizagem, mas também uma dimensão automática codificada, e ainda, uma expressão ritualizada anterior a
Homo sapiens sapiens. Varia com o local, a idade, o género, o momento, a circunstância, o estatuto, o papel, a etnia, a época, a cultura, o poder e a ideologia, e outras circunstâncias bio-socio-culturais. Mas também apresenta estruturas e sequências
codificadas que não se modificam com o contexto sociocultural ou ambiental, tal como as expressões das emoções básicas, a biomecânica dos movimentos automáticos do corpo, ou a simetria isomórfica em comportamentos ritualizados. Constitui um dos principais
instrumentos da construção cultural das “relações sociais”, sobretudo daquelas onde o corpo dos indivíduos não pode deixar de estar presente, ou, onde a imagem do corpo se torna imprescindível à relação e à comunicação.
No percurso histórico de todas as sociedades existe um modo peculiar de se construírem as interações sociais. Porém, só muito recentemente, a partir dos anos 1950/60, se passou a ter um conhecimento
científico sistemático sobre o sistema de modalidades gestuais (quinésico, táctil, proxémico, para-linguístico ou prosódico) utilizado nessas situações interativas e comunicativas. Esse sistema gestual é observável empiricamente, e exprime o modo como cada
individuo, comunidade e sociedade entram em contacto consigo mesmos e com o exterior de si próprios.
A Gestualidade, apesar de ser tão evanescente como uma imagem, pode ser tão dura como as pedras de um monumento, ou tão permanente como a materialidade de um fóssil. Por detrás da sua aparente
efemeridade, protegido pela frequência de uso, desvalorizado pela proximidade, existe um
processo social – muito mais perene do que a perceção deixa entrever. E que permanece, ainda, um Património esquecido. E, em Portugal, pouco investigado de forma sistemática na sua significação antropológica. Afinal, como referiu Vitorino Magalhães Godinho
em 1985: “vamos dirigir-nos a um povo cujas formas de criação passam quase sempre mais pela oralidade e pela gestualidade do que pela mensagem escrita e pela leitura”. Essa etno-géstica, de primordial importância para o estabelecimento concreto das
relações sociais, constitui o objetivo deste projeto antropológico e museológico.
Isabel Maria Pereira, Maria Isabel Tristany
& Pedro Manuel-Cardoso (1987)
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Em 2004, há dezoito anos, quando apresentámos na Universidade Nova de Lisboa (FCSH) a candidatura ao doutoramento em antropologia, com o título “Contributo para o estudo antropológico dos comportamentos não-verbais
na comunicação em Portugal”, tínhamos por objetivo, exatamente, investigar essa relação entre as «formas do comportamento humano» e a linguagem. A Candidatura, com a hipótese e a metodologia de investigação, foi aceite. Não prosseguimos o
trabalho devido ao falecimento do Orientador que escolhemos, e que tinha aceite orientar esse nosso trabalho. Referimo-nos ao saudoso Amigo, Professor Doutor Carlos M. de Chagas Henriques de Jesus (doutorado pela Universidade de Cambridge/UK em
Fisiologia animal e Biofísica; Guggenheim Fellow na Universidade de Harvard, onde trabalhou com Noam Chomsky, Edward O. Wilson e René Thom; Investigador no Instituto Gulbenkian de Ciência; com mais de uma dezena de artigos publicados no “Journal
of Physiology” e no “Journal of Experimental Biology”).
Não prosseguimos a investigação, nessa época, por considerarmos que não havia em Portugal mais ninguém com competência para nos orientar nessa pesquisa. Alguém que tivesse trabalhado em Harvard diretamente com
Noam Chomsky e Edward O. Wilson. Porém, a metodologia de investigação que propusemos nesse projeto continuou a ser investigada e aprofundada. E registámo-la legalmente em
Direitos-de-Autor em 11 de março de 2013 (Registo n.º 2101/2013, IGAC, referência
1167/DLPI/RO).
Nesse ano de 2004, no dossier de candidatura ao referido doutoramento na Universidade Nova de Lisboa, escrevemos:
“Over the past three decades there has been a growing recognition that the study of
GESTURE --- visible bodily action that plays a role in explicit communication --- promises to throw much light on a range of issues that are central for any understanding of language (broadly conceived), and for an understanding of communication
processes in human interaction” (Müller, C., Freie Universităt Berlin, 2004)
“The discovery of the importance of non-verbal communication has transformed the study of human social behaviour” (Argyle, M., Cambridge University, Mass., USA, 1979)
Durante muito tempo em ciências sociais e humanas (antropologia, sociologia) prevaleceria a tese de que a linguagem teria sido uma invenção humana – tal como a escrita, ou a arte. A origem da linguagem
deveria ser procurada na lógica e nos fundamentos da organização social, e não tanto nas capacidades de um cérebro individual (Lévi-Strauss, 1970). Esta
tese culturalista seria atualizada por William Noble e Lain Davidson (1996). Todavia Steven Pinker, dando continuidade à perspectiva inatista de N. Chomsky, haveria de apresentar uma tese contra-intuitiva na qual a linguagem teria tido origem numa capacidade
“biologicamente programada” (1994). Este impasse entre as teses culturalistas e as
teses inatistas manteve-se sem solução até à actualidade.
Merlim Donald (1997) proporia a hipótese de uma origem mimética da linguagem, que se teria desenvolvido desde
Australopitecus. Michael C. Corballis (2001), da Universidade de Auckland (Nova Zelândia), proporia a tese de uma origem gestual da linguagem, que teria já sido utilizada em
Homo erectus. O linguista Derek Bickertom (1997) proporia, também desde
Homo erectus, a tese da existência de uma espécie de protolinguagem, que teria sido a fôrma que teria moldado a linguagem actual. Terrence Deacon (1997) proporia uma tese intermédia, segundo a qual, algures durante o processo de
hominização, teria ocorrido um processo de coevolução da linguagem e do cérebro.
Em 2001, Laura Petitto e os seus colegas da Universidade Mcgill em Montreal (Canadá) mostraram por “imagens cerebrais”, utilizando as técnicas
PET (tomografia por emissão de positrões), que as zonas que se acreditava estarem apenas especializadas no processamento auditivo da linguagem (sons) também se ativavam quando os surdos-mudos comunicavam por “gestos”. Duas interpretações passaram a poder
ser deduzidas destes resultados: 1. Ou as capacidades de processamento da linguagem eram independentes do canal sensorial, confirmando no cérebro uma estrutura inata propriamente linguística.
2. Ou, ao invés, o cérebro seria especializado no “tratamento de imagens complexas”, quer fossem construídas através de sons ou através de gestos.
A confirmar-se esta última hipótese, não apenas a “linguagem verbal”, mas também a “linguagem não-verbal”, poderiam estar ambas implicadas na origem da linguagem humana. Abrindo-se
novas perspetivas de investigação, eventualmente, capazes de resolverem esse impasse entre geneticistas e culturalistas.
Esta mudança foi decisiva para nós. Por confirmar e revalorizar a importância das investigações em
gestualidade e comunicação não-verbal. E decisiva, também, para a formulação da
Hipótese que orientou este trabalho de investigação. Pois esses resultados sugerem que a função do cérebro na comunicação utiliza quaisquer fragmentos (sejam gestos, sons, ou quaisquer outros canais sensoriais-perceptivos) para construir
representações (imagens ou formas), para depois poder associá-las a um sentido-significado aprendido socialmente.
[Facto que se veio a confirmar, como se poderá constatar no «Quadro I –
Modelo de compreensão do Comportamento humano, e sua Evolução», na coluna da
Variável 2 (cognição), na referência bibliográfica: “Cérebro”, 2019, Fundação Calouste Gulbenkian, ISBN 978-989-8807-40-3].
Assim, o contributo deste trabalho advirá, após investigar determinadas configurações gestuais, se foram ou não constitutivas de um processo de
comunicação socialmente repetido e institucionalizado, transformando-se em “unidades elementares” (signos) para um nível codificado do comportamento humano. Fá-lo-á numa
amostra e num contexto interativo bem delimitados, concretamente, observando os «comportamentos gestuais de dar-início e pôr-fim às relações inter-individuais face-a-face no quotidiano», tendo em consideração as diferenças provocadas pelo
género, idade e grau de descontinuidade física nessas inter-relações.
Pedro Manuel-Cardoso, 2004, Universidade Nova de Lisboa / FCSH.
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