[Archport] Menino do Lapedo fez mudar a História
CORREIO DA MANHÃ
Reportagem
2008-01-05 - 00:00:00
Descoberta
Menino do Lapedo fez mudar a História
Carlos Ferreira
Tinha os olhos grandes e expressivos, o rosto arredondado e o cabelo liso e
comprido. Era assim o Menino do Lapedo, de quatro anos e meio de idade, cujo
esqueleto foi descoberto no Vale do Lapedo, em Leiria, e desencadeou uma acesa
discussão científica sobre a evolução da espécie humana.
A reconstituição facial foi feita por um especialista em efeitos especiais de
Hollywood e estará em exposição, a partir de hoje, no Centro de
Interpretação Abrigo do Lagar Velho, em Santa Eufémia, concelho de Leiria.
Com a abertura deste núcleo museológico, a Câmara de Leiria pretende lançar
os alicerces para um projecto mais ambicioso: "Transformar o Vale do Lapedo
num parque natural e criar um centro de investigação arqueológica para
aprofundar os estudos sobre o Paleolítico Superior em Portugal", refere o
vereador Vítor Lourenço.
A importante descoberta aconteceu em Novembro de 1998 e, desde então, tem
despertado o interesse dos mais conceituados arqueólogos e antropólogos
mundiais. A sepultura paleolítica é a única encontrada na Península
Ibérica e o esqueleto, com 24 500 anos, era também o único - à data das
escavações - achado na Europa.
Se estas características eram já relevantes para os cientistas, o facto de se
estar perante uma criança mestiça catapultou o assunto para o centro de um
intenso debate sobre a evolução do Homem.
Até à descoberta do Menino do Lapedo, já havia antropólogos a defender a
existência de hibridismo entre o homem de Neandertal (Homo Neanderthalensis) e
o homem Moderno (Homo Sapiens).
Os dois grupos coexistiram milhares de anos no espaço e no tempo, mas os
investigadores nunca chegaram a consenso sobre a ligação entre ambos. Uma
corrente defende que os neandertais desapareceram sem se cruzar com os humanos
modernos e sem deixar descendência. A outra é da opinião que as duas
espécies se cruzaram e procriaram. A descoberta do esqueleto do Menino do
Lapedo veio dar razão a esta última tese, a da miscigenação.
Para o norte-americano Erik Trinkaus, considerado um dos melhores especialistas
da área da biologia e evolução Neandertal, os vestígios não deixam
dúvidas. O menino tinha as pernas curtas, como os neandertais e as ancas
estreitas como os homens modernos. E possuía queixo, uma característica do
homem moderno inexistente nos neandertais. Os ossos acima dos olhos e das
maçãs do rosto também são idênticos aos do homem de Neandertal. Enquanto o
tórax, os braços e grande parte do crânio revelam semelhanças com os homens
modernos.
Apesar destes dados, revelados após anos de estudo e exames aos restos mortais
do Menino do Lapedo, há antropólogos que continuam a não aceitar a teoria da
miscigenação. Mas Erik Trinkaus é pragmático na abordagem ao tema. "A
questão já não é saber se houve mistura, mas em que grau ela ocorreu",
afirma o antropólogo da Universidade de Washington (EUA).
João Zilhão, que era director do Instituto Português de Arqueologia em 1998 ,
tem a mesma opinião. "Já foi provado que espécies próximas, como
chimpanzés e bonobos ou mesmo espécies de babuínos que pertencem a géneros
diferentes podem acasalar e produzir descendentes férteis", frisa o
arqueólogo, agora docente na Universidade de Bristol, no Reino Unido.
Segundo os dois especialistas, o esqueleto encontrado no Vale do Lapedo explica
com clareza uma parte da História da humanidade. Ao deixarem a África para
colonizar a Europa, os humanos modernos não exterminaram os antigos habitantes
do continente, como anteriormente se pensava, mas misturaram-se com eles.
E é esta página do passado que se pretende dar a conhecer melhor, no Centro de
Interpretação do Lagar Velho. Além do rosto, criado com base em técnicas
forenses por Brian Pierson - um especialista em efeitos especiais que
trabalhou em filmes como o 'Titanic' ou 'Alien' - será possível ver
uma réplica do esqueleto, vários artefactos e a reconstituição dos abrigos
pré-históricos.
RECONSTITUIÇÃO FEITA COM BARRO
A reconstituição do rosto do Menino do Lapedo começou com a reconstrução do
crânio através da técnica de prototipagem rápida. Seguiu-se o preenchimento
da parte muscular com barro e a moldagem do rosto, também em barro. A partir
deste molde foi criado o modelo final, em silicone, para ficar mais parecido
com a pele humana.
NÚCLEO MOSTRA VIDA HÁ MAIS DE 20 MIL ANOS
O núcleo museológico do Abrigo do Lagar Velho, que hoje abre ao público em
Santa Eufémia, Leiria, visa dar a conhecer os resultados dos trabalhos
arqueológicos no Vale do Lapedo e a sua contextualização na evolução
anatómica do Homem.
O Centro de Interpretação é composto por dois módulos pré-fabricados, está
instalado num terreno cedido por um particular (Adriano Faria Gaio) e dá acesso
a um pequeno percurso pedestre que permite a observação do vale.
Num dos módulos, foi criada uma linha cronológica dos vestígios e afixado um
conjunto de imagens sobre os aspectos naturais do Lapedo. Através destes
elementos, é possível compreender algumas das características da vida do
abrigo e recuar entre 20 a 30 mil anos para ficar a conhecer as diversas fases
da pré-história já detectadas.
No segundo espaço estará uma réplica da sepultura do Menino do Lapedo, com um
esqueleto feito através de impressão tridimensional pela Escola Superior de
Tecnologia e Gestão de Leiria (ESTG). É aqui que será exposto também o
rosto do menino, criado por Brian Pierson, o artista de efeitos especiais que
trabalhou mais de dez anos em Hollywood e se especializou em reconstituições
com técnicas forenses.
Os painéis informativos centrar-se-ão na explicação do ritual fúnebre e nas
características do esqueleto que impulsionaram a tese da miscigenação.
ESTUDANTE FEZ A DESCOBERTA
A descoberta do Menino do Lapedo mudou por completo a vida de Pedro Ferreira. O
jovem efectuava uma prospecção para o trabalho final da licenciatura em
História do Património, em Outubro de 1998, e encontrou um abrigo com
pinturas da Pré-história recente. Entusiasmado, informou o professor da
Universidade de Évora, mas este não lhe deu crédito: "Achou que as
pinturas não eram reais".
Pedro Ferreira recusou cruzar os braços e contactou com técnicos do Instituto
Português de Arqueologia (IPA), um organismo agora integrado no Instituto de
Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar). Os
arqueólogos confirmaram a autenticidade das pinturas (com 2500 a 4500 anos),
fizeram uma incursão ao lado oposto do vale e descobriram mais vestígios de
ocupação Pré-histórica.
Uma máquina retroescavadora tinha estado a movimentar terras, deixando a
descoberto um osso humano, de criança, com indícios de ritual funerário.
Logo que teve o primeiro contacto com o achado, o arqueólogo João Zilhão
percebeu de imediato que estava perante uma das mais importantes descobertas
paleontológicas. Em duas semanas, mobilizou a sua equipa e accionou uma
escavação de emergência. Pedro Ferreira foi convidado a participar nos
trabalhos de registo e levantamento. E nunca mais se desligou do processo.
Acabou o curso, ingressou na Câmara Municipal de Leiria como Técnico Superior
de Património, e foi o responsável pelo projecto museológico do Centro de
Interpretação do Abrigo do Lagar Velho.
Alcançado o desejo de dar a conhecer ao público a importância arqueológica
do Vale do Lapedo, Pedro Ferreira, agora com 33 anos, acalenta outro sonho:
"Ver o local classificado como monumento nacional".
VALE REÚNE POTENCIALIDADES PARA MUITOS ANOS DE TRABALHO
O vale onde foi descoberto o esqueleto do Menino do Lapedo "é um diamante em
bruto" para os arqueólogos e antropólogos, afirma o comissário científico
para a criação do Centro de Interpretação Abrigo do Lagar Velho, Francisco
Almeida.
Segundo o arqueólogo do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e
Arqueológico (Igespar), "há trabalho para mais de 200 anos", no Vale do
Lapedo e nos vales mais próximos.
A riqueza dos vestígios recolhidos até este momento revela isso mesmo. Só no
abrigo onde foi enterrada a criança, há sinais de ocupação humana por um
período de 10 mil anos.
Através dos achados, os cientistas concluíram que o menino foi envolto numa
mortalha de pele, pintada a ocre. No peito, ostentava um colar com uma concha e
na cabeça tinha uma pequena cinta com dentes de veado. A seu lado foi colocado
um filhote de coelho, como último presente. Os vestígios revelaram ainda que
o abrigo recebeu pelo menos mais quatro ocupações humanas. "Dois
acampamentos temporários e dois acampamentos base", explica Francisco
Almeida.
Pela quantidade e diversidade dos indícios, foi possível descobrir também a
fauna, a flora e as condições climatéricas que existiam nessa época.
NOTAS
VISITA GUIADA MARCA ABERTURA
O programa da inauguração do Centro de Interpretação inicia-se hoje, às
10h30, com uma visita guiada ao Vale do Lapedo. Segue-se a abertura oficial do
núcleo museológico, às 12h00. Da parte da parte, a partir das 15h00,
realiza-se uma conferência no Instituto Politécnico de Leiria com oradores
portugueses e norte-americanos.
MUSEU PROCURA CAPTAR TURISMO
O Centro de Interpretação do Vale do Lapedo vai servir como ponto de
atracção turística ao concelho de Leiria. Para isso tem o apoio da Região
de Turismo Leiria-Fátima
CONFERÊNCIA DEBATE ACHADO
Erik Trinkaus, João Zilhão e Brian Pierson, peritos mundiais em arqueologia e
antropologia, participam hoje numa conferência, às 15h00, no Instituto
Politécnico de Leiria
CONCELHO ARQUEOLÓGICO
O concelho de Leiria tem características únicas no País em termos
arqueológicos. Tem identificados perto de 70 sítios com interesse para a
arqueologia
150 MIL euros foi o investimento feito pela Câmara Municipal de Leiria na
criação do Centro de Interpretação, co-financiado pelo Programa Leader.
TESTEMUNHO PENDURADO
Os arqueólogos acharam uma faixa de sedimentos com 60 cm de espessura, no
abrigo do Lagar Velho. Ali foram recolhidos mais de 32000 vestígios
ESQUELETO BEM GUARDADO
O esqueleto original do Menino de Lapedo está guardado no Instituto de Gestão
do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar), em Lisboa
ENTERRAMENTO COM RITUAL
As escavações revelaram que no Paleolítico Superior Inicial uma criança de
quatro anos já era objecto de um complexo ritual funerário composto por
várias fases
ARTEFACTOS FEITOS EM PEDRA
Junto a uma das lareiras encontradas no abrigo foram recolhidos mais de 600
artefactos líticos. Os vestígios revelaram a existência de três áreas de
talhe da pedra
OSSOS REVELAM TIPO DE FAUNA
Os ossos retirados da Lareira da Fauna indicam que os antepassados comiam veado,
cabra montês, corso, camurça, boi selvagem, lobo, raposa, lince, coelho e
moluscos
1998 foi o ano da descoberta dos primeiros vestígios do Menino do Lapedo
RECONSTITUIÇÃO
A forma de vida das comunidades Pré-históricas que ocuparam os abrigos do Vale
do Lapedo foi recriada em duas maquetas que estão expostas no Centro de
Interpretação. Há uma zona onde eram tratados os animais caçados e outra
onde eram feitos os artefactos em pedra.
MUSEU
O Centro de Interpretação do Lagar Velho, em Santa Eufémia, vai ter entrada
gratuita pelo menos até ao final deste mês. O horário de abertura ainda não
está completamente definido, mas tudo indica que funcionará dentro do normal
dos museus, inclusive ao fim-de-semana. À segunda-feira deverá encerrar.
Francisco Pedro