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[Archport] Arqueologia e arqueólogos

Subject :   [Archport] Arqueologia e arqueólogos
Date :   Mon, 7 Jan 2008 11:09:52 +0000


"Qualquer um consegue ser arqueólogo,...o tradicional arqueólogo tem uma formação deficiente em todas as áreas científicas à excepção da história. Mais uma vez repito que para saber de história basta saber ler, para saber escavar basta saber ver."

Afirmações como esta revelam, de facto, que a imagem da Arqueologia Portuguesa atingiu um ponto extraordinariamente negativo. Quando a ignorância se permite falar nestes termos sobre uma disciplina (ou duas), ela (a ignorâcia) não pode ser a única responsabilizada pelo absurdo das suas afirmações. Muitos arqueólogos e licenciados em arqueologia têm fortes responsabilidades na progressiva falta de respeito que a disciplina e a profissão vão adequirindo junto de profissionais (ou curiosos) de outras áreas.

Seria interessante começar por pensar o que é uma disciplina científica. Não é uma essência, que existe fora das dinâmicas dos processos de conhecimento e da sua sociologia. Os campos diciplinares nascem no âmbito de processos de aprofundamentodo conhecimento em campos disciplinares mais vastos ou no âmbito de áreas de intercepção disciplinar. Mas nascem também devido a sociologia da ciência, ou seja, à forma como esta se institucionaliza e organiza (e que é diferente de país para país), às regras por que se regem as carreiras académicas (o nascimento de uma área diciplinar numa faculdade não é alheia aos desejos e ambições dos académicos, nem às dinâmicas de poder na interior das universidades, de acesso a funaciamentos, etc.) . Nascem também de estímulos que vêm da sociedade civil (sobretudo nos países em que esta se encontra mais articulada com o mundo universitário). A existência de um campo disciplinar é pois o resultado de dinâmicas históricas concretas e o caso da emancipação da Arqueologia na academia portuguesa é disso um exemplo claro.
Há 25 anos não havia graduações académicas nesta área disciplinar que, na academia, estava ligada à História (na prática estava também tradicionalmente muito ligada à Geologia). Nessa altura era Arqueólogo quem praticava arqueologia. O título estava mais ligado à prática que à origem em termos de formação, que podia ser muito variada. Mas a sitruação mudou nos últimos 25 anos e muito. A Arqueologia ganhou estatuto na Administração, departamentalizou-se nas Universidades, cresceu nas autarquias, apareceu um mercado e as empresas emergiram, a disciplina tonou-se menos monolítica do ponto de vista teórico e metodológico. A formação específica e uma profissão (com estatuto próprio) desenvolveram-se. Naturalmente, isso teve consequências nas regras de acesso ao exercício profissional neste âmbito disciplinar, agora reguladas por normativos consagrados na lei.
Estamos, pois, a viver um momento de transição, onde convivem arqueólogos que se formaram no âmbito das antigas práticas e arqueólogos formados na organização mais recente. Vivemos também uma situação em que a tradicional investigação individual dá lugar ao trabalho em equipa de âmbito transdisicplinar. Estas situações podem gerar alguns equívocos junto de pessoas que não procuram ter um perspectiva do processo e se centram apenas no estádio actual e que têm uma visão estática dos campos disciplinares e das suas dinâmicas de vida e reprodução. É natural que, como noutras áreas disciplinares, a vertente profissional da Arqueologia só possa ser desempenhada por quem tem formação específica nessa área.

Quanto à especificidade de se ser Arqueólogo, permitam que me cite em texto recentemente publicado:

"Mas existirá uma racionalidade própria do arqueólogo ?

“Daqui a suposição, na filosofia contemporânea, de “formas de pensamento” que suportam a actividade de conhecimento que lhes é correspondente. (...) Aquilo a que a psicologia chamava tendências, sem precisar o conteúdo do que por tal entendia, tem hoje uma designação mais precisa e mais fecunda, pelo menos nos problemas da epistemologia. E a pedagogia actual sabe que é muito mais importante criar e desenvolver uma certa forma de pensamento do que transmitir o tipo de conhecimento que lhe é correspondente.”

(Santos, 1982: 247 – escrito em 1939)


Na sua especificidade, o arqueólogo estabelece relações com as materialidades (num sentido lato, que abarque do objecto à paisagem) que as comunidades humanas produziram e que chegaram, de forma mais ou menos truncada e alterada, até nós. Nessa relação com materialidades parece, por vezes, estar próximo do físico, do geólogo, do geomorfólogo e até, no que respeita aos vestígios orgânicos, do botânico e do zoólogo. Essa vinculação às materialidades, que é, em meu entender, a primeira de todas as particularidades que a Arqueologia revela relativamente à História, até conduziu a um relacionamento privilegiado com investigadores daquelas áreas, o qual continua em aprofundamento. Mas essa particular relação com as materialidades não se confunde com a relação estabelecida pelo físico ou pelo geólogo, pois o arqueólogo trabalha no âmbito de uma dupla hermenêutica. Ao contrário daqueles, as suas materialidades estão imbuídas de sentidos para além dos seus (dos do “observador”). As materialidades do arqueólogo são materialidades sociais e não simplesmente físicas. Estranho é, pois, que as suas relações interdisciplinares com as Ciências Sociais nem sempre apresentem o mesmo ênfase que as anteriores.
Mas se a investigação arqueológica apresenta a especificidade da dupla hermenêutica relativamente a outras abordagens à materialidade, também não se liga de forma simples às restantes Ciências Sociais, pela simples razão de que lhe falta o “Homem em carne e osso” e lhe falta o seu “discurso directo”: o que o Homem escreveu sobre a forma como via as coisas, sobre a sua perspectiva das intenções que o moviam e sobre os sentidos que atribuía a essas coisas. Os vestígios escritos, associados aos materiais, permitem estabelecer um outro tipo de relação inter-subjectiva entre presente e passado, um outro tipo de diálogo, mais estreito e elucidativo.
O Arqueólogo encontra-se, assim, pela natureza das suas “fontes” disciplinares, numa espécie encruzilhada, onde materialidades e sentido social se cruzam, encontrando aí a sua grande especificidade, a sua particular área de actuação. A Arqueologia em geral, e a Pré-Histórica muito em particular (porque não lida nunca com escrita formalizada), tem na relação do ser Humano com as suas materialidades o seu potencial de contribuição para a aventura do conhecimento, o qual nem sempre é convenientemente aproveitado.
(...)
A Arqueologia tem um ângulo específico de abordagem ao fenómeno social, o qual lhe proporciona o desenvolvimento de formas de pensamento específicas que se geram no aprofundar dessa temática, dessa perspectiva, e que devem ser valorizadas nas relações interdisciplinares e sociais em geral que a Arqueologia estabelece. O arqueólogo deve assumir e trabalhar a sua especificidade disciplinar.
        Não se trata aqui de promover uma qualquer forma de pensamento acantonado, encerrado sobre os particularismos do seu objecto e desprezar a necessidade de um relacionamento transdisciplinar ou, ainda menos, divergir de um movimento de alargamento da transversalidade de conhecimentos (o que é diferente de uma pretensa abolição de campos disciplinares, que penso destituída de sentido).
(...)
 Argumenta-se, apenas, que o problema do conhecimento e da sua organização disciplinar se joga, tal como no jogo das identidades, na relação a partir de uma posição, de uma situação (neste caso disciplinar) que é a nossa e cuja principal contribuição para o todo é manter a sua “personalidade” e dinâmica. Não interessa aos arqueólogos, nem a ninguém, que eles se transformem em físicos, químicos, geólogos, antropólogos, sociólogos, etc. Interessa a todos que os arqueólogos se mantenham arqueólogos, pois é aí que reside a originalidade e o potencial particular da sua contribuição. Assumir a especificidade do seu objecto e das formas de pensamento que se lhe geram associadas, numa permanente situação relacional em rede, aberta e dinâmica, com as outras áreas de conhecimento e com o seu contexto social global, é o nosso desígnio de investigadores em Arqueologia.

António Carlos Valera

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