[Archport] Geoarque suspeita de favorecimento por parte das Estradas de Portugal
Altos quadros da Estradas de Portugal sob suspeita
Público, 06.09.2008, por José António Cerejo
A Geoarque, uma firma que faz estudos de arqueologia para a EP, é
controlada por altos funcionários desta empresa de capitais públicos
João Cravinho extinguiu a JAE em 2000 por causa de suspeitas de
corrupção, mas os problemas mantêm-se
a Uma grande parte dos negócios da área do Ambiente relacionados com a
construção de estradas está nas mãos de empresas controladas por altos
quadros da Estradas de Portugal (EP), que actuam em violação da lei e
das suas obrigações de funcionários públicos.
Embora haja indícios de situações mais graves na EP, algumas das quais
estão a ser investigadas internamente, este caso ocorre nos seus
serviços de Ambiente, onde pelo menos quatro quadros superiores estão,
ou estiveram, envolvidos em empresas cuja actividade se centra na
produção de estudos ambientais e arqueológicos encomendados por
aqueles serviços.
A situação é parcialmente conhecida e comentada nos meios
arqueológicos há muitos anos, mas nunca deu origem a nenhuma queixa
das empresas concorrentes por receio de represálias. A administração
da EP, empresa de capitais públicos que herdou as competências da
antiga Junta Autónoma de Estradas (JAE), diz que desconhecia estes
factos e abriu esta semana um "inquérito completo e detalhado" depois
de ter sido questionada pelo PÚBLICO.
Tudo começou em 1992
No início da história está a constituição, em 1992, de uma firma de
estudos e projectos ambientais (Trifólio), na qual prestaram serviços
dois técnicos da JAE, Ana Cristina Martins, actual directora do
Gabinete de Ambiente da EP, e Joaquim da Silva Thó, um engenheiro
agrário que também exerceu funções de chefia na EP e estava colocado
no seu Gabinete de Ambiente quando deixou a empresa em Abril deste
ano.
Já em 1996, dois dos sócios-fundadores da Trifólio, que não tinham
qualquer ligação directa à JAE, participaram na constituição da Geoar-
que, uma empresa que se tornará rapidamente a principal fornecedora de
serviços de arqueologia à JAE e de-
pois à EP - da mesma forma que a Trifólio assumirá a liderança dos
estudos ambientais encomendados por estas entidades.
Na Geoarque, os dois fundadores da Trifólio repartem o capital com
Ivone Tavares - secretária do director dos serviços do IPPC (actual
Igespar) que tutelavam toda a actividade arqueológica no país e então
mulher de Carlos Ramos, o único arqueólogo que trabalhava na JAE e
hoje é o coordenador do Património Cultural do Gabinete de Ambiente da
EP - e com Nuno Rodrigues, filho de Arlete Castanheira, técnica
superior da JAE e ainda colega de Carlos Ramos no seu Gabinete de
Ambiente.
Estes dois quadros da JAE são, desde sempre, quem controla todos os
negócios da Geoarque, embora o capital da sociedade seja formalmente
detido por um técnico de seguros e por uma mulher sem qualquer ligação
à arqueologia, desde que os familiares de Arlete Castanheira e Carlos
Ramos, bem como os fundadores da Trifólio (que também abandonaram esta
empresa já nesta década), saíram em 2000.
Arlete Castanheira e Carlos Ramos - um chefe de divisão que tem na EP
um papel-chave na contratação de todos os trabalhos de arqueologia da
empresa e dos empreiteiros que ela contrata - são co-proprietários da
sede da Geoarque, em Linda-a-Velha, e ambos intervêm directa e
quotidianamente na sua gestão.
Arlete Castanheira tem procuração para tratar dos seus assuntos, é
co-titular das suas contas bancárias e dirige actualmente o processo
de integração da Geoarque no grupo Amb e Veritas, que tem entre os
seus sócios um antigo presidente da associação ambientalista Quercus,
José Manuel Marques, e que controla igualmente uma parte considerável
das encomendas de estudos ambientais da EP.
Neste contexto, Arlete Castanheira criou já este ano uma nova empresa
de arqueologia em que possui a maioria do capital e onde tem como
sócia a Amb e Veritas. A sociedade, que adoptou a denominação Geoarque
II, partilha a sede com a Geoarque e prossegue o mesmo objecto social.
Confrontada com estes factos, a gerência da Amb e Veritas respondeu
que foi informada por Arlete Castanheira de que ela se encontrava "em
fase terminal de desvinculação" da EP, informação que constituiu um
"argumento necessário e fundamental à constituição" da Geoarque II. A
empresa alega desconhecer as relações de Carlos Ramos e de Arlete
Castanheira com a Geoarque e diz que a ligação de Arlete Castanheira à
EP "em nada contribuiu" para a decisão de se associar a ela. "O
processo de constituição da Geoarque II visa aproveitar o nome
Geoarque no mercado, tendo nós sido informados pela dr.ª Arlete
Castanheira que tal sociedade iria cessar a sua actividade",
acrescentou a Amb e Veritas, assegurando que "jamais foi favorecida em
qualquer tipo de situação".
A administração da EP adiantou que Arlete Castanheira se encontra com
baixa médica quase ininterrupta desde Setembro de 2006 e que começou a
negociar a sua saída da empresa em Fevereiro deste ano, saída que
ainda não se concretizou.
As suspeitas de promiscuidade entre altos quadros da entidade que
tutela a construção de estradas e as empresas a quem adjudica
contratos vêm de longe e encheram muitas páginas de jornais há uma
década. O problema, no entanto, está longe de ter desaparecido e
alguns dos seus afloramentos actuais têm origem em teias de relações
criadas no início dos anos 90, antes, portanto, das investigações
judiciais, da sindicância e do inquérito parlamentar que abalaram a
antiga JAE e conduziram à sua extinção, em 2000, por iniciativa do
ex-ministro João Cravinho.
O PÚBLICO tentou contactar todas as pessoas e empresas nomeadas, mas,
à excepção da gerência da Amb e Veritas e da administração da EP,
nenhuma delas se mostrou disponível para falar.
O domínio da Geoarque na arqueologia é garantido através da filtragem
das empresas
06.09.2008
O total dos pagamentos feitos à Geoarque pela JAE e pelas entidades
que a substituíram ascendeu, desde 1997, a 710.000 euros, de acordo
com a administração da EP. Este valor, que corresponde a 19 trabalhos
arqueológicos, de norte a sul do país, traduz apenas uma pequena parte
da facturação da empresa em serviços ligados à construção de estradas
da EP.
O montante global dos negócios da Geoarque no sector rodoviário não é
conhecido fora da empresa, mas os 19 trabalhos referidos pela EP
respeitam exclusivamente a contratos celebrados directamente por ela e
pelas suas antecessoras. Significativo do fosso entre estes trabalhos
e a actividade real da Geoarque é o facto de esta identificar no seu
site 77 "estudos principais" efectuados entre 1996 e 2006 em estradas
da EP (num total de 157), não se encontrado sequer entre eles a maior
parte dos 19 encomendados pelos serviços onde trabalha Carlos Ramos e
Arlete Castanheira.
O grosso da actividade da empresa controlada por estes técnicos da EP
reside assim no acompanhamento arqueológico da construção de estradas,
contratado pelos empreiteiros adjudicatários da EP, e na elaboração da
vertente arqueológica dos estudos de impacte ambiental, por conta das
empresas a quem ela os adjudica.
No caso da construção das estradas, o lugar estratégico ocupado pelo
arqueólogo Carlos Ramos na EP e o facto de aquela empresa se reservar,
em violação da lei, a última palavra na aceitação das equipas de
arqueologia escolhidas pelos empreiteiros, parece ser a principal
explicação para a quase exclusividade com que a Geoarque intervém
nesse mercado. Legalmente, a autorização para a realização de
trabalhos arqueológicos cabe ao Igespar (Instituto de Gestão do
Património Arquitectónico e Arqueológico), sendo requerida
directamente pelos arquéologos contratados pelos empreiteiros.
De uma "forma singular", reconhece agora a sua administração, a EP
estabelece, porém, nos cadernos de encargo das obras, que as equipas
de arqueólogos contratadas pelos empreiteiros têm de ser previamente
aprovadas pelo seu Gabinete de Ambiente (Carlos Ramos), que depois
remete os pedidos de autorização ao Igespar.
Quanto à elaboração da parte arqueológica dos estudos de impacte das
obras, a EP parece não dispor de um mecanismo de filtragem idêntico,
mas o complexo sistema de subcontratação existente entre as empresas
do ramo acaba por contribuir para o lugar que a Geoarque aí detém.
O caso Trifólio e Amb e Veritas
06.09.2008
Representando uma gorda fatia dos negócios gerados pela EP em matéria
de ambiente, a elaboração dos estudos de impacte ambiental (EIA) das
estradas a construir não parece privilegiar nenhuma empresa em
particular, mas as adjudicações directas são lideradas pela Trifólio,
uma sociedade que teve entre os seus colaboradores dois técnicos
superiores da EP. Ainda que com um lugar mais discreto, a Amb e
Veritas, empresa com ligações a uma outra técnica superior da EP, tem
vindo a reforçar a sua posição, liderando neste momento as
adjudicações, com quatro dos 14 estudos em fase de avaliação.
Criada em 1992 por duas pessoas sem formação nesta área, que em 1996
vieram a formar a Geoarque - empresa controlada por dois outros
técnicos da EP -, a Trifólio teve uma forte ligação a Ana Cristina
Martins, actual directora do Gabinete de Ambiente da EP, e a Joaquim
da Silva Thó, um outro quadro do mesmo gabinete (ver texto principal).
A colaboração destes técnicos com a Trifólio e outras empresas,
nomeadamente a Ecoserviços - em que também trabalhou Ana Martins e tem
feito muitos estudos de estradas -, estava autorizada pela EP, mas não
foi possível apurar se ainda se mantém. O PÚBLICO tentou esclarecer o
envolvimento de ambos com a Trifólio, mas não conseguiu contactá-los.
O actual sócio-gerente da empresa, por seu lado, recusou-se a prestar
declarações. No caso da Amb e Veritas, a ligação aos técnicos da EP
concretizou-se já este ano com a constituição da Geoarque II (ver
texto principal).
A acreditar nos dados da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), a
EP e antecessores promoveram
desde 1995 a realização de 142 EIA, sendo que 22 deles foram da
responsabilidade da Trifólio, empresa que apenas fez mais sete estudos
do mesmo tipo para outros clientes. As outras empresas que mais
trabalharam para a EP foram a Arqpais e a Coba (21 cada uma), a
Agroambiente (13), a Ecoserviços (12), a Ecosistema (9) e a Amb e
Veritas (8), sendo que esta empresa só entrou no negócio em 2001. Em
fase de avaliação encontram-se ainda 14 estudos adjudicados pela EP em
2007 e 2008, sendo 4 da Amb e Veritas, dois da Trifólio, dois da Coba
e seis de seis empresas distintas.
Estes números, contudo, parece não refectirem toda a realidade, na
medida em que a EP, em resposta ao PÚBLICO, enumera um total de 16
contratos com a Trifólio desde 1993, no valor de 502.020 euros, sendo
que 12 deles não constam da lista de 22 que lhe são atribuídos pela
APA.
Já no que respeita à Amb e Veritas, a sua posição entre os
fornecedores da EP também não é fácil de determinar. Isto porque a APA
lhe credita oito estudos feitos e quatro em execução, enquanto a EP
diz que só lhe entregou seis contratos por 234.037 euros. Acresce que
destes seis só um é que consta da lista da APA. Além disso, a Amb e
Veritas informou por escrito o PÚBLICO de que o total da sua
facturação com a EP se ficou por cerca de 53.000 euros, quase um
quinto do que diz a EP. A sucessora da JAE identifica, por exemplo, um
contrato de 100.749 euros feito com a Amb e Veritas, relativo ao Nó de
Arões do IC5. Esta empresa, porém, insiste em que nunca celebrou
qualquer contrato relativo a esse nó.
Responsáveis de outras empresas que pedem o anonimato garantem que
estes números escondem "uma verdadeira teia de subcontratações" que
tem assegurado a hegemonia da Trifólio na EP, lugar que estará a
perder em favor da Amb e Veritas.