"Mas existirá uma racionalidade
própria do arqueólogo ?
“Daqui a suposição, na filosofia
contemporânea, de “formas de pensamento” que suportam a actividade de
conhecimento que lhes é correspondente. (...) Aquilo a que a psicologia
chamava tendências, sem precisar o conteúdo do que por tal entendia, tem
hoje uma designação mais precisa e mais fecunda, pelo menos nos problemas
da epistemologia. E a pedagogia actual sabe que é muito mais importante
criar e desenvolver uma certa forma de pensamento do que transmitir o tipo
de conhecimento que lhe é correspondente.”
(Santos, 1982: 247 – escrito em 1939)
Na sua especificidade, o arqueólogo
estabelece relações com as materialidades (num sentido lato, que abarque
do objecto à paisagem) que as comunidades humanas produziram e que chegaram,
de forma mais ou menos truncada e alterada, até nós. Nessa relação com
materialidades parece, por vezes, estar próximo do físico, do geólogo,
do geomorfólogo e até, no que respeita aos vestígios orgânicos, do botânico
e do zoólogo. Essa vinculação às materialidades, que é, em meu entender,
a primeira de todas as particularidades que a Arqueologia revela relativamente
à História, até conduziu a um relacionamento privilegiado com investigadores
daquelas áreas, o qual continua em aprofundamento. Mas essa particular
relação com as materialidades não se confunde com a relação estabelecida
pelo físico ou pelo geólogo, pois o arqueólogo trabalha no âmbito de uma
dupla hermenêutica. Ao contrário daqueles, as suas materialidades estão
imbuídas de sentidos para além dos seus (dos do “observador”). As materialidades
do arqueólogo são materialidades sociais e não simplesmente físicas. Estranho
é, pois, que as suas relações interdisciplinares com as Ciências Sociais
nem sempre apresentem o mesmo ênfase que as anteriores.
Mas se a investigação arqueológica
apresenta a especificidade da dupla hermenêutica relativamente a outras
abordagens à materialidade, também não se liga de forma simples às restantes
Ciências Sociais, pela simples razão de que lhe falta o “Homem em carne
e osso” e lhe falta o seu “discurso directo”: o que o Homem escreveu
sobre a forma como via as coisas, sobre a sua perspectiva das intenções
que o moviam e sobre os sentidos que atribuía a essas coisas. Os vestígios
escritos, associados aos materiais, permitem estabelecer um outro tipo
de relação inter-subjectiva entre presente e passado, um outro tipo de
diálogo, mais estreito e elucidativo.
O Arqueólogo encontra-se, assim, pela
natureza das suas “fontes” disciplinares, numa espécie encruzilhada,
onde materialidades e sentido social se cruzam, encontrando aí a sua grande
especificidade, a sua particular área de actuação. A Arqueologia em geral,
e a Pré-Histórica muito em particular (porque não lida nunca com escrita
formalizada), tem na relação do ser Humano com as suas materialidades o
seu potencial de contribuição para a aventura do conhecimento, o qual nem
sempre é convenientemente aproveitado.
(...)
A Arqueologia tem um ângulo específico
de abordagem ao fenómeno social, o qual lhe proporciona o desenvolvimento
de formas de pensamento específicas que se geram no aprofundar dessa temática,
dessa perspectiva, e que devem ser valorizadas nas relações interdisciplinares
e sociais em geral que a Arqueologia estabelece. O arqueólogo deve assumir
e trabalhar a sua especificidade disciplinar.
Não
se trata aqui de promover uma qualquer forma de pensamento acantonado,
encerrado sobre os particularismos do seu objecto e desprezar a necessidade
de um relacionamento transdisciplinar ou, ainda menos, divergir de um movimento
de alargamento da transversalidade de conhecimentos (o que é diferente
de uma pretensa abolição de campos disciplinares, que penso destituída
de sentido).
(...)
Argumenta-se, apenas, que o
problema do conhecimento e da sua organização disciplinar se joga, tal
como no jogo das identidades, na relação a partir de uma posição, de uma
situação (neste caso disciplinar) que é a nossa e cuja principal contribuição
para o todo é manter a sua “personalidade” e dinâmica. Não interessa
aos arqueólogos, nem a ninguém, que eles se transformem em físicos, químicos,
geólogos, antropólogos, sociólogos, etc. Interessa a todos que os arqueólogos
se mantenham arqueólogos, pois é aí que reside a originalidade e o potencial
particular da sua contribuição. Assumir a especificidade do seu objecto
e das formas de pensamento que se lhe geram associadas, numa permanente
situação relacional em rede, aberta e dinâmica, com as outras áreas de
conhecimento e com o seu contexto social global, é o nosso desígnio de
investigadores em Arqueologia.
António Carlos Valera