PÚblicO
OPINIÃO
Restos humanos em museus: um tema complexo em que importa reflectir
A averiguação feita pelo Washington Post sobre uma pequena parte da colecção de mais de 30 mil restos humanos da Smithsonian recoloca este assunto na agenda. Acresce que nestes domínios sensíveis do acesso ao estudo do humano se tende muito facilmente a ficar prisioneiro de posturas obscurantistas, aquelas que até ao século XVI na Europa interditavam a dissecação de cadáveres e impedem ainda hoje as escavações de necrópoles de época islâmica nos países árabes (autorizando em todo caso as de época romana e promovendo até grandes paradas de múmias de faraós) – uma deriva reacionária que se encontra em franca expansão noutras latitudes, como por exemplo recorda Crispin Paine, no seu já clássico ensaio sobre "Objectos religiosos em museus", referindo-se à Índia: “a religião – geralmente nas suas formas mais triunfalistas e intolerantes – está em ascensão e é o secularismo que se sente cercado; o ethos secularista sobre o qual a nação foi construída parece ameaçado pelo fundamentalismo religioso... Como resultado, alguns secularistas passaram a ver os museus como bastiões da razão contra as forças da irracionalidade”.
Nada é simples nesta problemática. E disso se dão conta todos os documentos, textos legais, regulamentos internos e cartas de boa-prática profissional que conformam a actuação dos investigadores, especialmente nos museus. Quanto a estas, o ICOM possui um Código Deontológico que dá especial atenção ao assunto. Nele se estabelece que a conservação, estudo e exposição de restos humanos e materiais de significado sagrado deve ser feita com “cuidado e respeito” (ponto 2.5) ou “grande tacto e respeito pelos sentimentos de dignidade humana tidos por todos os povos” (4.5), devendo actuar-se “de acordo com padrões profissionais e, quando conhecido, tendo em conta os interesses e crenças dos membros da comunidade, grupo étnico ou religioso do qual os objectos tenham origem” (4.3.; cf. também 3.7 e 4.4, neste caso para efeitos de retirada de exposição e/ou devolução “às origens”).
Já no plano legal e regulamentar cumpre assinalar, entre muito outros possíveis, o exemplo inglês, onde existem diversos museus com colecções de restos humanos, algumas muito vastas, a maior parte de origem universitária, como é o caso do Pitt-Rivers, da Universidade de Oxford, ou dos dois Hunterianos, o da Universidade de Glasgow e o do Real Colégio dos Cirurgiões, em Londres (este recentemente reaberto), museus que nos últimos anos promoveram reflexões aprofundadas acerca destas colecções, dando origem a declarações de princípios (veja-se a do Hunteriano de Glasgow), todas sujeitas ao já antigo (2004) “Human Tissue Act” e às disposições entretanto emanadas da Autoridade que o promove e aprofunda (ver por exemplo, as orientações para exposição de restos humanos). Em todos, é determinado um tratamento diferenciado para restos humanos recolhidos ou datados de há mais ou há menos de em 100 anos, uma fronteira arbitrária, por certo, mas indeclinável. Os mais antigos, todos eles, caiem no domínio do científico, independentemente da maior ou menor validade dos paradigmas que lhes deram origem: podem ser objecto de estudo e exposição, dentro das condições de respeito e dignidade que os códigos deontológicos recomendam. Os mais recentes carecem de consentimento dos próprios, em vida, ou dos seus familiares, após a morte.
Consentimento pessoal, mais do que subjugação a práticas mágicas ou religiosas e normativos culturais, é o conceito-chave essencial, porque aquilo que numa região é saudado como respeito indigenista, noutra é considerado fundamentalismo religioso. E o mais burlesco, é que esta dupla avaliação é assumida com frequência pelas mesmas pessoas, normalmente “activistas” grávidos da procura de causas justas.
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