Colegas
Estou chocada. Não é figura de estilo, estou verdadeira e intensamente chocada.
Alguma coisa está verdadeiramente errada neste país se:
· Se tem direito, por se ser proprietário de umas terrazinhas por aí, de usurpar o povo do que legitimamente lhe pertence, os bens arqueológicos;
· Se recuperam ilicitamente bens arqueológicos, podendo de seguida vendê-los;
· Se merece elogio, quer por se destruir o património, quer por se aceitar ?ganhar menos? para que os bens permaneçam no país.
Está tudo mal, tudo bem mal!!!
Não compreendo qual a base jurídica para uma decisão destas. Quem defendeu o interesse público, nesta acção em tribunal?
Não compreendo a complacência perante este ?achado fortuito?, quando a mim me parece que de fortuito não tem nada? Parece-me um paternalismo indecoroso. Não defendo perseguições de espécie alguma, defendo a pedagogia de que está certo. Recuperar ilicitamente bens arqueológicos, com ou sem recurso a detectores de metais, está errado e também é ilegal. É usurpar esse bem ao seu legítimo detentor, todos nós. Como é que um bem ilegitimamente recuperado é normalmente transaccionado? E em nome de que ganho? O ganho de ficar em Portugal? Eu sou portuguesa e por mim, discordo desta abordagem.
Mas o cúmulo é o desenlace final? quem realmente ganha, a quem realmente o Estado paga, a quem o Estado confere direito, razão, é ao proprietário das terras onde os objectos foram recuperados. Estes objectos da Idade do bronze pertencem tanto ao proprietário daquelas terras, como o ar que paira sobre elas? Que vergonha, que vergonha!!! Eu já nem falo nas especiais responsabilidades que pelos menos um dos proprietários deveria assumir (a crer na notícia do público).
Eu não creio que o enquadramento jurídico português valide de alguma forma esta situação, tal como vem descrita na comunicação social. Mas se por um acaso, valida, TEM DE SER ALTERADO!
Eu pronuncio-me pela clarificação na Lei do princípio que deve ser indiscutível e definitivamente expresso: os bens arqueológicos pertencem a todos, a toda a Humanidade, sempre.
Eu pronuncio-me pela obrigação cívica de relato e entrega às autoridades competentes de qualquer bem arqueológico achado fortuitamente. E pronuncio-me pelo elogio público destes actos, verdadeiro exercício de cidadania avançada.
Eu pronuncio-me pelo desenvolvimento de acções de informação, sensibilização e formação cívica contra a recuperação ilegal de bens arqueológicos, actos que devem merecer repúdio social.
Eu pronuncio-me pela adequada fiscalização e promoção do cumprimento da Lei.
Eu pronuncio-me a favor do fim da legislação de recompensa, seja ela qual for, por entrega ao Estado de achados fortuitos, que funciona com incentivo à recuperação ilegal de bens arqueológicos.
Eu pronuncio-me pela condenação de qualquer acto que destrua contextos arqueológicos e que resulte na recuperação de objectos fora do âmbito da actividade arqueológica legalmente desenvolvida.
Eu pronuncio-me e perfilo-me contra os poderosos de sempre, os que ganham sempre, os que nos ganham sempre e a todos, os que nos usurpam, sempre.
E já agora, a propósito do texto de Luís Raposo, no Público: os funcionários que no decurso das suas funções relataram e informaram sobre estes acontecimentos, como aliás era sua estrita obrigação, são as elites? Como assim? Ao cumprir a sua função apenas ganharam dissabores. Outro ganho, não tiveram. Não compreendo qual a sua culpa, ou sequer o que poderiam ter feito diferente. Ignorar? Olhar para o lado? Ser superiormente complacentes? Facilitar a venda? Abrir um procedimento de fixação de recompensa quando tudo, mesmo tudo (até o relato publicado no Publico agora), indicava que o achado não tinha sido fortuito?
Eu diria que os arqueólogos deviam estar todos de acordo numa situação destas. Não deveria haver qualquer dúvida. Se nem para nós o assunto é claro, como poderá ser para o todo social? É nossa obrigação clarificar, criar normas inequívocas a este respeito. Espero que o consigamos, pois se assim não for, falhámos redondamente na nossa tão apregoada função social.
Jacinta Bugalhão